Nota: o questionário a que se responde nesta página foi-nos enviado por um jornalista da Revista "Visão" que manifestou interesse no conteúdo deste sítio. Apesar de termos enviado as respostas, não chegaram a ser publicadas.



Entrevista à revista "Visão"

  1. Para me situar, gostaria de saber um pouco mais sobre o vosso movimento. Se tem ligações partidárias, à maçonaria etc.. Se podemos falar num movimento organizado ou num conjunto de livre-pensadores e "republicanos à maneira antiga". E para situar o leitor, preciso de saber a sua idade e o que faz...

    Somos um grupo informal de jovens, sem ligações partidárias nem filiação maçónica (ou outras). A Inter-rede tem-nos permitido estabelecer contactos, não só entre os que estão em Portugal e no exterior, como também com pessoas com preocupações semelhantes noutros países do mundo (muito particularmente o Brasil).

    Os valores da tradição republicana têm sido infelizmente negligenciados. Face a uma sociedade como é a do Portugal moderno, cada vez mais diversa religiosa e "étnicamente", são mais actuais do que nunca valores republicanos como a igualdade de todos os cidadãos independentemente da origem social ou nacional, da "etnia", da origem familiar, ou da religião.

  2. Em sua opinião, como se manifesta, a influência da ICAR na sociedade portuguesa, 90 anos após a Revolução Republicana?

    Principalmente, pela manutenção em vigor de uma Concordata que é herança do fascismo, e que, à excepção da introdução da possibilidade do divórcio a seguir à Revolução de Abril, se mantém intacta nos seus aspectos essenciais. A Concordata permite que os sacerdotes católicos estejam isentos de IRS, e garante à ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana) uma renda anual bastante generosa através da devolução do IVA. Isto, num país em que os cidadãos são bastante sensíveis à injustiça fiscal. É sintomático da excessiva deferência com que a ICAR é tratada, que a Concordata, apesar de ser inconstitucional, se mantenha em vigor.

    A influência da ICAR manifesta-se também no tratamento dado pela Comunicação Social a novos movimentos religiosos como a IURD (Igreja Universal do Reino de Deus), ou a Igreja Maná, que são geralmente referidos como uma ameaça para a sociedade em geral, e como movimentos que exploram a crendice popular, quando no fundo são apenas concorrentes que põem em causa o monopólio da ICAR, e enquanto as "aparições" de Fátima são rarissimamente tratadas sob uma luz crítica e científica nos media.

    A situação actual tem algo de paradoxal, pois à medida que a sociedade se afasta cada vez mais da religião (e os dados dos censos desde 1974 estão aí para comprová-lo), instituições ligadas à ICAR têm vindo a ganhar uma influência cada vez maior. Isto explica-se em parte por o Estado português ter criado um sistema de providência singularmente incipiente, e haver a ideia peregrina de que a caridade religiosa poderá suprir funções que deveriam caber ao Estado. Explica-se também pela atitude da classe política, sendo sintomática a este respeito a atribuição de um canal de televisão a um projecto de "inspiração cristã" que, como é público e notório, não encontrou a audiência a que se destinava.

  3. Que pensa da iniciativa legislativa do BE com vista à revogação da concordata com o Vaticano?

    É sem dúvida positiva, e, tirando um outro pormenor, merece o nosso apoio.

    Para uma apreciação mais detalhada dos projectos de Lei do PS e do BE, consultar:

    http://www.oocities.org/CapitolHill/Senate/4801/LiberdadeReligiosa.html

  4. O único partido com assento parlamentar a manifestar-se contra essa proposta foi o CDS/PP, através do seu líder, Paulo Portas. Como interpreta o silêncio dos outros, incluindo o PCP?

    A posição do PP não me espanta, pois é o único partido parlamentar que se coloca de fora do "arco republicano". O PCP tem uma postura algo temerosa face à ICAR, e só assim se compreende que não tenha tomado nenhuma iniciativa parlamentar a este respeito, mas estou persuadido de que não votará a manutenção dos privilégios de uma instituição que em 1975 não hesitou em enfrentar o PCP violentamente.

  5. Terão medo? Acha que ICAR ainda é fundamental para ganhar votos?

    Se a ICAR é ou não fundamental para ganhar votos, é uma pergunta que seria curioso endereçar aos próprios partidos. Note-se a propósito que a discussão desta proposta de lei chegou a estar prevista para o final da legislatura anterior...

    Há efectivamente relatos de localidades do país em que os sacerdotes católicos usam a sua influência social para pedir votos para determinados partidos, por vezes mesmo dentro de igrejas. Julgo que os estados-maiores dos grandes partidos sobrestimam o peso destes votos, mas por outro lado a Comunicação Social ligada à ICAR tem uma dimensão (nacional e local) bem significativa.

  6. Acha que esse debate ainda pode fracturar a sociedade portuguesa?

    Sim. O referendo sobre a despenalização da IVG, apesar da baixa participação, revelou um país partido ao meio, com a ICAR excepcionalmente forte nos meios rurais e mesmo urbanos do Norte e das Ilhas, e com o Sul e a maioria dos centros urbanos vivendo já de uma forma laica. Se se sentir ameaçada, a ICAR poderá alistar na sua defesa dois canais de rádio nacionais, uma rede de rádios locais, vários periódicos regionais e locais, e dispõe ainda de espaço na televisão pública, bem assim como de uma grande influência na TVI. Todas estas posições foram atribuídas à ICAR, num momento ou outro, com o pretexto de que a ICAR terá uma presença significativa na sociedade portuguesa. Ora estes meios de Comunicação Social ajudam a perpetuar essa influência.

  7. Pensa que o governo do eng. Guterres é menos laico do que o do prof. Cavaco Silva? No que respeita a esta questão vê diferenças entre ambos?

    O primeiro Governo de Cavaco Silva atribuiu um canal de televisão privado a um projecto de "inpiração cristã", justamente por aquele se reclamar dessa inspiração, e subsidiou generosamente a construção de uma Catedral em Bragança. Durante o consulado de Cavaco Silva, nunca se pensaria em despenalizar a IVG (Interrupção Voluntária de Gravidez), uma questão que fora legislada pela primeira vez durante o período do Bloco Central, quando havia uma maioria parlamentar de esquerda. O candidato presidencial Cavaco Silva proclamou que "Portugal é católico", mas perdeu as eleições. O Primeiro-ministro António Guterres diz defender a separação entre a Igreja e o Estado, mas não separa as suas crenças íntimas da sua acção política, como se viu na anulação por via referendária da votação parlamentar favorável à despenalização da IVG, ou quando fez questão de pedir a benção ao Papa numa cerimónia pública, quando poderia perfeitamente tê-lo feito em privado.

  8. Em sua opinião, o ensino religioso deve ser proibido nas escolas públicas. Porquê?

    Primeiramente porque, por princípio, o Estado laico não deve colaborar no proselitismo religioso. O ensino religioso configura uma situação em que o Estado fornece o espaço físico e a dignidade da escola pública áquilo que deveria ter lugar no templo respectivo.

    Em segundo lugar, porque muitas das crianças que frequentam essas aulas não o fazem de livre vontade, mas sim por os pais terem determinada opção religiosa que querem impôr aos seus filhos.

    Em terceiro lugar, porque há notícia de que algumas dessas aulas têm sido usadas para ensinar teorias anti-científicas (é o caso das aulas garantidas pelos evangélicos, onde por vezes se ensina o criacionismo), ou para fazer tomadas de posição de cariz político (caso do referendo sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez).

  9. Pensa que há, por parte do poder do poder político uma instrumentalização da religião?

    Penso que, mais do que uma instrumentalização da religião, há o cuidado de captar o apoio da hierarquia da ICAR, ou pelo menos de não desagradar à hierarquia da ICAR.

  10. Considera que o poder político é um aliado da ICAR quando se trata de discriminar confissões minoritárias, como as chamadas seitas?

    Sim. A actual proposta de Lei da Liberdade Religiosa é a prova mais eloquente desse facto. Teve a sua origem no sobressalto católico em 1995-96 (de que Mário Soares se fez eco), e está construída para relegar as confissões mais recentes para um nível inferior de reconhecimento pelo Estado.

Ricardo Alves

Fevereiro do ano 2000 da era comum

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