Boletins Mensais de 1998


Julho de 1998: Na ressaca do referendo, a ICAR avança

Agosto de 1998: Deriva conservadora?

Setembro de 1998: Vários pesos e várias medidas

Outubro de 1998: Parabéns à República e a Saramago

Novembro de 1998: Arrependimentos hipócritas e genuinidade papal

Dezembro de 1998: Prenda da época

Julho de 1998

Na ressaca do referendo, a ICAR avança

  1. Aparentemente desmobilizados pela quietude dos grandes partidos, certamente desenganados de um Executivo clericalizante que não garantiu o respeito pela sua vontade, e sobretudo acusando a carência de um Movimento Laicista efectivo, dois em cada três portugueses decidiram não votar no referendo de 28 de Junho passado. Entre os que o fizeram, uma maioria tangencial seguiu os ditames da Santíssima Madre Igreja. O resultado do referendo sobre a IVG constituiu portanto uma derrota para todos aqueles que vêem a laicidade da República como uma condição necessária da democracia e da própria liberdade.

  2. Aproveitando o ascendente que o resultado do referendo lhe conferiu sobre a República, e a disposição favorável de um Governo onde pululam os apreciadores de hóstia, a ICAR decidiu pedir a revisão da Concordata salazarista que lhe confere privilégios excepcionais.

  3. Recorde-se que -no meio de algum secretismo- o Executivo vem preparando uma Lei da Liberdade Religiosa assente em três premissas:

    (i) a manutenção dos privilégios únicos da ICAR face às leis de uma República constitucionalmente laica;

    (ii) a esmola de alguns direitos anódinos às confissões inofensivas (o que resta da Comunidade Judaica e os Muçulmanos, essencialmente imigrantes e seus descendentes);

    (iii) a institucionalização legal do preconceito social que tão laboriosamente foi construído contra as confissões minoritárias que -pelo seu crescimento e capacidade de atracção- ameaçam o poder da ICAR (nomeadamente a IURD, a Igreja Maná, e as Testemunhas de Jeová).

  4. A nossa posição face à revisão da Concordata é muito simples: a única revisão desejável é a sua abolição.

    Quanto à Lei da Liberdade Religiosa, não compreendemos a sua necessidade. O único dever de uma República laica para com as diversas confissões religiosas é o de assegurar a conformidade da acção destas com as leis gerais da República, em particular o de garantir a liberdade de culto.

    Será inadmíssivel que a República hierarquize qualitativamente as igrejas, estabelecendo acordos com umas e excluindo deliberadamente outras, e mantendo simultâneamente os privilégios da religião favorita do Sr. Primeiro-ministro.

    Infelizmente, face à correlação de forças actual, e face à continuada fraqueza e apatia do sector laico, tememos bem que a laicidade da República não garanta a igualdade de tratamento das diversas religiões.

Agosto de 1998

Deriva conservadora?

  1. No dia posterior ao referendo de 28 de Junho, o cardeal Angelo Sodano (Secretário de Estado da ditadura vaticana, de visita a Lisboa) congratulou-se publicamente com o resultado daquele acto democrático. Para além de reprovar a ingerência nos assuntos de outro Estado, «República e Laicidade!» lamenta profundamente não poder comentar eleições ou outros actos democráticos que tenham lugar no Estado vaticano, mas, dada a natureza ditatorial da seita católica, estes ou aquelas nunca se realizaram, nem jamais se realizarão.

  2. O mês de Agosto de 98 veio sobretudo confirmar a deriva conservadora de alguns sectores da opinião jornalisticamente expressa. Assim, algumas das vozes que clamavam que se prevenissem as gravidezes indesejadas através da educação sexual e da anti-concepção, vieram agora a terreiro clamar contra as tímidas tentativas do actual Governo democrata-cristão de introduzir a educação sexual nas escolas. Ficámos então a saber que afinal a educação sexual, cujo âmbito julgáramos restrito à higiene e biologia humanas, só será aceitável se acompanhada de uma certa «moral tradicional». Fica ao cuidado do leitor descobrir qual é esta última.

  3. Numa almoçarada madeirense, o Presidente do Governo Regional local admoestou um conviva por ter falado em «sociedades secretas, num dia em que o festeiro é este banco». O banco era o BCP, a referência fora à Opus Dei.

  4. O Governo português -através do Secretário de Estado José Lello- ignorou as solicitações de emigrantes portugueses residentes em França para que fizesse funcionar os canais diplomáticos no sentido de ajudar à resolução de um diferendo entre a seita «Testemunhas de Jeová» e o Estado francês. Os emigrantes portugueses membros da seita mencionada pretendem escapar ao imposto que a República francesa lançou sobre os donativos entregues nos templos. Aconselhamos à Sociedade Torre de Vigia que negoceie com o Governo na base do apoio eleitoral que puder fornecer-lhe. Asseguramos que os problemas -de impostos religiosos ou outros- desaparecerão.

  5. Segundo notícias vindas a público, uma senhora portuguesa que se encontrava paralítica terá manifestado algumas melhoras. Na sequência desta ocorrência banal, alguns indivíduos da região de Leiria pediram a Roma a beatificação dos dois «pastorinhos de Fátima» já falecidos. Na ausência de novas pseudo-alucinações, estas beatificações valerão por vários subsídios ao turismo religioso.

    À hora do fecho deste Boletim, não haviam sido confirmados os rumores sobre a beatificação iminente de António Guterres.

Setembro de 1998

Vários pesos e várias medidas

  1. A imparcialidade face aos diversos cultos, a que os nossos jornais estão deontologicamente obrigados, é seguida de formas muito díspares. Assim, o diário «Público», sempre vigilante quanto às actividades da IURD, escreveu (7/9) que esta seita «sonega impostos e explora a crendice popular» num texto que não era de opinião, e não hesitou em aventar «suspeitas» de ligações desta ao «tráfico de drogas e de armas»(idem) -ligações essas que não estão provadas. Em contraste, quaisquer referências às -comprovadíssimas- ligações da muito mais perigosa ICAR ao submundo do crime são mencionadas de forma eufemística, e sem adjectivação (ver edição de 21/9). Do mesmo modo desigual, quando este jornal noticiou (a 20/9) uma marcha da Aliança Evangélica, fê-lo realçando os pormenores caricatos, e as opiniões (sarcásticas) de transeuntes anónimos foram citadas em contraponto às de fiéis; pelo contrário, em qualquer relato de peregrinações a Fátima, o tom é sempre respeitoso, quase cúmplice, nenhum céptico é entrevistado, e muito menos se fala em «exploração da crendice popular».

    Mais imparcial, o «Diário de Notícias» referiu a marcha da Aliança Evangélica de forma relativamente neutra (20/9) -fazendo-se mesmo eco das críticas desta à anunciada Lei da Liberdade Religiosa- e, corajoso, não hesitou em sublinhar, numa curta nota (a 29/9), as «circunstâncias ainda por explicar» da morte de JP1, frisando que «oficialmente, foi um ataque cardíaco». Contudo, mesmo este jornal, ao referir-se à detenção do foragido Licio Gelli -e foi o único a fazê-lo, a 11/9- não explicou aos seus leitores o papel central que este desempenhou no escândalo do Banco Ambrosiano, evitando sempre mencionar o Opus Dei.

    A completar o quadro temos o semanário «Expresso», que não sendo panfletariamente anti-IURD como o «Público», não disfarça o seu catolicismo militante, visível no destaque regularmente concedido às posições públicas da hierarquia da ICAR. O mesmo jornal publicou há alguns meses um longo trabalho sobre a Igreja da Cientologia, embora nunca se tenha preocupado em fazer o mesmo sobre o omnipresente Opus Dei, que visa bem mais alto.

  2. Karol Wojtyla beatificou o banqueiro Giuseppe Tovini, fundador do Banco Ambrosiano. Recorde-se que este banco foi parceiro do banco do Vaticano (o IOR-Instituto das Obras Religiosas), antes de ter falido em circunstâncias escandalosas. JP2 garantiu na ocasião que o banqueiro «está hoje na glória do Paraíso», e proferiu um dito deste novo beato: «os nossos filhos sem fé jamais serão ricos, graças à fé jamais serão pobres». «República e Laicidade!» confessa a sua incapacidade para acrescentar qualquer comentário a estas palavras cristalinas do monarca do Vaticano.

  3. O Ministério da Cultura encontra-se negociando com a ICAR o usufruto dos templos e restante património cultural que a dita instituição acumulou ao longo dos séculos, geralmente à custa do erário público. «República e Laicidade!» lamenta que a ICAR não só não pague renda ao Estado como ainda se aproveite gananciosamente do interesse artístico que suscita o recheio de alguns templos para cobrar bilhetes a quem os queira visitar, conforme testemunhas comprovaram recentemente na Igreja de S. Domingos (Porto).

Outubro de 1998

Parabéns à República e a Saramago

  1. No octagésimo oitavo aniversário da implantação da República, os responsáveis políticos reduziram mais uma vez a um mero ritual umas celebrações que teriam maior significado se houvesse coragem para reclamar o muito de actual que há na herança republicana. Nomeadamente, seria o momento adequado para um Presidente que foi eleito por forças laicistas (e que acreditamos sinceramente que partilhe esses valores) se pronunciasse sobre a iminente revisão da Concordata, pedindo a sua abolição. Seria também o momento adequado para lembrar a um país cada vez mais diverso social, religiosa, e «étnicamente», que o ideal de 1910 era também o da República como comunidade de cidadãos iguais, sem privilégios de nascimento nem de condição social.

    Salvou-se o discurso de Jorge Sampaio, no qual o Presidente criticou o crescente desfasamento entre os políticos e os cidadãos. O povo, esse, não fora convidado e por isso não ouviu.

  2. O prémio Nobel da literatura de 1998 foi atribuído a José Saramago, escritor que fez de valores progressistas regra de vida e tema literário. Desta modesta tribuna, endereçamos os nossos parabéns ao escritor, a quem só pedimos que não amanse a sua ironia.

    As reacções de desagrado, vindas dos quadrantes mais beatos e reaccionários, não se fizeram esperar. Como sempre, a ditadura vaticana não deixou os seus créditos por mãos alheias, e lamentou a «visão substancialmente anti-religiosa» e o «comunismo inveterado» do escritor premiado, indo ao ponto de acusar a pacata academia escandinava de «orientação ideológica». O cidadão Duarte Pio, putativo pretendente a um trono inexistente, lamentou também, embora confessadamente nunca tenha lido Saramago. Reacção semelhante tiveram os bispos de Leiria e de Bragança.

  3. Sem qualquer sombra de orientação ideológica, Wojtyla beatificou o bispo croata Alojzije Stepinac, que se notabilizou em vida por ter colaborado entusiasticamente com o regime fascista de Ante Pavelic, notável pelo genocídio de judeus, ciganos, e principalmente de católicos ortodoxos. JP2 comparou o bispo fascista a uma semente que caiu à terra e dará fruto. Efectivamente, a Croácia de hoje, «étnicamente pura», já não conta muitos católicos ortodoxos. Aliás, nem as «rainhas» de concursos de beleza podem ser não-católicas, sob pena de ser-lhes retirada a coroa. O presidente Franjo Tudjman (que nega os massacres dos anos 40) recebeu das mãos de Wojtyla a factura, na forma de um volumoso dossiê pedindo a «devolução» de terras e edifícios à filial croata da ICAR.

  4. O Ministério da Saúde assinou um protocolo com a ICAR, através do qual se comprometeu a financiar esta seita num mínimo de 30 mil contos, para que efectue, entre outras, acções de educação sexual e planeamento familiar. Este acordo de cooperação coloca a ICAR numa posição de privilégio face às outras confissões religiosas no acesso ao sistema de saúde, dando-nos assim uma preciosa indicação sobre o espírito que presidirá à elaboração da Lei da Liberdade Religiosa.

    Entretanto, o Governo regional da Madeira declarou que não acatará qualquer decisão impondo uma disciplina de educação sexual nas escolas. Não se ouviram quaisquer protestos entre aqueles que apenas há quatro meses juravam que com educação sexual e planeamento familiar não haveria necessidade de legalizar a IVG.

Novembro de 1998

Arrependimentos hipócritas e genuinidade papal

  1. O Decreto-Lei 329/98 de dois de Novembro estipula que todas as confissões religiosas poderão leccionar -a partir de agora em regime de permanência- «Religião e Moral» nos estabelecimentos de ensino público. Lamentamos profundamente que assim seja. A instrução religiosa é um direito, mas não um dever da República.

  2. A filial inglesa da ICAR prepara uma declaração de arrependimento público pelos crimes cometidos durante os cinco anos do reinado de Maria, a Católica, durante os quais foram queimados vivos cerca de 300 protestantes. Recorde-se que o Vaticano recomendou, em 1995, que as suas filiais se arrependessem por certos «pecados» não-especificados. Tipicamente, JP2 pediu recentemente «perdão» pelo anti-judaísmo da ICAR, negando porém que este tenha contribuído para o anti-semitismo nazi. Curiosamente, este estado de espírito tão penitente não impediu Karol de em Outubro passado beatificar o bispo Stepinac (um dos exemplos mais flagrantes dessa mesma cumplicidade entre o catolicismo e os fascismos), nem impediu Ratzinger de abrir este mês um processo inquisitorial contra um teólogo belga acusado de defender o pluralismo religioso.

    Sabendo nós que a filial francesa da instituição romana já pediu «perdão» pelo seu apoio ao estado fascista francês de Vichy (apoio que «foi muito além da tradicional obediência aos poderes estabelecidos», nas palavras dos 30 -em 111- bispos franceses que assinaram) esperaríamos agora que o clero português se «arrependesse» também. Serão a crueldade extrema da inquisição portuguesa, e a proximidade temporal da colaboração clerical com o fascismo, que tornam difícil ao clero português a participação nesta operação publicitária vaticana?

  3. Num dos acessos de sinceridade que o caracterizam, Karol Wojtyla lembrou a alguns tontinhos que lhe foram pedir a «democratização» da ICAR que «a [ICAR] não é uma democracia, e ninguém de baixo pode decidir sobre a verdade». Recordamos a estes e outros ingénuos que este cidadão polaco tem pouco apreço pela democracia e a liberdade, tendo mesmo afirmado num dos seus documentos filosóficos que «a liberdade não se realiza nas opções contra Deus. Efectivamente, como poderia ser considerado um uso autêntico da liberdade a recusa de se abrir àquilo que permite a realização de si mesmo? No acreditar é que a pessoa realiza o acto mais significativo da sua existência»(JP2 in «Fé e Razão»).

    Estes fervores totalitários do monarca vaticano não impediram os bispos portugueses de convidar a imprensa para o discurso inaugural da sua conferência episcopal, no que constituiu uma demonstração de «abertura» completamente inócuo.

  4. Por ocasião do aniversário da inauguração da mesquita de Lisboa, o Presidente Jorge Sampaio discursou aludindo «ao fanatismo e dogmatismo» como tendo «graves e prolongadas consequências» e como sendo «causa de decadência», referindo ainda que «os muçulmanos foram vítimas dessa intolerância» . «República e Laicidade!» aplaude estrondosamente estas palavras -para mais ditas na presença do Cardeal Policarpo, representante da instituição inquisitorial- e aproveita para lembrar que, somando estas desculpas às apresentadas à comunidade judaica, falta apenas agora pedir perdão à comunidade Hindu.

  5. Durante uma acção de campanha contra a regionalização, o político direitista Manuel Monteiro fez-se acompanhar pelo pároco que profere regularmente homilias pelo defunto ditador Oliveira Salazar. Na ocasião, esse padre declarou enérgicamente ser «necessário expulsar os mouros do país, e integrar o país na sua história autêntica». Ignoramos o que isto significa, mas arrependimento não parece.

Dezembro de 1998

Prenda da época

  1. No mês em que se celebrou a velhíssima festa pagã do solstício de Inverno -hoje basicamente um ritual de celebração do capitalismo consumista- o Conselho de Ministros fez constar que afinal a futura Lei da Liberdade Religiosa não exigirá 30 anos de permanência no país para que uma confissão religiosa seja reconhecida pelo Estado, mas sim 60 anos. Não foram apresentadas quaisquer razões para esta fasquia arbitrária. Porém, a escolha do ano anterior à Concordata fascista permite cumprir o objectivo essencial que tem norteado o Governo na elaboração desta Lei: cortar as pernas aos novos grupos religiosos. O Governo anunciou também estar na disposição de instaurar isenções fiscais para os sacerdotes das religiões protestantes, muçulmana e judaica. Parece-nos uma medida errada e discriminatória. Do mesmo modo, igualmente não concordamos com as isenções de que beneficiam actualmente os sacerdotes católicos.

  2. Numa carta pastoral destinada a assinalar os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos -que o Vaticano nunca ratificou- os representantes portugueses do Estado teocrático vaticânico, reunidos em Conferência Episcopal, lamentaram, entre outras coisas menores, a ocorrência de casos de «pedofilia» em Portugal. O nosso espanto é grande: quer-nos parecer que a ICAR portuguesa tem no seu seio pelo menos um grande praticante desta perversão (na sua variante homossexual) e não nos recordamos nem da excomunhão desse sacerdote, nem sequer de críticas da hierarquia icaresca aquando da sua condenação em Tribunal -ou aquando da sua fuga para o Brasil-, e no entanto trata-se de um assassino condenado como tal pelos Tribunais da República.

  3. Foi julgado este mês em Tribunal mais um caso de IVG clandestina. Realizam-se cerca de 20 a 22 mil abortos clandestinos, por ano, em Portugal. Em 1997, cinco pessoas foram condenadas por este crime.

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