A Lei da Liberdade Religiosa e a revisão da Concordata

  1. Introdução
  2. A Lei da Liberdade Religiosa e o estatuto da ICAR
  3. A Comissão da Liberdade Religiosa: institucionalizando a influência da ICAR
  4. O mecanismo de discriminação: hierarquizando as religiões
  5. A legislação em vigor: amplas isenções para a ICAR
  6. As isenções fiscais na proposta de Lei
  7. Outros privilégios a conceder
  8. O estatuto dos menores de idade
  9. Os dias feriados
  10. O projecto do Bloco de Esquerda
  11. Apelamos ao protesto!
  12. Contactos dos partidos
  1. Introdução

    A necessidade de uma nova Lei regulando as relações entre o Estado e as diversas confissões religiosas foi sugerida pela primeira vez pelo então Presidente da República Mário Soares, na sua última mensagem de Ano Novo (1996). Viviam-se os primeiros dias do primeiro Governo de António Guterres, e poucos notaram que Soares se confessara "inquieto" com "o fenómeno das seitas", e afirmara que estas "necessitavam" de "enquadramento jurídico". Nos anos que se seguiram, durante as discussões entre o Governo e algumas confissões religiosas, vários dignitários da ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana) afirmaram repetidas vezes sobre esta matéria que havia que "separar o trigo do joio". Esta expressão e a sua repetição significavam, essencialmente, que o crescimento de novos movimentos religiosos como a IURD (Igreja Universal do Reino de Deus), a Igreja Maná, ou a Sociedade Torre de Vigia (Testemunhas de Jeová), era motivo de grande aflição para a ICAR, que via algumas ovelhas do seu rebanho tresmalharem-se para grupos religiosos com práticas mais apelativas. A reacção da ICAR aproximou-se, por vezes, da violência de rua.

  2. A Lei da Liberdade Religiosa e o estatuto da ICAR

    A proposta de Lei número 269/VII do Governo à Assembleia da República (1) viria a ser aprovada pelo Conselho de Ministros em 4 de Março de 1999, e será discutida muito em breve (possívelmente em Fevereiro de 2000) na Assembleia da República. Está assente em três premissas:

    (i)que o estatuto de excepção da ICAR, consubstanciado na Concordata, deverá manter-se;

    (ii)que algumas religiões que a ICAR considere "respeitáveis" (presumivelmente, a comunidade judaica, os muçulmanos, e alguns grupos protestantes) podem aceder, controladamente, a alguns dos privilégios de que a ICAR já disfruta;

    (iii)que as confissões religiosas que ameacem a ICAR devem ser relegadas para um estatuto inferior, institucionalizando assim o preconceito católico contra aquelas.

    A proposta de Lei da Liberdade Religiosa, embora mantenha em vigor a Concordata que foi assinada em 1940 entre o Portugal fascista e a Santa Sé (artigo 58º), vem modificar a situação inconstitucional de privilégio da ICAR, abrindo a possibilidade de estender alguns dos privilégios da ICAR a grupos religiosos co-optados por esta. (Note-se de passagem que, das Concordatas que o Vaticano celebrou com vários regimes fascistas europeus -com a Itália em 1929, com a Alemanha em 1933, com a Espanha em 1950-, a única que se mantém em vigor é a que obriga a República portuguesa.) Assim, os privilégios da ICAR serão mantidos, mas deixarão de ser aparentemente inconstitucionais -porque deixarão de ser únicos. Nomeadamente, o contribuinte verá a receita da ICAR (obtida à sua custa) manter-se, mas agora algumas migalhas cairão da mesa -por esmola de católicos magnânimos como António Guterres- para as religiões que a ICAR está disposta a tolerar. O princípio constitucional de igualdade entre religiões (artigo 41º da Constituição da República) permanecerá contudo letra morta, uma vez que haverá uma efectiva desigualdade na forma como o Estado tratará as religiões que não sejam consideradas "radicadas" no país. Além disso, esta proposta de Lei, a ser aprovada, fará transitar para a Lei ordinária todos os privilégios de que a ICAR goza actualmente, precavendo assim que uma possível posterior revogação da Concordata não venha a ter quaisquer consequências práticas.

    Importa assinalar que o preâmbulo da proposta revela uma visão da história de Portugal no século XX assaz reaccionária, senão mesmo salazarista. Efectivamente, embora se reconheça que tanto a Concordata de 1940 como a Lei de 1971 são herança de um "regime antidemocrático", a República de 1910 é aí acusada de ter estado em "guerra aberta [...] contra a Igreja Católica", sem que seja feita qualquer referência às razões que assistiam aos republicanos no seu objectivo de assegurar a liberdade religiosa para todos (e não apenas para a religião que se tornara hegemónica graças a quatro séculos de intolerância religiosa), contra uma ICAR que esteve na oposição à República desde a primeira hora.

  3. A Comissão da Liberdade Religiosa: institucionalizando a influência da ICAR

    A Comissão da Liberdade Religiosa terá uma importância fulcral se a Lei da Liberdade Religiosa for aprovada, como se pode comprovar atentando nas suas funções discriminadas nos artigos 52º e 53º:

    a) emitir pareceres sobre que grupos religiosos podem ser reconhecidos pelo Estado e posteriormente celebrar acordos com este;

    b) elaborar um Relatório anual sobre seitas e novos movimentos religiosos;

    c) emitir pareceres sobre a composição da Comissão do Tempo de Emissão das Confissões Religiosas (que decide os tempos de emissão nas redes de televisão e radiodifusão estatais).

    Portanto, será a Comissão da Liberdade Religiosa que terá a incumbência de "separar o trigo do joio", ou seja, de discriminar quais são as boas e as más religiões segundo um Estado que é laico. Vejamos qual será a sua composição (artigo 55º):

    a) o presidente e mais quatro membros serão nomeados por diversos Ministérios governamentais;

    b) dois membros serão nomeados directamente pela ICAR, e três não-católicos serão nomeados pelo Ministério da Justiça, sob proposta dos grupos não-católicos que o Estado considere "radicados" no país;

    c) cinco membros serão nomeados pelo Ministério da Justiça, em virtude da sua "competência científica".

    Atendendo à forte influência da ICAR no Executivo -onde o próprio Primeiro-ministro é um católico praticante que tira consequências políticas das suas crenças intímas- dificilmente se evitará que esta Comissão seja dominada por adeptos da ICAR. Note-se ainda que, apesar de o Estado e a Igreja permanecerem formalmente separados, esta Lei, ao permitir que a ICAR nomeie directamente membros da Comissão, atribui à ICAR um lugar distinto das outras confissões organizadas, e por isso privilegiado. É portanto de uma enorme hipocrisia afirmar que esta lei permitirá assegurar a neutralidade e independência do Estado face às diversas religiões.

  4. O mecanismo de discriminação: hierarquizando as religiões

    São especificados quatro níveis diferentes de prática e organização religiosa (parte VI e artigos 32-43). Primeiramente, qualquer grupo de pessoas pode associar-se e gozar das liberdades de culto e de religião ao nível mais elementar. Em segundo lugar, grupos de pessoas podem formar associações civis e gozar dos direitos correspondentes, embora sem o reconhecimento específico do carácter religioso da sua associação. Em terceiro lugar, as comunidades religiosas podem pedir o reconhecimento pelo Estado da sua personalidade jurídica, ficando inscritas no registo do Ministério da Justiça as religiões que demonstrem a sua presença no país. Finalmente, as comunidades religiosas inscritas no registo que a Comissão da Liberdade Religiosa considere "radicadas" no país poderão aceder ao essencial dos privilégios da ICAR.

    Embora a decisão final pertença ao Ministro da Justiça, a Comissão da Liberdade Religiosa, onde se sentam representantes directos da ICAR, é ouvida e fornece um parecer tanto sobre o pedido de inscrição como sobre a "radicação". Particularmente acintoso parece-nos o requerimento com consequências retroactivas (ver o artigo 67º), de que as comunidades religiosas só serão consideradas "radicadas" no país se tiverem iniciado a sua actividade em Portugal antes de 1975. Objectivamente, isto equivale a recompensar a política de intolerância e perseguições religiosas (contra judeus, testemunhas de Jeová, e outros) praticada pela ditadura de Salazar e Caetano para benefício da ICAR. O seu resultado prático será a exclusão de grupos religiosos como a IURD ou a Igreja Maná, que, se excluirmos a ICAR, são os que têm um maior número de seguidores. As razões para esta discriminação são óbvias: estes grupos religiosos têm vindo a captar seguidores da ICAR. Urge portanto cortar-lhes as pernas.

  5. A legislação em vigor: amplas isenções para a ICAR

    A legislação actualmente em vigor garante uma quase total isenção fiscal às instituições e aos sacerdotes da ICAR, mas não às instituições e aos sacerdotes de outras religiões. Nomeadamente, estão isentos de IRS os eclesiásticos católicos, isentas de IVA todas as instituições católicas, mesmo para actividades que não tenham fins religiosos imediatos, e isentos de todos os impostos (incluindo a sisa e a contribuição autárquica) todos os santuários, seminários, institutos missionários, e todos os outros negócios da ICAR, incluindo até as contas bancárias dos santuários e institutos missionários (isentas de IRC), embora não estejam isentas as contas bancárias das dioceses! Estão equiparados a oficiais os capelães militares católicos, e isentos de impostos os professores de Religião e Moral no ensino público. As confissões não-católicas estão isentas somente de sisa e contribuição autárquica para os seus templos, bem assim como de imposto sucessório. Conforme é reconhecido no texto da própria proposta de Lei, a isenção de IRS é injusta e de constitucionalidade duvidosa, e a isenção de IVA viola uma directiva da União Europeia. Nós acrescentamos que não há qualquer razão para garantir isenções fiscais a sacerdotes, como também não estão isentas quaisquer outras profissões; e que as igrejas não merecem qualquer isenção (exceptuando talvez o trabalho caritativo que realizem), e aliás aquelas de que beneficiam actualmente constituem uma recompensa que Salazar atribuiu à ICAR por esta ter apoiado o fascismo. Mantê-las é injusto para o cidadão ou contribuinte, que aliás é cada vez mais frequentemente ateu, agnóstico, ou simplesmente indiferente.

  6. As isenções fiscais na proposta de Lei

    A Lei da Liberdade Religiosa propõe, para os grupos religiosos que sejam considerados radicados no país, que optem, ou pelo regime de isenção de que beneficia actualmente a ICAR, ou por receber 0,5% do IRS dos contribuintes que se disponham a consignar parte dos seus impostos para uma religião à sua escolha. A percentagem de 0,5% foi calculada para equivaler ao dinheiro que, em cada ano, a ICAR arrecada por via da devolução de IVA. Portanto, mesmo aqui a Lei foi elaborada com o cuidado de não fazer recuar um mílimetro de terreno a instituição que foi o principal sustentáculo do fascismo português. Note-se que o valor que ela recebe do Estado por devolução do IVA ascendeu, no ano fiscal de 1996, à astronómica quantia de 1,596 milhões de contos. Esta renda continuará a ser garantida pelo Estado que, suspeitamos nós, compensará a ICAR se o dinheiro da consignação fiscal dos contribuintes individuais não for suficiente para manter os faustosos gastos da ICAR. Além disso, a ideia de cidadãos portugueses confessando a sua religião em documentos oficiais ressuscita o desgradável fantasma da Inquisição.

    Adicionalmente, são especificadas (artigo 31º) as isenções fiscais de todo e qualquer imposto sobre os edifícios usados para fins religiosos, sejam eles templos, seminários, santuários, ou quaisquer dos seus anexos, de que beneficiarão as religiões inscritas. Isto inclui a sisa, mas também a contribuição autárquica.

  7. Outros privilégios a conceder

    A Lei da Liberdade Religiosa regula outros privilégios de que a ICAR já beneficia e que serão concedidos às religiões inscritas ou apenas às radicadas:

    a) possibilidade de leccionar Religião e Moral nas escolas públicas, tanto no ensino secundário como até no ensino básico, para todas as religiões inscritas, apesar de haver Evangélicos que ensinam o Criacionismo, e católicos que fazem propaganda contra a IVG nessas aulas;

    b) possibilidade de emitir propaganda religiosa na TV pública, e agora também na radiodifusão, apenas para as religiões radicadas, mantendo uma distribuicao de tempo que será à partida desigual a favor da ICAR;

    c) as religiões radicadas terão a possibilidade de celebrar casamentos com fins civis.

  8. O estatuto dos menores de idade

    A ser aprovada esta lei, não haverá liberdade religiosa para os menores de dezasseis anos. Conforme sustentam muitos psicólogos infantis (como Piaget), a criança não deve ser sujeita a pressões religiosas pois não é capaz de captar conceitos abstratos correctamente até aos 12 anos, e o facto de não poder questionar a sua religião causa confusão à criança e pode traumatizar o seu intelecto.

    A criança que cresça num meio em que apenas conheça a religião de seus pais desenvolverá um conjunto de preconceitos contra as outras religiões e contra pessoas que pensem de forma diferente. Para evitar a intolerância, em alternativa às actuais aulas de Religião e Moral dadas por um membro da mesma religião, deveriam ser leccionadas, no ensino secundário, aulas de "Filosofia religiosa" numa perspectiva científica e imparcial, em que seriam apresentadas todas as posições religiosas e não-religiosas (do paganismo ao ateísmo).

    Defendemos que nenhuma crianca possa ser forçada a tomar uma decisão religiosa antes da sua maioridade, e que seja salvaguardada de qualquer pressão nesse sentido por lei.

  9. Os dias feriados

    Deveria conceder-se três dias por ano de feriados a pedido, inclusivamente para as pessoas ateias, e após a supressão dos feriados católicos com menor significado (caso do 15 de Agosto e do 8 de Dezembro). Assim se evitaria a situação que esta lei criará de serem as pessoas sem religião as únicas que não podem faltar a exames escolares ou universitários invocando razões de ordem confessional.

    Note-se a propósito que os feriados são dias de repouso ou dias de celebração, representando valores comuns da sociedade que os festeja. Os feriados não devem ser instrumentos de publicidade para uma possível maioria religiosa que, se o for, não deve impor as suas festividades aos milhares de cidadãos não-católicos que professam outras religiões ou não têm qualquer religião. Neste espírito, o 25 de Dezembro deveria passar a ser o Dia da Família.

  10. O projecto do Bloco de Esquerda

    O projecto do Bloco de Esquerda(2) é sem dúvida positivo, pois implica a revogação da Concordata (artigo 6º). Este é sem dúvida um bom princípio, que merece todo o nosso apoio.

    Interrogamo-nos contudo sobre se haverá realmente necessidade de instituir um regime específico para as instituições de Solidariedade Social dependentes das igrejas. Parece-nos que, a este respeito, não há necessidade de distinguir o trabalho destas do efectuado pelas instituições de solidariedade social laicas. Aliás, a caridade realizada pelas instituições da ICAR não é separável do proselitismo desta, e por isso apoiá-la pode colocar em causa o princípio da neutralidade do Estado.

    Ao contrário do Bloco de Esquerda (que é omisso a este respeito), reconhecemos a necessidade de um acompanhamento da actividade dos grupos religiosos, que pensamos contudo que poderia ser feito por uma Comissão parlamentar eleita para o efeito. Uma Comissão da Liberdade Religiosa onde se sentarão por inerência vários representantes da ICAR não oferece garantias de neutralidade, em particular face à necessidade de acompanhar as práticas sectárias de grupos católicos como o Opus Dei ou o "Tradição, Família, e Propriedade".

  11. Apelamos ao protesto!

    Numa sociedade republicana como se deseja que a portuguesa seja, não faz qualquer sentido que um grupo de cidadãos tenha o privilégio de estar isento de todo e qualquer imposto, por mais útil socialmente que seja a sua profissão, o que nem nos parece que seja o caso dos sacerdotes católicos. Contrariamente, faz algum sentido que o Estado favoreça determinadas instituições que efectuem algum trabalho socialmente útil, e que o Estado não possa realizar por razões várias, com a ressalva de que é impossível separar a caridade religiosa do proselitismo, e de que por isso deve haver um grande cuidado neste domínio. Parece-nos pouco consentâneo com o princípio constitucional de separação entre as Igrejas e o Estado que este recolha impostos para as igrejas, conforme acontecerá na situação criada pela proposta de Lei do Governo. Igualmente, não compreendemos porque deverá o Estado auxiliar as igrejas a fazer a sua propaganda, seja fornecendo-lhes espaço nas escolas públicas, seja concedendo-lhes tempo de emissão nos serviços de comunicação social públicos, seja determinando um número excessivo de feriados que concernem apenas uma religião menos maioritária do que geralmente se pensa. Finalmente, achamos grave que o Estado não proteja os adolescentes antes dos dezasseis anos, especialmente tendo em conta a existência de seitas e grupos sectários (entre os quais, os de orientação católica não são os menos preocupantes) que manipulam famílias, e condicionam os percursos sociais de indivíduos de uma maneira preocupante.

    Apelamos portanto para que todos os cidadãos e cidadãs que se identifiquem com os nossos pontos de vista protestem de todas as formas ao seu alcance, no sentido de aproveitar esta oportunidade para revogar a Concordata, e abolir os privilégios religiosos, para que caminhemos para uma sociedade em que os grupos religiosos, mesmo se maioritários, não constranjam o todo social em que se inserem.



Colaboração "República e Laicidade!" e "Despertar"

Janeiro de 2000

Texto redigido por Ricardo Alves e Ricardo Pinho





Referências:

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