2.2- No chat, onde tudo começa.

 


      A primeira vez que entrei no chat foi em 21/03/2000. Mesmo antes disso vinha fazendo uma espécie de vigília dos chats com membros do grupo para poder coletar os nomes/nicks presentes e destes destacar os mais freqüentes, os quais também deveriam ser membros mais ou menos assíduos do grupo. Coletei de 60 a 70 nicks em uma semana de observação. Ao final dessa semana apenas de observação dos nicks, selecionei 12 nomes mais freqüentes que provavelmente seriam membros do grupo (membros mais sólidos pelo menos, no momento). Confirmei que dessas 12 pessoas, apenas 5 eram realmente membros assíduos do grupo. Dessa seleção de nicks freqüentes para primeiro contato podemos antecipar algo sobre a amplitude e a fluidez de pessoas dentro do espaço de interação do chat: em 1 hora de chat por dia, numa sala com limite de 40 usuários, circularam cerca de 70 usuários; desses apenas 12 se mostraram freqüentes em mais de 3 dos 5 dias observados e desses 12 apenas 5 realmente eram membros do grupo; um grupo que chega a reunir até quase 60 pessoas num grande shopping da cidade nas reuniões de sexta-feira apenas. Pude aprender ainda mais sobre os códigos da sociabilidade observando o poder das abreviaturas durante as interações escritas no chat. Um simples "H" representando "Homem" agiliza bastante um diálogo escrito. Muito do material trocado entre membros é referente a acontecimentos anteriores e/ou recentes do grupo (Ex.: uma bebedeira no dia anterior ou um e-mail coletivo recebido por muitos). Há também o material referente às formas simbólicas correntes na coletividade no momento (Ex.: uma música que está fazendo sucesso; um filme; uma novela, etc. Lembrando que muitos dos personagens das mesmas referências simbólicas coletivas correntes servem de inspiração para os nicks: Tiazinha, Buffy, Xandy, etc.). A familiaridade partilhada pelo grupo é vista também na forma como um membro se refere às suas dificuldades técnicas. Os códigos partilhados são amplos a ponto de se poder ampliar uma mensagem de demora ou de espera sem a preocupação da identificação com quem se está teclando. Muitos usuários entram e saem da sala sem saber o que está acontecendo; teclam com um e com outro (usuário ou membro), mas não notam que há uma convergência de grupo presente naquele espaço, naquele momento. Tudo isso faz parte da codificação: o primeiro passo para penetração no grupo. A reincidência de trocas se apresenta cada vez mais importante como fator de construção das identificações (partilhamento de afinidades) e de eventuais identidades, caso a referência de afinidade seja uma diferença. Quanto mais se troca (Internet e/ou face-a-face) mais códigos em comum se constrói e isso é refletido nesse processo de reincidência; quanto mais se interage com o semelhante (aqueles com quem tem afinidades), mais se aproxima desta, tornando a decodificação de símbolos cada vez mais veloz e as interações mais íntimas. Nota-se isso no chat através do processo ascendente de dois usuários (membros ou não) que começam a interagir e prosseguem consequentemente com outras interações; os códigos se acumulam e as trocas fluem cada vez mais fáceis. Os códigos partilhados que levam a afinidades podem ser coisas curiosas, como por exemplo, o fato de nessa época do meu trabalho de campo (abril/2000) meu computador (especialmente minha linha de conexão) freqüentemente falhar durante os chats se tornou símbolo de trocas que me identificou com alguns membros. Mensagens entre membros referentes a atualizações passadas (reuniões, passeios, etc. que já aconteceram) e futuras (marcar encontros ou eventos) também são constantes materiais de trocas. Nesses casos o partilhamento dos códigos (referências) é quase imprescindível para o estabelecimento das interações, por isso a prioridade de membros no caso. De maneira evidente, quem é membro do grupo tende a ficar na sala por mais tempo. Os de fora do grupo que permanecem por mais tempo já tem um convívio prévio na sala, pois teclam com alguma familiaridade com alguns dos membros e poderão eventualmente ser parte do grupo. Os usuários de fora tendem a ficar pouco tempo: 1) por se sentirem um tanto ignorados, 2) por não estarem totalmente inteirados do que se passa na sala (domínio dos códigos). 1) Os membros não ignoram pessoas novas na sala de propósito; o problema é que na maioria das vezes eles já estão teclando com algumas pessoas. Se alguém novo entra e simplesmente coloca uma saudação (Ex.: "Boa tarde. Alguém quer TC?"), muito provavelmente vai ficar algum tempo (talvez o bastante para desistir) sem ter uma resposta; no entanto, se ela se dirigir a alguém específico presente na sala, muito provavelmente ela não será ignorada por esta pessoa; isto é, quando o contato é coletivo, um espera que o outro se disponha a falar com o novo usuário e muitas vezes ninguém se habilita, porém, quando feito um contato específico a possibilidade de uma atitude indiferente é bem menor. 2) Muitas vezes, usuários que entram pela primeira vez na sala não se identificam com as conversas que estão acontecendo (temas, modos, etc.; os códigos); no caso da sala Salvador 01 (a que o grupo Galera ZAZ vem utilizando regularmente), quando alguém novo entra (ou visita) nos horários de uso do grupo pode se espantar com a peculiaridade das conversas, pelo caráter específico (ser um grupo que se reúne regularmente no chat e face-a-face), e perder completamente o interesse em permanecer na sala, ou ficar (pela curiosidade em relação à mesma peculiaridade) e passar pelo mesmo processo descrito acima no item "1)". Fui convidado por um membro pela primeira vez para ir aos encontros no shopping em 18/04/2000, 17 dias depois do meu primeiro contato dentro do chat. Foi o período necessário para se desenvolverem algumas afinidades com alguns membros e para se gerar certa confiança a partir da bem sucedida troca de códigos. Posso afirmar agora que esse processo tende a ser ainda mais rápido, em média 15 dias entre os primeiros contatos com membros e um convite ou sugestão para se ir nos encontros face-a-face, passando basicamente pelo aprendizado e partilhamento de códigos e afinidades. Esse convite não é nada formal; é algo bastante casual; no meu caso: "PQ vc não aparece no encontro qualquer dia desses???"; feito pelo membro Marcelo-BA. Ser convidado por um ou mais membros não é exatamente uma exigência para se ir numa reunião. As conversas abertas no chat dão oportunidade a qualquer um ver que sempre acontece algo no shopping, etc., regularmente; então, basta a disposição e o interesse para se ir lá e ficar olhando o grupo ou mesmo se aproximar. Foram-me contados casos de pessoas que fizeram isso: apareciam no espaço do shopping onde o grupo se reúne e ficavam apenas observando de longe; mas o mais comum é o convite após trocas no chat, geralmente surgindo membros que servem de introdutores da nova pessoa no grupo; o que mais tarde chamarei de "padrinho".

Já podendo determinar com uma pequena margem de erro (5 a 7 pessoas; isso devido aos reservados e às possíveis trocas de nick pelo mesmo usuário), comecei a fazer uma média de membros do grupo e usuários comuns nos chats diários. Com isso poderemos visualizar o diferente fluxo de interações (membro/membro; usuário/usuário e membro/usuário) nos horários de convergência e atualização do grupo. No chat das 18 horas do dia 13/04/2000, num período de uma hora, com uma flutuação constante de 36 a 40 usuários presentes na sala, houve uma média de 22 membros do grupo e de 25 usuários comuns. Médias bastante equilibradas, o que nos antecipa a característica do forte potencial de renovação do grupo através das inter-relações com usuários de fora do grupo. Lembrando que a quantidade de membros do grupo tende a baixar após um certo horário, próximo das 19 horas, pois muitos dos que estão acessando de trabalhos precisam sair. Vejamos as médias de mais dois dias aleatórios, no mesmo horário e pelo mesmo período, só que cerca de um mês depois: dia 08/05/2000, média de 28 membros do grupo e de 33 usuários comuns; dia 10/05/2000, média de 26 membros do grupo e de 33 usuários comuns. E dentro destes números, devo ainda ratificar o fato da renovação do grupo via inter-relações entre membros e usuários comuns, pois alguns dos membros contados nestas duas últimas datas ainda não o eram na época do primeiro chat contado; o que significa que se tornaram membros através das interações com os membros do grupo já existentes; veremos com detalhes esta passagem mais adiante. Disso, podemos aproveitar para apresentar mais alguns dados que explicitam o fluxo de indivíduos no espaço de interação do grupo, chat, e refletir um pouco mais no modo como esta fluência afeta a sociabilidade no mesmo. Lembrando que convencionalmente os membros do grupo Galera ZAZ convergem para o chat três vezes ao dia (12:00; 18:00 e após meia-noite; em dias de semana), isso de maneira dispersa tanto pela constante presença de outros usuários como também pela própria dispersão dos membros pelos horários que lhes são disponíveis, temos uma média temporal frágil de cerca de 4 horas por dia de conexão e acesso, no entanto há muitas variáveis: o local de onde acessa; o tempo em que realmente está interagindo; quanto tempo fica sem acessar; são horas contínuas ou distribuídas em vários acessos no dia. Variáveis essas que nos servem apenas como linha de limite descritivo diante da amplitude possível de situações. Para o nosso presente momento interessa notar que existem médias generalizáveis sobre a sociabilidade do grupo no chat e que delas podemos supor sua rotina e rituais. Numa outra média frágil temos que cada usuário (membro ou não) envia cerca de 4 mensagens para cada outro usuário presente na sala em qualquer dos períodos citados. A variável desta média que mais afeta a quantificação é o fato de se ter em um extremo usuários que entram e saem da sala sem teclar nada e em outro membros que passam uma hora inteira de conexão teclando com, no máximo, 3 outros usuários (esses, em geral, outros membros). Variáveis como o nível de afinidade e de intimidade obviamente interferem aqui, mas a questão do número na média calculada fica meio vaga. O que há de fato, observado, é que membros e não membros interagem de maneira um tanto fluente, que dá a margem de validade àquela média, mas, de fato, também sabemos, e veremos isso ainda mais, que quase todos sempre dão preferências a uns ou outros e isso são afinidades, escolhas afetivas, somente possíveis de serem imperfeitamente descritas e apenas contingentemente quantificadas. Voltando às médias entre membros do grupo e usuários comuns, sempre considerados os 3 períodos de convergência de membros, que é quando há maior mistura entre indivíduos dos dois tipos, temos, como uma média geral aproximada dentro do nosso recorte temporal de 4 meses: 22 membros do grupo e 35 usuários comuns freqüentando o chat e interagindo em constante manutenção e renovação. Pode-se notar a maior freqüência dos usuários comuns, o que nos demonstra como evidência que, ao se tornar membro, o chat não é mais a única forma de atualização com outros membros, expandindo-se para outros espaços e ferramentas: e-mail, ICQ e face-a-face. O fluxo de membros no chat passa a ser mais um (fluxo, espaço de fluxo) para a construção da noção de pertencimento e por isso uma média sempre maior de não membros no chat. Lembrando também que os membros permanecem mais tempo na sala, enquanto que muitos não membros entram e saem rapidamente. A partir de dados extraídos de outro chat (18/04/2000; 18 horas) temos que a média de permanência de membros no mesmo é de 38 minutos, aproximadamente. Podemos ver o quanto este dado varia (de 17 minutos a mais de uma hora) e o quanto influencia na média vista anteriormente de 4 horas na Internet, que também considera outros horários e atividades dos membros do grupo na Internet. Esta amostra serve de exemplo geral para a permanência de membros no chat. Como informação complementar temos que a média de permanência de amostra semelhante em outro dia, no horário do meio-dia, foi de 27 minutos; demonstrando o fato de os membros preferirem aproveitar melhor suas horas de almoço. E quanto ao horário de depois da meia-noite, a média foi de 54 minutos; aqui com uma variação maior de quase duas horas entre o de maior tempo e o de menor tempo de permanência; demonstrando que os freqüentadores deste horário podem ficar mais tempo conectados. Podemos ver então, que suas permanências variam um pouco, mas estão ligadas tanto às contingências externas (trabalho, escola, fim de expediente, estar saindo, etc.) quanto internas: a medida que uns membros vão tendo de sair, outros também saem, pois o grupo vai dispersando. Obviamente algum membro que quiser ficar e continuar, interagindo com não membros, basicamente, pode ficar, mas este não é o comportamento mais padrão. Os horários de convergência têm sido bastante seguidos, por enquanto; o que reforça o perfil de grupo dos membros em suas atualizações. Há também uma forte ligação entre os dias úteis e a permanência dos membros do grupo no chat. Como temos visto, muitos membros acessam/teclam de seus locais de trabalho, por isso as atualizações concentradas nos dias de semana e também no horário das 18 horas, quando a grande maioria está perto da hora de sair e tem um tempo livre maior. Então, mesmo os membros que podem acessar fora de locais de trabalho tendem a não o fazerem sem ser nos dias úteis e nos horários especificados, pois sabem que não deverão encontrar muitos outros membros para interagir. Na quinta-feira Santa (20/04/2000) só haviam sete membros do grupo, no período normal de observação (uma hora), no chat das 18 horas; o feriado prolongado havia tirado muitos membros dos seus locais de acesso e por isso a ausência e dispersão neste dia. No dia seguinte (21/04/2000, sexta-feira Santa), no mesmo horário, pude confirmar a suspeita do dia anterior: não houve nenhum membro (visível, pelo menos) do grupo presente na sala neste dia. As atualizações do grupo no chat são de fato influenciadas por contingências externas; ter um local de acesso disponível é essencial e não só isso: mesmo os que o tem em dias fora de trabalho, não têm com quem partilhar as afinidades referentes ao grupo, o que também parece inibir o acesso, mesmo que sempre se possa procurar algo novo; porém buscar o conhecido, semelhante e familiar parece mais cômodo e agradável, pois já se tem partilhado algo. De fato, se analisarmos a posição de um membro nesta situação, ele se torna apenas mais um usuário procurando afinidades com diversos outros, enquanto no grupo, ele é um "membro"; ele pertence a algo. Não testemunhei o fato, pois ainda não estava indo, mas posso garantir que a reunião no shopping neste mesmo dia (21/04/2000, sexta-feira Santa) deve ter sido extremamente vazia de membros, se não até completamente inexistente. De forma ilustrativa veremos a sala de chat em dois dias seguidos (02 e 03/06/2000 - sexta e sábado), nos horários das 18 horas e no de depois da meia-noite. No das 18 horas de dia de semana (sexta) há como sempre um grande fluxo entre os membros do grupo e novos visitantes. O grupo, no total, entra por cerca de meia hora a uma hora e estes tendem a ficar no tempo regular enquanto que os visitantes entram e saem, já que têm de apreender as afinidades correntes para conseguir se entrosar. Ocorre também um fluxo interno no próprio grupo: são períodos quando aparecem mais uns membros que outros. Muito pode ser porque muitos não podem acessar nesse horário e por isso compensam ao entrar no chat de depois da meia-noite, assim podendo ficar muito mais tempo conectado (já soube de pessoas ficando até 5 da manhã no chat). A sensação de preenchimento ultrapassa e transforma as barreiras do comportamento cotidiano, reconstruindo-o de acordo com os novos usos do tempo. No chat de 18 horas, em dia de semana, por exemplo, muitos ficam presentes no chat, mas, ao mesmo tempo estão trabalhando e demoram um pouco para responder as interpelações e se explicam com isso e todos aceitam a situação, que é normal. A maior diferença para o chat de 18 horas no sábado foi que a presença de membros do grupo é bem menor; na verdade, neste sábado específico só encontrei uma pessoa do grupo (^any^). Boa parte do tempo que fiquei presente na sala só vi mais pessoas de outros estados tentando fazer contato com pessoas daqui de Salvador; principalmente homens (ou rapazes) querendo teclar com mulheres (garotas , "gatinhas") de Salvador. Já nos dois chats de depois da meia-noite, a situação muda consideravelmente: o grupo que pode freqüentar o mesmo chat é menor, já que são somente os que tem computador em casa (ou, pelo menos, acessível a noite...) e existe também o fato de estarem mais livres (tempo, conta de telefone, não estarem ocupados, etc.) para ficar mais tempo conectados e, consequentemente, mais tempo no chat. GoldenEye me contou de duas festas, nas quais o pessoal reunido ficou conectado cerca de 20 horas conversando com um monte de gente que não estava presente no momento da festa (face-a-face). Quer dizer, o chat (a interação mediada pelo computador, etc.) complementa ao mesmo tempo que forma o perfil da atualização do grupo. Continuamente fala-se nas reuniões sobre conversas e acontecimentos do chat e vice-versa: fala-se (tecla-se) no chat sobre coisas acontecidas nas reuniões. Nos chats de depois da meia-noite há muito tempo de permanência; os membros teclam entre si por muito mais tempo e também falam com outros presentes, já que não há muita restrição de tempo. Não dá para acompanhar muitas conversas, pois ficam muito no reservado, como também fazem bastante uso do ICQ. As conversas podem ser mais íntimas e/ou mais profundas, contendo problemas, segredos, etc., ou fofocas uns dos outros. Notei que o chat que eles mais comentam nos encontros é esse de depois de meia-noite; logo, é onde acontecem mais coisas extraordinárias. Ex.: Fulano está no reservado com Maria, e Maria está em aberto com outra pessoal; Fulano pode ver a conversa dos dois e comentar com Maria, enquanto a outra pessoa não vê, e quando chegam no encontro os dois comentam o ocorrido: uma paquera, um insulto, uma briga, etc., e os outros não sabem, só eles dois. Nos de 18 horas e meio-dia não dá para isso ocorrer, pois o tempo é curto para quase todos.

No segundo contato, em 24/03/2000 (sexta-feira), entre 18 horas e 18:30, consegui ultrapassar um pouco a barreira do código através de uma afinidade bastante específica (tipo de música: rock/anti-pagode) com um membro do grupo; um dos identificados antes como freqüentes; e que estava envolvido com diversas interações naquele momento. Cheguei a perguntar se ele era um tipo de líder por ter tantas pessoas teclando com ele, mas ele disse que não. Estava sendo uma popularidade de momento; pode ocorrer com qualquer um, membro ou não, a depender das afinidades partilhadas (um tema polêmico ou interessante a muitos, etc.). Ao conseguir fazer este contato com um membro, rompendo a barreira do código com uma afinidade, tinha que mantê-lo com uma constante identificação entre nicks e afinidades para que a interação se desenvolvesse proveitosamente. Seu nick era Salgado; mais tarde descobri que ele faz parte de um subgrupo dentro do grupo bastante peculiar, autodenominado Chaparrais, que veremos mais adiante. O contato com ele através da afinidade específica me fez notar o quão importante estas são para o estabelecimento de interações no espaço da Internet; no caso em especial com um membro do grupo Galera ZAZ de quem precisava me aproximar. O conhecimento dos códigos e o desenvolvimento de afinidades são os primeiros rituais de passagem para a sociabilidade no espaço da Internet. Há pessoas que freqüentam bastante a sala de chat, partilham muitas afinidades com o grupo e de certo modo são membros, pois são reconhecidos por muitos outros, têm trocas pessoais, etc., só que elas não vão às reuniões (a atualização face-a-face). Ainda no segundo chat teclei com uma garota que pode ser classificada como um membro só no chat. São basicamente três, as razões para este tipo de membro: em primeiro lugar, localização, muitas pessoas teclam de fora de Salvador, muitas vezes de outros estados, e isso impossibilita o comparecimento nas reuniões; mesmo que alguns desses, de vez em quando, viajando por Salvador façam uma visita às reuniões; veremos casos disso depois. A segunda razão é a idade: alguns membros são muito jovens e não têm permissão dos pais para comparecer às reuniões; há casos e exceções disso que poderão ser vistos depois também. E a terceira razão é simplesmente a falta de vontade ou interesse em encontrar face-a-face as pessoas com quem se tecla. Faz parte do processo de confiança e desconfiança que caracteriza a sociabilidade na Internet. A insegurança em relação aos outros e em relação a si mesmo são as principais razões disso. Membros disseram que muitas vezes preferem não "conhecer" o outro, pois tudo pode ficar ruim pelas expectativas criadas a respeito de aparência, personalidade, etc. No meu quarto acesso, em 30/03/2000, pude perceber mais algumas coisas sobre a dinâmica interacional dos usuários do chat. Três membros do grupo (um homem e duas mulheres) teclavam. O homem tecla com mulher-A e esta tecla com mulher-B. Mulher-A diz que tem de sair, mas antes apresenta mulher-B ao homem, estes começam então a interagir enquanto mulher-A sai da sala. O que houve foi que haviam 2 núcleos de interação: homem e mulher-A, e mulher-A e B. E quando a mulher-A saiu e juntou os outros dois houve uma troca inter-afim. A afinidade entre o homem e a mulher-B era a interação com a mulher-A e isso foi partilhado ao se juntarem os 2 núcleos. O que esse pequeno triângulo de trocas nos diz é que os membros se movimentam em interações partilhadas, partilhamentos esses ligados por trocas de afinidades que se cruzam. Muitas vezes os membros do grupo não se reconhecem de imediato. Os nicks são muitos e algumas vezes não se teve um contato anterior entre eles. Ter um contato anterior é também uma forma de afinidade. Recupera-se um laço de memória em comum e usa-se isso para começar uma nova troca. No chat de 04/04/2000 (no horário das 18 horas), pude aplicar isto através da recuperação de um encontro anterior com o membro ^any^. É apenas uma forma a mais de "puxar assunto" com um membro ou usuário, de modo a superar frases comuns como: "Oi, quer TC?", a qual é muitas vezes ignorada por muitos (membros ou usuários) até que alguém se disponha a responder. É claro que também muitas vezes este usuário é prontamente respondido. Uma das razões para isso é o modo como o nick reflete certas afinidades. No entanto, o reconhecimento no chat entre membros do grupo que já se conhecem é imediato. Os cumprimentos são diretos (além dos gerais: "Boa noite a todos!"; "Oi, meu povo!"; etc.) e já referentes a algo partilhado pelos dois, mesmo que seja apenas o tempo que não se vêem. Os membros, também, demonstram vivamente suas inter-relações dentro do grupo ao se referir a outros membros com o atual com quem se está interagindo no momento; geralmente são demonstrações de carinho (ou simples lembranças) passadas adiante, pois, muito normalmente membros que se conhecem perdem as oportunidades de se encontrarem por irem a reuniões diferentes, por não entrarem no chat na mesma hora ou por qualquer outra razão. Uma infinidade de conversas paralelas acontecem simultaneamente no espaço do chat. Usuários que não são membros teclam entre si. Usuários e membros também teclam entre si. E membros teclam entre si. Eventualmente há inter-trocas entre diferentes interlocutores, no entanto isso é mais comum entre membros, já que a quantidade de códigos em comum com mais pessoas possibilita mais afinidades partilhadas e por isso mais interação. Usuários que freqüentam muito o chat eventualmente acabam tendo este nível de afinidade (mais códigos em comum), mesmo que não passem a se atualizar face-a-face com o grupo. O melhor exemplo deste tipo de "membro" são os que não vivem em Salvador, que dificilmente viriam numa reunião do grupo, no entanto estão constantemente se atualizando no chat com muitos membros e muitas vezes ligando para o celular de um dos membros durante reuniões, fazendo assim uma presença indireta na reunião, falando com outros membros presentes.

Dentro do processo de códigos e afinidades, uma coisa chama atenção, presente em vários momentos das interações, as trocas pessoais/íntimas que acontecem velozmente. Richard Sennett (1976) falava de "mercantilização da intimidade" que parece se encaixar nesse processo o que chamo atenção aqui: um usuário novo na sala de chat (ou chat room) parece conseguir uma atenção maior (confiança) ou mais rápida com um membro, ou mesmo com outro usuário, através de afinidades íntimas. Enquanto teclava com Salgado mencionei algo sobre a perda de uma namorada relacionado a música e isso aumentou seu interesse na interação, mencionando algo íntimo de sua parte sobre o mesmo assunto, estabelecendo assim mais um nível de afinidade. E assim vemos que o processo de sociabilidade na Internet se dá em níveis de afinidades trocadas, indo em direção a mais íntima e pessoal, ao que parece. Uma outra coisa a ser acrescentada é sobre o material simbólico trocado entre os membros do grupo no chat: uma infinidade de mensagens de carinho e afeição, amizade e amor, parecem povoar um bom espaço do que é partilhado entre estas pessoas; uma contínua afirmação aberta de afetividade e de uma intimidade aparente, pois, como veremos, alcançar a intimidade não se trata apenas de trocar carinhos (mesmo sexualmente), mas de partilhar muito mais que semelhanças e gostos. E nesse processo, a ferramenta "reservado" e o ICQ têm um importante papel. Após uma maior aproximação (trocas) com alguns membros do grupo, começa-se a ser notada a sua ausência. Por causa de problemas técnicos não acessei o chat por dias; quando retornei (dia 10/04/2000) dois membros com que já tinha teclado perguntaram sobre minha ausência. A intimidade das trocas é ascendente junto com a freqüência de interações e o partilhamento de códigos. Assim, virtualizando-se as presenças de membros ausentes; constrói-se alguma noção de grupo e de pertencimento pela falta. A manutenção das interações anteriores e a contínua construção de novas, terminam por construir a sensação de identificação grupal, onde as afinidades fluem de atualização em atualização, num contínuo jogo de manutenção e renovação. Uma das motivações para que os novos usuários queiram ficar na sala é o fato de se querer conhecer "gente nova" e, ao mesmo tempo, ter a oportunidade de "encontrar" gente nova; o que podemos chamar de necessidade de pertencimento ou de participação ou de partilhamento. Talvez seja possível imaginar algo mais que usar estes termos também usados por Michel Maffesoli (1987 - 1996) para falar sobre os agrupamentos contemporâneos e sua ética e motivação estética, efêmera, afetiva, etc., pois há algo presente nas atualizações do grupo Galera ZAZ, e que parece ser comum a outros grupos de mesma natureza (Internet, amizade, etc.), que é a complementaridade dos dois espaços/formas de atualização/interação, e que não deixa que o grupo desfaleça na sua aparente efemeridade contemporânea: há sempre pessoas novas, mas há também pessoas que estão lá há quase dois anos, e que continuam indo, com mais ou menos freqüência, talvez tendo tido problemas com outras pessoas do grupo (fofocas, brigas, discussões, etc.), mas pelo fato da constante renovação, eles não deixam realmente o grupo e estão presentes, às vezes somente no chat da madrugada, para encontrar pessoas específicas, mas que ainda a mantém ligada ao grupo (inter-afinidades; em rede); então, a motivação pertencimento afetivo e a característica efemeridade são pertinentes ao grupo, mas ele vai além disso, pois os membros se tornam familiares ao grupo e o grupo familiar aos membros de uma maneira cotidiana e não somente complementar; é algo que passa a formar seus comportamentos, suas visões de mundo, sua cultura; e a renovação constante somada à permanência (mesmo que não constante) superam a efemeridade inicial; o que não faz desaparecer seu início (pertencimento e efemeridade), mas mais é construído a partir disso. E ainda é e deve continuar sendo totalmente afetivo, mesmo que se torne "prático" para uns ou outros. A diferença básica entre a interação dos que são membros do grupo para os que não são é que eles entram no chat para uma atualização de algo virtual (o grupo), enquanto os novos entram a procura (na maior parte) do preenchimento afetivo ("conhecer gente nova" é o termo mais utilizado). Os membros do grupo estão renovando o preenchimento (falam dos acontecimentos das reuniões, dos passeios e viagens, das fofocas, marcam encontros, antecipam coisas das reuniões; é um complemento de uma atualização em outra); enquanto que os novos estão a procura do mesmo. Isso, é claro, não impede que membros procurem novos preenchimentos (mais gente nova). Na verdade, o caráter afetivo, efêmero e efervescente do grupo também é mantido pela constante interação com novas pessoas. O processo de identificação com o semelhante é constante e não termina apenas na manutenção do grupo, mas também na fluidez do mesmo. As atualizações do grupo renovam as afinidades afetivas que já existiam e trazem novas para o seu centro de interações; o qual não é formado por pessoas específicas, mas pelo fato da regular e constante atualização do grupo; sua virtualidade, que faz com que sempre haja pessoas se convergindo para ele para se reunir, se atualizar, se manter preenchidas ou encontrar o preenchimento. Tudo isso faz parte da construção simbólica do que é grupo para os seus membros (um lugar para ir e estar, um grupo de pessoas para encontrar, emoções para sentir, etc.), logo, dizer de núcleo sem pessoa específica, quer dizer que mesmo se Fulano, o membro mais antigo do grupo, não vier em 5 reuniões seguidas, e outros 8 membros pararem de vir por causa da ausência de Fulano, outros membros do grupo continuaram indo às reuniões e farão atualizações com novos membros e a virtualidade do grupo será mantida sempre, mesmo que os seus membros (os indivíduos) sejam efêmeros e inconstantes em suas atualizações (no chat ou nas reuniões). "É o tempo em que relaxo e não penso em nada sério. É o momento em que falo com meus amigos e sempre encontro gente nova. É quando a gente pode se abraçar e rir a vontade. É hora de celebrar tudo de bom em se ter amigos. É a hora de encontrar e ver os amigos. É hora de beber e se divertir. É a hora que esqueço os problemas. É a hora que me divirto." (Depoimento de membro do grupo Galera ZAZ sobre a importância do grupo para ele.)

Os circuitos de interações possíveis de um membro dentro do chat são bastante fluidos e também inter-cruzados, sendo construídas redes de interações que de fato não são muito limitadas, pois há sempre membros entrando e saindo, ou mesmo há sempre usuários também prontos a estarem dentro destas redes de interações. Essas construções conjuntas e em rede é o que dão o perfil das inter-afinidades trocadas entre os muitos membros, subgrupos e também usuários comuns, que podem ainda vir a ser membros; tudo depende das trocas de afinidades. Os conteúdos são basicamente lúdicos e afetivos, como pudemos ver. E o partilhamento de códigos proporciona os imediatos reconhecimentos e trocas (e também conflitos) entre membros; não ignorando os possíveis aprendizados e renovações (e também conflitos) junto aos usuários não membros, como também vimos.


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