Vladimir Safatle Correio Braziliense
Brasília, domingo, 25 de março de 2001 • Página Inicial

Entre o Equívoco e a Ambigüidade

Vladimir Safatle
Especial para o Correio

Sartre e Merleau-Ponty

A história, todo mundo conhece. É a história de uma das brigas que marcaram o percurso do mundo intelectual do século 20. E o motor da briga não poderia ser outro: o interminável conflito sobre a relação entre os intelectuais e o engajamento. Motor aparente, diga-se de passagem, pois ele escondia duas concepções radicalmente dissimétricas da filosofia na sua relação tensa com a efetividade: estas sim as causas da ruptura entre Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty.

Agora, todo o embate volta à tona devido ao lançamento de Parcours deux 1951-1961 (Ed. Verdier, 315 páginas, FF 120,00); segundo volume de uma coletânea de artigos e textos quase perdidos de Merleau-Ponty. Lá, encontramos textos sobre a relação entre fenomenologia e a psicanálise, sobre o conceito de natureza em Edmund Husserl mas, principalmente, três longas cartas inéditas trocadas em 1953 entre os dois filósofos e que selaram de vez um futuro de desencontros. Para completar, entrevista concedida por Merleau-Ponty alguns anos antes de sua morte em que ele evoca o que havia restado de lembranças do amigo antigo.

Mas alguém poderia perguntar: quanto vale resgatar uma pendenga que já tem 50 anos e que remonta a uma época longínqua na qual o problema maior consistia em saber se valia a pena aderir ou não ao PC? Época na qual o mundo era dividido entre os comunistas e os defensores da liberdade, da família e dos filmes de espionagem norte-americanos. Por que voltar a tudo isto depois da morte anunciada dos intelectuais, de as utopias terem virado tema de exposição de museu e de o advento da sociedade do espetáculo ter se consolidado?.

A estes, devemos lembrar que o pensamento do século 20 ainda deve acertar contas com o balcão da história. E é bem possível que apenas agora tais contas possam ser cobradas em uma moeda que não seja, como dizia Malarmé, daquelas que se passa de mão em mão em silêncio e cujo verso e anverso estão totalmente desgastados. Só assim poderemos identificar qual tipo de engajamento político é conveniente ao nosso tempo.

A princípio, a modalidade atual de engajamento está acertada. Cabe aos intelectuais responsáveis falar sobre moral na última página dos jornais, deplorar com amargura as guerras e os conflitos, pregar a tolerância, dar explicações históricas que fazem as causas dos impasses contemporâneos remontarem ao neolítico (como aquelas que tentavam explicar o problema no Kosovo por meio de ódio racial milenar), escrever alguns artigos sobre os 'excessos' do estágio atual do capitalismo, louvar o multiculturalismo como forma máxima de aceitação da diferença, e por aí vai. O figurino é claro e inofensivo.

Neste contexto, chega a ser difícil imaginar que grande parte do pensamento do século 20, seja na política, na estética ou na filosofia, acreditou poder romper com a repetição insuportável do mesmo, acabar com a neurose das relações sociais cotidianas por meio de um apelo ao real em algumas de suas múltiplas faces: luta de classes, revoluções, liberação das pulsões, novos padrões estéticos na vida cotidiana, retorno pré-reflexivo às coisas, ciência contra ideologia etc. E é bem possível que o não-diálogo entre Sartre e Merleau-Ponty possa encontrar uma de suas chaves aqui; em duas estratégias distintas para ler o real da política.

Vamos retornar um pouco no tempo. Os dois filósofos eram as cabeças pensantes da revista Les Temps Modernes. O ano é 1953 e a questão central do momento é a guerra da Coréia. Sartre, cada vez mais próximo do PC, toma partido em favor da posição soviética e é alvo de artigo crítico escrito na revista por um aluno de Merleau-Ponty, Claude Lefort. O artigo é logo respondido em tom duro e irônico na mesma revista, o que incita contra-resposta de Merleau-Ponty que nunca virá à luz. O filósofo, então diretor da publicação, será censurado por Sartre, o que o fará pedir demissão do cargo e romper a amizade que os unia desde 1941. É bem provável que o texto em questão tenha acabado por se transformar em um dos capítulos de Aventuras da Dialética, intitulado, como não podia deixar de ser: "Sartre e o Ultrabolchevismo".

É neste ponto que aparecem as cartas em questão. A primeira delas é escrita por Sartre. "Só se é filósofo quando se está morto", diz a certa altura o texto. Pois antes de morrer e se tornar filósofo, somos homens com o dever moral do engajamento. Fato que Merleau-Ponty pareceria esquecer ao se distanciar da política para fazer filosofia e, pecado máximo, ao criticar as posições políticas daqueles que continuaram engajados.

De fato, o esquema da análise demonstrava de que maneira a filosofia sartreana da consciência, como campo transcendental translúcido, legitimava o engajamento imediato na práxis. Lembremos, por exemplo, do que estava na base do projeto sartreano de uma psicanálise existencial (em O Ser e o Nada). Para Sartre, a cura analítica viria através do desvelamento do projeto original que ligava o ser do sujeito ao mundo e a si mesmo. Há um projeto que sustenta o estado do mundo e o sujeito deve se responsabilizar por ele, deve se engajar nele. O termo 'projeto' é aqui fundamental: ele nos envia a uma decisão consciente de se fazer presente no mundo, a uma intencionalidade primeira na qual a pura negatividade do desejo ganha forma. Por meio da escolha deste projeto, o sujeito decidiu se fazer Ser em certo estilo. Gustave Flaubert decidiu tornar-se escritor. Uma escolha cuja causa é o próprio sujeito, até porque estamos todos condenados a ser livres. Pegando as coisas pela raiz, mesmo levando-se em conta a teia de determinações sócio-culturais, nada nem ninguém pode impor uma escolha ao sujeito. Daí, por exemplo, a crítica de Sartre ao inconsciente freudiano.

Neste sentido, o problema do engajamento político ganhava novo contorno. Os acontecimentos deveriam ser vistos como resultados de projeto no qual o sujeito já está, desde sempre, engajado. Sou responsável não só por meus atos, mas por todas as conseqüências do ato, por aquilo que ele faz ao outro.

Nota-se aqui postulado geral de lisibilidade. O projeto original é absolutamente lisível, assim como o são os acontecimentos do mundo ou, levando o postulado às últimas conseqüências, assim como o é o real da história política. Cabe ao sujeito apenas reconquistar esta transparência e agir engajando-se nos fatos do cotidiano.

EXISTÊNCIA DA BOA FILOSOFIA
Qual é a resposta de Merleau-Ponty? Ela será uma crítica à lisibilidade geral do político. Tudo poderia se resumir na frase: "O sentido do acontecimento não se desvela na imediaticidade." Há uma distância a recuperar para que o sentido possa ser desvelado. E esta distância pressupõe o retorno à filosofia prenhe de significação política. Até porque, "o equívoco é fruto da má filosofia, a boa filosofia é uma ambigüidade sã". A fórmula é astuta. A aplicação imediata de categorias filosóficas à política só podia produzir equívocos. A boa filosofia recupera a ambigüidade das coisas e dos acontecimentos, em vez de reduzi-la por meio de pensamento binário e militante. Dizer isto em plena Guerra Fria dos anos 50 revelava um senso agudo do político.

Não deixa de ser interessante olhar tudo isto retrospectivamente e ver que Merleau-Ponty havia apreendido algo de correto. Se lembrarmos que o motor da discussão foi a guerra da Coréia, é até trágico ver o equívoco resultante do objeto do engajamento sartreano: regime psicótico que só não matou todo seu povo de fome devido à ajuda humanitária da ONU (embora o conjunto dos engajamentos de Sartre nunca pudesse ser reduzido a equívocos, vide seu papel fundamental na Guerra da Argélia). O mesmo julgamento vale para Michel Foucault e sua defesa da revolução islâmica de Khomeini. E o que dizer de Louis Althusser que, em plenos anos 80, ainda via a União Soviética como lugar maravilhoso para se viver? Isto significa que o século 20 nos mostrou que o engajamento intelectual, quando é animado pela busca do real em sua radicalidade negativa, só produz equívocos? É possível que não. Todas as vezes que o pensamento deixa de se guiar por esta busca, vira a mera administração das limitações cotidianas. Vira a política do mal menor, da redução relativista das alternativas a fantasmas sociais, da utopia do possível, um possível que nos leva à política do cinismo: esta arte tão social-democrata-versão-2000 de nos fazer denegar os piores males ou engoli-los como inevitáveis e necessários. No lugar da catástrofe gritante, aparece assim a silenciosa. E de catástrofes silenciosas, temos lista cheia.

Sobre os casos acima, a verdadeira questão seria saber qual tipo de real tais intelectuais tinham em vista. Por outro lado, dizer, com Merleau-Ponty, que a revelação da ambigüidade do acontecimento é condição maior para um pensamento do político, não significa pregar o des-engajamento. Basta consultar Signos, A Aventura da Dialética ou retornarmos às cartas do livro, onde encontramos o filósofo afirmando que nunca deixou de se engajar e pensar a efetividade quando achou necessário. Revelar a ambigüidade do acontecimento significa aprender a coreografia das múltiplas voltas necessárias para ler a opacidade do real. Como dizia Hegel, significa aprender a ver como a verdade surge do equívoco. Coreografia dolorosa que pressupõe viver em um mundo onde o caminho em direção à verdade é feito de equívocos e ambigüidades.

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