Boletins Mensais de 2001


Janeiro de 2001: Guterres é Opus Dei?

Fevereiro de 2001: A caminho do Estado democrático confessional

Março de 2001: ICAR acusada de encobrimento sistemático de crimes sexuais


Janeiro de 2001

Guterres é Opus Dei?

  1. Segundo informações do «Réseau Voltaire», o Primeiro-ministro português António Guterres é membro supra-numerário do Opus Dei.

    Um membro supra-numerário do Opus Dei é obrigado a ter um confessor membro do OD, a rezar o rosário diáriamente, a frequentar a missa diáriamente ou quase, e a contribuir financeiramente para a Obra. Pode casar-se, e o seu objectivo é atingir uma posição de poder político ou económico em que possa servir melhor a Obra.

    Recorde-se que o Governo de Guterres cedeu um terreno no centro de Lisboa à cooperativa Universitas (uma fachada institucional do Opus Dei) por um terço do preço que exigiu, por um terreno de área semelhante, a uma outra universidade (ver Boletim de Setembro de 2000), numa operação imobiliária em que o Estado foi lesado em pelo menos três milhões de contos.

  2. A ICAR portuguesa promoveu um «Jubileu dos políticos», no fundo uma forma de fazer ajoelhar o poder temporal (e no caso democrático) perante a instituição romana. Celebrado no dia 4 de Janeiro no templo de São Vicente de Fora, contou com a presença fatal do Primeiro-ministro António Guterres (que aliás, assistiu à missa ao lado de Mota Amaral, um confesso membro numerário do OD); dos ministros Oliveira Martins e Pina Moura; de alguns autarcas (como Isaltino Morais e Edite Estrela); e de uma numerosa delegação parlamentar onde se contavam pelo menos seis deputados do PPD/PSD, quatro do CDS/PP, quatro do PS, e, em mais um sintoma da clericalização da esquerda portuguesa, dois deputados do PCP (Octávio Teixeira e António Filipe).

  3. A eleição presidencial teve lugar no dia 14 de Janeiro, num clima de indiferença generalizada e sem que qualquer dos candidatos tomasse uma posição explícita a favor da laicidade. No final de um mandato que ficou marcado, entre outros acontecimentos, pela ida de Sampaio a Fátima, e no início de um mandato presidencial em que poderá ser apreciada pelo Presidente a primeira Lei da Liberdade Religiosa desde 1971, pareceria apenas natural que a questão da laicidade do Estado fosse abordada. Lamentavelmente, não foi assim.

    Perante a chocante apatia de todas as autoridades políticas e judiciais do país, voltaram a registar-se «boicotes» eleitorais em várias localidades do país. Em quatro delas (Lazarim e Canas de Senhorim, no distrito de Viseu, Quintelas, no distrito de Vila Real, e Vila Verde, no distrito da Guarda), o direito de voto dos mais de quatro mil cidadãos e cidadãs aí inscritos acabou por ser impossibilitado por acções levadas a cabo em nome da suposta maioria dessas comunidades. Será deslocado recordar que o direito de voto é atribuído pela República aos cidadãos como indivíduos, e não a «comunidades» que poderiam retirá-lo a seu bel-prazer aos cidadãos residentes numa dada localidade?

  4. O mês de Janeiro trouxe uma pequena vitória para a laicidade em Portugal: o subsídio anual de mais de meio milhão de contos conferido pelo Estado à Universidade Católica foi revogado. Note-se que nunca fora explicitado o fim específico a que se destinava esta verba, ou sequer apresentada qualquer justificação para a sua atribuição, apesar de este dinheiro sair do Orçamento Geral de Estado há décadas. Será sem dúvida prematuro concluir que esta decisão isolada poderá assinalar uma viragem na postura do Executivo face à laicidade do Estado. Porém, um dos seus efeitos mais benéficos foi sem dúvida ter despoletado o debate sobre o estatuto dúplice da Universidade Católica, que consegue ter simultâneamente privilégios de universidade pública e liberdades de universidade privada.

Fevereiro de 2001

A caminho do Estado democrático confessional

  1. Na Assembleia da República, a discussão na especialidade da Lei da Liberdade Religiosa, aprovada na generalidade há quase um ano, encontra-se prestes a terminar. As propostas dos partidos à esquerda do PS, os únicos que têm defendido alterações laicistas, têm sido sistemáticamente repelidas pelo sector maioritário do PS, dirigido nesta questão por Vera Jardim. Entre os aspectos mais negativos desta lei, salientamos que passaremos a ter uma todo-poderosa Comissão da Liberdade Religiosa estatal com membros nomeados directamente pela ICAR, que a Concordata ficará ressalvada (e que, portanto, a ICAR manterá o seu estatuto distinto), e que será criado um «imposto de religião». Esta Lei representará a institucionalização do regime de privilégio da ICAR numa República que, nominalmente, ainda é laica.

  2. O Censo de 2001 terá lugar em Março. O número de pessoas residentes em Portugal que declararam ao censo ser católicas decaiu significativamente entre os dois últimos censos, os únicos realizados durante o período democrático. Em 1991, 78% das pessoas que responderam ao Censo declararam-se católicas (o que corresponde a 95% das que responderam à pergunta -facultativa- sobre religião), contra 81% em 1981 (o que correspondera também a 95% das pessoas que haviam respondido à pergunta sobre religião). As regiões abaixo da média nacional de catolicismo declarado eram o Alentejo (64%), Lisboa e Vale do Tejo (69%), e o Algarve (69%).

  3. A retirada do injustificável subsídio do Ministério da Educação à Universidade Católica Portuguesa provocou uma reacção furibunda da ICAR. No fim-de-semana de 3 e 4 de Fevereiro, os sacerdotes católicos aproveitaram as missas para, em todo o país, fazer a defesa política da UCP e dos seus objectivos. A igualmente muito justa decisão do Governo de retirar à UCP a possibilidade de criar novos cursos sem autorização ministerial -que a equipara às restantes universidades privadas neste aspecto- foi também criticada.

  4. A Câmara Municipal de Oeiras contribuiu com cem mil contos para a construção de um novo templo católico em Miraflores, Algés, o que corresponde a cerca de um terço do seu custo. A Câmara cedeu também o terreno necessário, por sinal situado no centro da localidade. Este é apenas um exemplo dos muitos abusos dos dinheiros públicos que regularmente têm lugar, em todo o país, a favor da ICAR.

Março de 2001

ICAR acusada de encobrimento sistemático de crimes sexuais

  1. Foi tornado público um relatório confidencial da autoria de uma voluntária católica da Caritas Internationalis, Maura O´Donohue, onde são denunciados crimes sexuais e abusos de poder cometidos por um grande número de membros da hierarquia católica romana num conjunto variado de países. A autora afirma que a SIDA, que afecta uma proporção crescente de padres, leigos católicos e religiosas em África e nos outros continentes, originou uma mudança do comportamento sexual do clero católico. Havendo perdido a confiança nas prostitutas a que recorriam habitualmente, os padres intensificaram o assédio sexual sobre as freiras, outras religiosas, e leigas. O relatório nota que os padres se utilizam frequentemente da sua posição de poder social, espiritual e financeiro para obter favores sexuais de freiras e religiosas em geral, ou de candidatas à vida religiosa. O resultado imediato destes eventos tem sido um aumento de gravidezes indesejadas, de abortos, e de disseminação da SIDA. O procedimento da hierarquia católica romana em todos estes casos tem sido, sistematicamente, o de expulsar as mulheres utilizadas, permitindo aos padres envolvidos continuarem a exercer as suas funções. Consequentemente, estas mulheres têm sido obrigadas a tornarem-se mães solteiras, por vezes em países onde o estigma social contra este tipo de família é fortíssimo. Muitas destas ex-religiosas acabam por cair na prostituição. Muitos padres têm aconselhado as religiosas que deles engravidam a abortarem, geralmente aproveitando-se da discreta cumplicidade de instituições hospitalares católicas. Pelo menos uma freira morreu em consequência de um aborto, após um padre a ter engravidado. Num caso típico descrito no relatório, uma candidata à vida religiosa foi violada pelo padre que lhe deveria dar o certificado necessário para entrar na congregação religiosa que escolhera, e consequentemente engravidou. Ao descobri-lo queixou-se ao bispo local, que se limitou a aconselhar o padre em questão a partir num retiro de duas semanas, não tendo comunicado o ocorrido à polícia. Noutros casos de violação, as freiras ou mulheres candidatas à vida religiosa foram igualmente expulsas, enquanto os padres violadores são enviados para um retiro, ou, na pior das hipóteses, transferidos para outra paróquia. Jamais estes casos são denunciados às autoridades civis, isto em países onde a violação é um crime previsto no Código Penal. A hierarquia da ICAR, nota o mesmo relatório, tem igualmente boicotado todas as tentativas de rodear as pessoas infectadas com VIH ou sofrendo de SIDA de uma atmosfera de compaixão e solidariedade, preferindo geralmente isolá-las socialmente e marginalizá-las do ponto de vista humano. O relatório, datado de 1995 mas só agora publicado pelo «National Catholic Reporter», foi escrito a partir da experiência da autora e de outros voluntários católicos em 23 países dos cinco continentes, do Brasil ao Botsuana e ao Malauí, da Itália à Nova Guiné, da Irlanda e dos EUA à Índia e às Filipinas. Outros relatórios submetidos posteriormente à apreciação das autoridades do Vaticano não levaram a qualquer alteração da política interna da ICAR para estes assuntos. Este relatório, curiosamente ignorado pela generalidade da Comunicação Social portuguesa, vem provar mais uma vez que a ética católica está longe de melhorar humanamente os próprios sacerdotes da ICAR, e que a instituição romana, ao invés de denunciar estas injustiças sobre os nossos semelhantes, reage de forma corporativa, protegendo os seus antes dos outros, mesmo quando os seus são criminosos, e particularmente quando as vítimas são mulheres.

  2. A Lei de Liberdade Religiosa permaneceu durante todo o mês de Março na Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias. Durante este mês, o Bloco de Esquerda demarcou-se definitivamente do processo, após algumas oscilações, e o PCP apresentou propostas no sentido de revogar o Acordo Missionário (caduco para todos os efeitos desde a descolonização), e exigindo que os capelães militares deixem de ser equiparados a oficiais das Forças Armadas.

  3. A ICAR realizou no fim de semana de 10 e 11 de Março uma contagem das pessoas presentes nas suas cerimónias de culto. Esta iniciativa foi capciosamente apresentada como sendo um «censo», expressão esta que vingou entre alguma imprensa mais próxima da ICAR (caso do semanário «Expresso»). O objectivo último da operação, é, obviamente, a desvalorização do verdadeiro censo, realizado com rigor científico pelo Estado e englobando a totalidade da população residente em Portugal, e que teve o seu «momento de censo» no dia 12 de Março. A ICAR receia que haja uma formidável queda no número de católicos declarados como tal ao censo 2001.

  4. Segundo o jornal «Público» de 30 de Março, o Primeiro-Ministro garantiu publicamente, na sessão solene de inauguração da Escola das Artes do Centro Regional do Porto da Universidade Católica Portuguesa, que «a UCP deve ter um estatuto singular, que a distinga do ensino público, mas que de maneira nenhuma a compare ao ensino privado», e que portanto «é inteiramente justificável» o apoio do Estado à UCP. Estas declarações do Primeiro-ministro tentavam serenar os sectores católicos, indignados por o Ministério da Educação ter decidido retirar à UCP um subsídio anual injustificado. Registe-se, para o futuro, que no discurso do católico Guterres se separa explicitamente a Universidade Católica das restantes instituições universitárias privadas.

  5. Paulo Portas, líder do CDS/PP, afirmou em Boliqueime que existe em Portugal «uma certa perseguição da Igreja» que se consubstanciaria em «atitudes» avulsas como a retirada do já famoso subsídio injustificado à Universidade Católica, as interrogações parlamentares sobre a necessidade de sacerdotes católicos em cerimónias oficiais, e a possível revisão do estatuto dos professores de religião e moral. PP aproveitou o ensejo para protestar o seu amor infinito à ICAR (que segundo ele «faz parte da estrutura da identidade de Portugal»), e para proclamar que «nem todos os deputados de esquerda juntos conseguem fazer pelos mais pobres e mais humildes o que faz uma paróquia da Igreja», esquecendo convenientemente que a caridade que a ICAR faz, é, directa ou indirectamente, feita com o dinheiro do Estado. PP acha também que a fé é uma questão íntima de cada cidadão, mas curiosamente não se coíbe de avisar a imprensa de quando vai à missa.

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