|
fora da
lei por
vitor fonsêca
EM
DEFESA DE JOSEF K.
“O
processo” é um pesadelo. No âmbito jurídico, quem ouvisse a frase
anterior, lida em voz alta e sem o apoio das aspas, pensaria que se
discursava sobre “o” processo ou sobre “um” processo, e não sobre
o livro de Franz Kafka, editado postumamente em 1925. Coincidência ou não,
o trocadilho é eficaz dentro da obra. O autor tcheco, formado em Direito,
constrói uma realidade, porque existente no próprio universo kafkiano,
mas traduz um estado permanente de pesadelo.
Esse
sonho ruim tem início numa manhã, aparentemente normal como qualquer
outra, quando Josef K. é detido, sem maiores explicações, por dois
homens, sem que ele tivesse feito qualquer mal, e só termina numa noite,
aparentemente normal como qualquer outra, quando K. recebe a visita da
justiça, trajada de preto e mascarada, com a condenação na forma de uma
lâmina dupla, atravessada em seu coração, como se ele fosse um animal.
Quem o acusa e qual a acusação são mistérios que nem a última página
do livro resolve.
Kafka
expõe o processo como se fosse um caricaturista. O livro é um desenho
com deformações propositadamente exageradas. Porém, como todo
caricaturista, o escritor não gera uma criatura do nada; antes, reproduz,
em sua obra, as concretas feições do rosto do processo, embora de modo
mais grotesco (algumas vezes deliberadamente kitsch) do que propriamente
jocoso.
Essa
reprodução é demarcada, principalmente, pela imprevisibilidade e pela
desconfortável percepção de manipulação da justiça. A representação
do processo como um ser amorfo, adaptável pelos agentes da justiça a
cada caso concreto, dependendo dos interesses em questão, desarraiga-lhe
o caráter público. De instrumento para garantir a função jurisdicional
o processo passa a ser uma mera gestão de interesses privados.
É
preciso lembrar, contudo, que “O processo” de Franz Kafka é uma obra
de ficção. Não há uma verdade, como acontece (ou não) no mundo em que
vivemos. Existe uma total ausência de respostas. “O processo” não é
uma fábula para ter preceito moral.
No
entanto, a mínima sensação de que qualquer um de nós pode estar
passando, neste mundo, o que Josef K. passou por aquele mundo é motivo
para nos responsabilizarmos pela higidez do processo. Como na obra de
Kafka, enquanto não for provada nossa inocência, seremos todos culpados.
Por
isso, só há um meio de não se envolver com “O processo”: não ler o
livro. Para acordar do pesadelo do processo de K. é só fingir que aquilo
tudo é mesmo ficção. Assim, sofre-se menos com a crueldade da obra. No
entanto, abrir os olhos, como K. o fez, e perceber a realidade do pesadelo,
tende a ser mais corajoso.
Tenhamos
isso em mente: sempre há um Josef. K. por trás de um processo.
Vitor
Moreira da Fonsêca
Mestrando em Direito Processual
Civil pela PUC-SP e Advogado
email |