EDUCAÇÃO - IGGe    Instituto Galileo Galilei para a Educação

Reportagem do jornal ''O Estado de São Paulo'' - 01/out/2000

Sistema de ciclos oculta distorções do ensino

Número de alunos atendidos aumenta, mas os problemas de aprendizagem continuam - Segundo uma mãe de aluna, vive-se num sistema de ''enganação coletiva''

MARTA AVANCINI

A Escola Estadual Professora Ilka Jotta Germano, na zona sul de São Paulo, aprovou todos os alunos da 5ª à 8ª série no segundo bimestre deste ano. O índice de 100% seria um atestado da qualidade do ensino, mas, na verdade, pode mascarar um problema da rede estadual paulista: a promoção automática dos estudantes, mesmo quando não aprendem nada ou quase nada.
"A política educacional de hoje foi montada para mostrar resultados estatísticos a curto prazo", diz o professor R., que há oito anos dá aulas em escolas estaduais e municipais da Grande São Paulo. "Quase não há preocupação com o processo de ensino e aprendizagem, só com os números", afirma.
Ele se refere à reforma realizada pelo governo estadual no ensino fundamental em 1998, que resultou na troca das séries por dois ciclos, um da 1ª à 4ª série, e outro da 5ª à 8ª. R. e outros professores ouvidos pelo Estado aceitaram dar entrevistas sob a condição de não serem identificados, por temerem represálias por parte da Secretaria de Estado da Educação.
São Paulo foi um dos pioneiros na adoção dos ciclos. Hoje, 80% dos 6 milhões de crianças matriculadas no ensino fundamental freqüentam escolas que funcionam nesse sistema, segundo dados do Censo Educacional do Ministério da Educação (MEC), divulgados na semana passada. No Brasil, são 23% dos 36 milhões de matriculados no ensino fundamental.
 
Números - De fato, uma consulta às estatísticas revela aumento significativo no número de atendimento e no desempenho dos alunos da rede estadual. Atualmente, 4 milhões de crianças cursam o ensino fundamental em escolas estaduais, responsáveis pela maior parte do atendimento. Em 1980, eram 3,4 milhões. Em dez anos, a aprovação subiu cerca de 18 pontos porcentuais, saltando da faixa de 65% a 70% para a de 90%.
Esses indicadores transformariam São Paulo em um exemplo, não fosse por um aspecto: há fortes indícios de que a qualidade não está acompanhando a quantidade.
"Houve um aumento significativo no número de pessoas na escolas, mas elas continuam com problemas", diz o educador da Universidade de São Paulo Romualdo Portela de Oliveira, especializado em política educacional.
Problemas, diz, ligados à qualidade da formação da criança que sai da escola pública.
Os alunos de 5ª série do professor R. são um exemplo. O Estado teve acesso a 76 redações escritas por eles em 19 de setembro. Os textos - sobre a violência nas escolas - apresentam problemas sérios de ortografia e de organização de idéias, que revelam graves falhas de alfabetização cuja correção pode levar anos, segundo especialistas (leia texto nesta página).
"É verdade que eles aprenderam a ler e a escrever antes de os ciclos serem adotados, mas o atual sistema não está contribuindo em nada para a evolução dessas crianças, muito pelo contrário", diz R. "Os alunos não se dedicam e faltam muito, porque sabem que serão aprovados no fim do ano."
A exemplo de tantos outros professores, R. é a favor dos ciclos, por considerar que o sistema aumenta as oportunidades de as crianças aprenderem.
A idéia é relativamente simples: como as séries são substituídas pelos ciclos e só existe a possibilidade de o aluno ser retido no fim do ciclo, ele teria mais chances de assimilar o que o professor ensina no seu ritmo, sem a pressão de obter uma média a fim de passar no fim do ano.
E, embora haja unanimidade sobre as vantagens do ciclo para o aprendizado, na prática a passagem de um sistema para outro foi brusca e acabou reforçando deficiências antigas. "Eliminaram a reprovação, mas não puseram nada no lugar", afirma a professora N., que leciona em duas escolas estaduais da zona oeste da capital.
 
Exigência - A nova legislação garante a aprovação do aluno se ele freqüentar 75% das aulas durante o ano. O cálculo é feito a partir da presença nas aulas de todas as disciplinas e não em cada uma individualmente - ou seja, ele pode perder todas as aulas de história e mesmo assim avançar para a série seguinte sem saber nada.
Além disso, a avaliação mudou: a nota da prova não é mais determinante para definir se o aluno aprendeu ou não. O professor deve levar em conta outros fatores, como a participação em sala de aula e trabalhos, que podem compensar uma nota baixa na prova, possibilitando que o aluno seja aprovado e avance no seu ritmo, a chamada progressão continuada.
Também deve existir uma estrutura paralela de recuperação, para que a criança recupere as defasagens. A dificuldade, porém, é tirar a proposta do papel e transformá-la em realidade, de modo a atender as necessidades dos pais e das crianças.
A empregada doméstica Maria Aparecida dos Santos está pensando em contratar um professor particular para seu filho Kleberson, de 10 anos, porque ele não consegue acompanhar seus colegas de classe.
O garoto estuda na 4ª série de uma escola estadual em Mirandópolis, bairro de classe média da zona sul, e foi encaminhado para a recuperação paralela.
O problema é que as aulas não são dadas na escola onde ele estuda, mas em outra unidade, a 3 quilômetros da primeira. "Como trabalho, não tenho meios de levar e buscar o menino", argumenta.
Outra solução que ela está estudando é pedir à professora que impeça o avanço do menino para a 5ª série. "É melhor esperar mais um ano até ele pegar o ritmo", defende a mãe. "A professora é boa e ele está melhorando aos poucos."
Mas como nem todos os pais estão tão atentos quanto Maria Aparecida ao que ocorre na escola dos filhos, cria-se um clima de liberalidade, que os professores alegam não conseguir controlar, atribuindo a responsabilidade pelo fracasso dos alunos à política adotada pela Secretaria da Educação. "O estudante sabe disso e está confundindo aprovação automática com falta de limites dentro da escola", diz N. "Ele conhece bem os direitos, mas esqueceu os deveres", analisa.
E, pelo depoimento de estudantes, ela parece ter razão. Além das faltas, a ausência de limites também se manifesta na atitude dos alunos frente às tarefas que devem cumprir. "Quando o professor pede um trabalho, eu copio mesmo, porque sei que todo mundo vai tirar A e passar de ano", diz a estudante E., ex-aluna de N. Ela estuda na 7ª série em uma escola estadual no Butantã, na zona oeste.
 
Confusão - Assim, o que deveria funcionar como uma proposta inovadora está criando confusão, mal-entendidos e desorganizando a escola. "A transição foi mecânica, não houve discussão e os professores não foram preparados para ela", diz Maria Isabel Noronha, presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp).
No dia-a-dia da escola, isso se traduz em uma rejeição à aplicação da idéia da progressão continuada, somada à falta de estrutura e à formação deficiente do professor para trabalhar conforme os novos parâmetros.
"A dificuldade existe de fato, não é fácil para o professor, mas vamos enfrentar o problema ou voltar ao passado?", questiona a vice-presidente do Conselho Estadual da Educação, Sônia Penin. Ela lembra que a progressão continuada foi incorporada à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996 após discussão entre os educadores. "É uma idéia hegemônica." A idéia é apoiada pela secretária estadual da Educação, Rose Neubauer. Ela alega que a mudança se sustenta em demandas do professorado e está sintonizada com as conclusões de estudos científicos.
Mas esse tipo de argumento não convence a dona de casa Sandra Regina Bargieri de Brito, mãe de duas meninas que estudam em uma escola estadual na Vila Olímpia, bairro de classe média alta na zona sul. "O aluno está amparado por uma legislação fraca e o professor não consegue controlar a situação", diz Sandra, que faz parte da Associação Comunitária Pró-Educação de São Paulo (Acepesp). Na sua opinião, vive-se uma "enganação coletiva", que inclui os pais. "Eles vêem o boletim do filho com boas notas e acham que está tudo bem", diz. Por isso, defende o retorno ao sistema seriado.
 
Infra-estrutura - Outro ponto, avalia a presidente da Apeoesp, é que os ciclos agravaram deficiências antigas da rede: salas com até 45 alunos, sobrecarga de trabalho dos docentes e falta de material para desenvolver a proposta pedagógica dos ciclos.
Estudos da Apeoesp revelam que um professor de língua portuguesa do segundo ciclo do ensino fundamental (5ª à 8ª) tem, em média, 180 alunos, se der cinco aulas semanais. "Não é possível acompanhar as deficiências individuais em salas tão cheias." Em disciplinas com carga horária menor, como história e geografia, pode-se chegar a quase 700 alunos por professor.
Em resumo, analisa a professora de metodologia de ensino da USP Idméia Semeghini-Siqueira, o problema é o descompasso entre a proposta de ciclos e da progressão continuada e a mentalidade predominante na rede. "O problema é que os valores da escola são os mesmos desde a década de 50", diz ela, que coordena o programa de estágios dos futuros graduandos da universidade na área de licenciatura em língua portuguesa.
Assim sendo, enquanto a escola não receber respaldo material e assumir sua responsabilidade quanto à qualidade do ensino, haverá crianças como o aluno de R., que está na 5ª série e escreve que "o ensino é ruim, porque, antigamente, as professora ia em cada carteira espricar como se fais a lição e tamben as professora, manda os aluno suletras as letra."

REDAÇÕES A reportagem do ''Estado de S.P.'' consegue um lote de redação feitas por alunos da 5a Série de uma escola.

Os textos de alunos da 5.ª série obtidos pelo Estado são aterradores, tanto em termos de ortografia quanto de organização de idéias. Eles escrevem como falam e falam errado. Muitas vezes, suas frases só fazem algum sentido se lidas em voz alta.

“Eu axo que nas escolas devia ter poliscia, porque tem muita briga e também não tem muitos fucionarios nas escola, também os aluno pinxa muito nas salas de aula”
 
“E terivelmente violento um minino este dias sem quere porque o outro empurou ele ele esbarou no outro muleque ele já foi pra sima dele ai ele chingou o muleque”
 
“A violencia começo (começou) assim um impresto (emprestou) a borracha para o outro colega ai, u outro perde o (perdeu) a borracha ai o outro falo: daí minha borracha que eu vou usar agora o meu eu perdi o outro falo: se vai da outra (você vai dar outra). eu não vou dar não então eu ti pego no hora da saída. aí começo. ai porrada de lá porrada de cá e assim vai. aí o ou tro tiro arma do bolso e atiro: pro que isso pessoal por causo de uma borracha seis (vocês) vão brigar”
 
“tem muito gritação nos recreios e também devia deixar vin de bermuda. na escola que eu estudo só pode vin de causa (calça) e também tem de ter cartirinha para ninguêm cabrular aula. quem usa grogas (drogas) eu falo: que você vai morrê muito sedo por que a groga fais mau a saude o comlhaque (conhaque) tambem fais mau e os figarros fais mau a sua saude porque poderar você ter canser no puman (câncer no pulmão)”
 
“Eles sujão as carteiras eles jogão papel no chão e eles tambem fumão cocaina, crak e otras substâncias com um aspecto de ma qualidade para a vida humana. Eles falão palavrão e otras coisas como gestos estranhos”
 
“As provesoras tenta conbate a violencia mas eles senpre vai pelo lado errado. Os profesores a te (até) tenta conbate a violencia mas não consegue é ums que fica jogando morterão (morteiro) e ums que consegue fugir mas outros ja iginoram vai chutando as carteiras”
 
“A violência nas escolas e um asinto (assunto) muito cerio (sério). Um desses problemas são as pinchações nas paredes, a queles que sotão (soltam) bomba, as brigas com garafa, pal, espada, predra.”

Falta de base em português afeta tudo

É possível corrigir as deficiências apresentadas nas redações dos alunos do professor R., mas o processo leva tempo e exige um trabalho de recuperação adicional ao desenvolvido em sala de aula, avaliam especialistas que analisaram alguns textos a pedido do Estado.

"Os meninos não sabem do que estão falando", diz a educadora América dos Anjos Costa Marinho, pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). Ela identifica problemas de ortografia, pontuação e encadeamento. "Alguns reproduzem na escrita o som que escutam."
Isso significa que os meninos não aprenderam a convenção, o que fica evidenciado quando escrevem "profesora" em lugar de "professora", diz América que antes de se dedicar às pesquisas trabalhou durante 25 anos na rede pública.
 
Para a também educadora Idnéa Semeghini-Siqueira, da Universidade de São Paulo (USP), as deficiências apresentadas por esses estudantes em língua portuguesa tornam inviável o aprendizado de todas as outras disciplinas. "A língua portuguesa é o eixo regulador de tudo", afirma. Ela também identifica deficiências de ortografia e pontuação.
O ex-reitor da Universidade de Brasília José Carlos de Azevedo considera mais grave ainda a incapacidade dos estudantes de se comunicarem. "Não se consegue entender o que eles escrevem, tal a confusão mental a que chegaram e a incapacidade de se expressarem de forma compreensível."
Para sanar as deficiências, esses alunos precisariam receber um atendimento diferenciado. Uma das propostas é a recuperação paralela - aulas de reforço para completar as atividades de sala de aula -, desde que feita seriamente.
Outra saída seria reuni-los em pequenos grupos, de até seis crianças, com níveis de conhecimento distintos. Dessa maneira, o que sabe mais ensina aquele que sabe menos. As duas educadoras ressaltam ainda que embora não saibam se expressar direito, as crianças têm opiniões e idéias próprias.
 

O Ensino na França - é preciso controlar as coisas num sistema de ciclo

O ensino básico público e privado na França é assegurado por 5.841 escolas primárias, 6.741 collèges (5ª a 8ª série no Brasil) e 4.411 liceus. O primário dura cinco anos: o primeiro dedicado à alfabetização, os dois seguintes a noções básicas de francês, matemática, história, geografia e ciências, aprofundadas nos dois últimos anos.

Os alunos fazem provas e se, ao fim do ano, a média for inferior a 10 (de um total de 20) a escola recomenda a repetência, que os pais podem aceitar ou não. Alunos com dificuldades têm aulas de reforço e, se preciso, os pais são chamados a ajudar o professor.
Nos ciclos seguintes, o sistema é o mesmo: notas baixas significam recomendação para repetência, mas a decisão cabe a pais e professores. No collège, a taxa de repetência é de 10%.
 
 
Textos originais e na íntegra do Jornal ''O Estado de São Paulo''
Leia mais:   1. Reportagem de 28/set/2000 sobre os ciclos  + (Santos e Rio decretam o fim dos ciclos sem retenção)
 
                    2.  Escola Noturna com baixa qualidade de ensino - Notas ''boas'' aparecem para encobrir o problema
 

IGGe - São Paulo, Brasil - 2000

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