Condicionantes da experiência (2)

«Miller - Portanto, estamos a trabalhar no sentido de uma psicologia que considera a percepção como uma série de construções e hipóteses sobre as quais actuamos, até que se prove que estão erradas. Depois abandonamo-las ou modificamo-las e reconstruímo-las.

Bruner - Também há que sublinhar outra coisa. Em vez de o homem ser um recipiente, no sentido lockeano, uma tabula rasa, em que a experiência se inscreve, nós testamos selectivamente as hipóteses. A coisa mais prática que se pode fazer é ter uma hipótese que se possa rejeitar com base na experiência. [ ...]

Miller - [ ...] Está a dizer, então, que a mente está recheada de teorias, ou modelos, que determinam até certo ponto o que percebemos e mesmo que quantidade percebemos. Você fez uma bela experiência com a percepção visual de letras que confirma este ponto.

Bruner - Cá está a experiência (fig. 1). Comecemos por construir diferentes ordens de aproximação ao inglês. Construímos "palavras" de oito letras, ou melhor, sequências de oito letras, que gradualmente poderemos levar a assemelharem-se ao inglês falado.

Ordem 0

Ordem 1

Ordem 2

Ordem 3

YRULPZOC

OZHGPMTJ

DLEGQMNW

GFUJXZAQ

WXPAUJVB

VQWBVIFX

CVGJCDHM

MFRSIWZE

STANUGOP

VTYEHULO

EINOAASE

IYDEWAKN

RPITCQET

OMNTOHCH

DNEHHSNO

RSEMPOIN

WALLYLOF

THERARES

CHEVADNE

NERMBLIM

ONESTEVA

ACOSUNST

SERRRTHE

ROCEDERT

RICANING

VERNALIT

MOSSIANT

POKERSON

ONETICUL

ATEDITOL

APHISTER

TERVALLE

Fig. 1 – Pseudopalavras construídas em diferentes ordens de aproximação ao inglês.

Para construirmos sequências com o que chamamos uma aproximação ao inglês de ordem zero, pegamos em letras tiradas do alfabeto ao acaso. Isto origina palavras impronunciáveis, impossíveis, como as que temos na primeira coluna.

Muito bem. Agora vamos preparar uma coluna de palavras com uma aproximação ao inglês de ordem 1. Para isso, pegamos em letras ao acaso, desta vez não do alfabeto, mas de uma página de um texto em inglês. As letras ocorrerão nas palavras com a mesma frequência relativa com que ocorrem no inglês. Quanto mais frequente for uma letra em inglês, tanto mais provável é que ocorra numa ou noutra das pseudo e loucas palavras de oito letras. Mas a ordem das letras continua a ser ao acaso. Esta é a segunda coluna.

Miller - Muito bem. Como é que chegamos à ordem de aproximação seguinte?

Bruner - Para arranjar palavras com uma aproximação ao inglês de ordem dois, começa-se por arranjar a primeira letra ao acaso. Vamos ao nosso texto inglês e procuramos qualquer palavra que contenha essa letra. Seleccionamos a letra que se lhe segue, na palavra, e transcrevemo-la. Temos assim um par de letras, das quais uma se segue à primeira da mesma maneira que por vezes se sucede na língua inglesa. Agora tomemos a última letra do par e procuremo-la numa outra palavra, transcrevemos a letra que se lhe segue e assim por diante. Fazendo assim, engendramos pseudopalavras cheias de encanto, como "wallylof", "therares", "chevadne" e "nermblin".

Miller - Não é inglês, mas são palavras parecidas com o inglês. Como é que passamos ao estádio seguinte?

Bruner - Tomemos qualquer trio de letras conseguido pelo método que acabei de descrever e procuremos a sua ocorrência na nossa página de texto em inglês. Então, tomemos a letra a seguir e transcrevamo-la. E assim por diante. Começamos por obter palavras pronunciáveis e sem sentido, como "ricaning", "vernalit", "mossiant" e "pokerson". De facto, até podemos dizer palavras como estas ao telefone, e as pessoas perguntarão invariavelmente: "O que é que disse?"

Miller - E segundo este método pode obter-se uma ordem de crescente aproximação ao inglês verdadeiro.

Bruner - É verdade. Temos agora quatro colunas de pseudopalavras, com a coluna 1 contendo sequências não pronunciáveis, sem qualquer semelhança com palavras de qualquer língua, e a coluna 4 contendo palavras que se aproximam do inglês reconhecível. Apresentam-se agora estas palavras rapidamente num écran, durante uma fracção de segundo, para serem reconhecidas, e quando se pede ao sujeito que diga as letras que viu, obtém-se um resultado muito interessante. Com pseudopalavras retiradas da primeira coluna, os sujeitos apreendem correctamente duas ou três letras no máximo, ao passo que percebem a totalidade das oito no caso das pseudopalavras da coluna de aproximação de ordem 3.

Miller - É como se as letras se tornassem perceptíveis à medida que a sequência em que ocorrem se vai aproximando das sequências que aparecem nas palavras reais. Estarei certo ao dizer que a dificuldade em reconhecer letras nas sequências ao acaso é devida ao facto de a probabilidade de qualquer uma das letras ser completamente independente da ocorrência de todas as outras letras? O que significa que cada letra tem de ser perceptivamente processada como um item alfabético isolado?

Bruner - É verdade. Ao passo que nas "palavras" que têm uma aproximação ao inglês de ordem 3 podemos usar o nosso modelo interno da língua inglesa para preencher, predizer e extrapolar. Ora, sendo assim, somos tentados a perguntar se isto é percepção ou inferência. Mas não há possibilidade de fazer esta distinção. Como é que a experiência pode ser independente da hipótese perceptiva engendrada pelo modelo do inglês que temos na cabeça?

Miller - Portanto, está a dizer-nos que perceber é o resultado de impormos hipóteses à informação que entra e que os modelos internos que geram estas hipóteses são mecanismos extremamente económicos que nos poupam a tarefa avassaladora de lidarmos item por item com a informação perceptiva?

Bruner - Sim. O homem vive num mundo espantosamente complexo, mas só pode tratar, de cada vez, uma quantidade limitada de informação. Os psicólogos modernos designam este facto por "limite de capacidade do canal". Mas se eu tiver um modelo interno do mundo posso "mastigar" a informação e transformá-la em pacotinhos manipuláveis, e posso também usar este modelo para orientar a minha pesquisa e o meu processamento da informação presente.

Esta ideia conduziu a algumas mudanças radicais na investigação do sistema nervoso e, em particular, a novos estudos sobre a atenção e a vigilância. Verificou-se que a estimulação do sistema nervoso através da exploração activa [ scanning] ocorria sempre que o modelo do mundo armazenado no cérebro era de certo modo violado, ou seja, sempre que não havia coerência entre esse modelo e a informação que entrava. Entra pelos olhos dentro que tudo isto é bem diferente da visão empirista clássica da percepção.»

Jonathan Miller (dir.), Estados de espírito - Diálogos com investigadores de psicologia,

Lisboa, Editorial Presença, 1989, pp. 35-37.