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RELATOS DE PABLO NERUDA


4.   Queriam matar a Luz de Espanha





Discurso pronunciado na inauguração do monumento
à memória de Federico Garcia Lorca,
em São Paulo, Brasil, 1968.
15ª parte de "Fogo de Amizade",
Caderno 3 de Nasci para Nascer.
Compilação póstuma


         Já se considerou aqui com sabedoria a sua transcendência poética.
        Principio por proclamar e predicar que é este o primeiro monumento à sua memória. E como esta homenagem representa um dever para todas as nações da América, honra e amor a esta terra que o faz antes de todas as outras. Proclamo São Paulo do Brasil cidade benemérita e em nome da poesia universal.
        Federico Garcia Lorca foi o homem mais alegre que conheci na minha longa vida. Irradiava a ventura de ver, ouvir, cantar e viver. Por isso, cuidado com a nossa cerimónia. Nada de ritos primários. Estamos a celebrar a imortalidade da alegria.
        Ao olhar com melancolia as fotografias daquele tempo, assombro-me com a sua juventude, com o seu rosto quase infantil. Era uma criança abundante, o jovem caudal de um rio poderoso. Esbanjava a imaginação, conversava com iluminações, oferecia a música, prodigalizava os seus desenhos mágicos, fendia as paredes com o seu riso, improvisava o impossível, convertia a travessura numa obra de arte. Nunca vi tanta atracção e tanta construção num ser humano. Este folgazão escreveu com a maior consciência, e se desencadeou a sua poesia com loucura e ternura, eu sei que era um sábio ancestral, um herdeiro da graça e da grandeza do idioma espanhol. Mas o que me surpreende é pensar que estava a começar, que não sabemos até onde chegaria se o crime não esmagasse o seu mágico destino. A última vez que o vi, conduziu-me a um canto e, como em segredo, disse de cor seis ou sete sonetos que ainda perduram na minha recordação como exemplares de uma beleza incrível. Era um livro inteiro que ainda ninguém conhece. Intitulou-o Sonetos de Amor Sombrio. Era incansável na criação, experimentação e elaboração. Por outras palavras, tinha nas suas mãos a substância e as ferramentas: estava preparado para as maiores invenções, para todas as distâncias. Por conseguinte, vendo a beleza que nos deixou, pensando na sua juventude assassinada, penso com mágoa na beleza que não nos chegou a oferecer.
        Há dois Federicos: o da verdade e o da lenda. E os dois são um único. Há três Federicos: o da poesia, da vida e da morte. E os três são um único ser. Há cem Federicos e todos eles cantam. Há Federicos por todo o mundo. A poesia, a sua vida e a sua morte repartiram-se pela Terra. O seu canto e o seu sangue multiplicam-se em cada ser humano. A sua breve vida cresce e cresce. O seu coração despedaçado estava repleto de sementes: não saberão os que o assassinaram que o semeavam, que criaria raízes, que continuaria a cantar e florescer em toda a parte e em todos os idiomas, cada vez mais sonoro, cada vez mais vivo. Os usurpadores que ainda governam a Espanha querem encobrir a sua morte terrível. A crónica oficial descreve-a como um fait divers, como uma fatalidade dos primeiros dias sangrentos. Mas não foi assim. Prova-o o facto de outro poeta maravilhoso, o jovem Miguel Hernández, ter sido conservado nas prisões fascistas até morrer. Tratou-se de uma agressão contra a inteligência, dirigida e realizada com espantosa premeditação. Um milhão de mortos, meio milhão de exilados. O martírio do poeta foi um assalto da escuridão: queriam matar a luz da Espanha.
        O monumento de Flávio de Carvalho, belo, misterioso e transparente, é um acontecimento nas nossas vidas. Esperamos, porém, o melhor monumento à glória de Federico Garcia Lorca: a libertação de Espanha.



Texto retirado de
Nasci para Nascer
Compilação de escritos de Pablo Neruda
Publicações Europa-América
Lisboa, 1978
Exemplares disponíveis nas bibliotecas municipais

- Reprodução não oficial -



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