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A viagem de Walter Salles e Ernesto Guevara

Walter Salles foi buscar do outro lado do rio o argentino Ernesto Guevara e se encontrou com o olhar intransferível e único de seu Diários de motocicleta. Não há dinheiro no mundo, ou em Hollywood, que possa comprar um olhar: sensibilidade responsável por frisar o movimento na tela de cinema.

A qualidade e a poesia da visão de 24 fotogramas por segundo de Salles não são novidades e podem ser vistas em filmes anteriores (Central do Brasil, Terra Estrangeira, Abril despedaçado). A constatação aqui é que, no caso dos filmes do diretor, a qualidade não depende diretamente do montante de dinheiro dirigido à produção. A impressão é que Diários seria realizado de qualquer forma, com ou sem todos os seus dólares.

A câmera capta o movimento preciso da viagem, da transição. A imagem apreende o deslocamento, seja do jovem e frágil Ernesto, seja da motocicleta “Poderosa” nas estradas, veias abertas da América Latina. A fotografia do filme é trabalhada para parecer natural e os grãos saltam aos olhos. Os atores são trazidos para perto, bem perto de nós. Os primeiros planos, clássicos, são também responsáveis pela identificação personagens-espectadores.

O tom é documental. A câmera se coloca presente e é sentida, embora atores não interajam com a mesma. Gael García Bernal (Ernesto Guevara) e Rodrigo de La Serna (Alberto Granado) são ótimos atores em momento de sintonia e naturalidade. Os jovens sonhadores e aventureiros nos convidam para uma entrega nesta viagem por uma América a ser desvendada.

A geografia física e humana é tateada e explorada pelas imagens. O quadro é delineado pelo contorno das montanhas e pelas marcas nos rostos das pessoas. A viagem é a possibilidade concreta de (re)descoberta de uma América Latina (ainda) desconhecida e fabulosa. Estamos tão distantes deste continente americano quanto Ernesto e seu amigo estavam em 1952. Natureza exótica e grandiosa. Povo sofrido e de procedência perdida, confusa.

O filme de Walter Salles contou, além de seu talento e capacidade, com a rica música e os costumes dos povos americanos. A tradição indígena misturada (e também oprimida) à espanhola oferece por si só um belo espetáculo cultural aos espectadores. É impossível não se envolver com a atmosfera humana e natural mostrada (criada) em Diários.

O encontro é o momento da descoberta, do deslumbramento, da indignação. O filme de Walter Salles é feito de encontros. O diretor foi em busca de um mito ou da construção dele. Deparou-se com um jovem ansioso por aventuras e conhecimento e com uma terra jovem e ainda desconhecida. Ernesto passou a conhecer a fundo o amigo Alberto e a si mesmo, assim como as limitações de ambos. Os atores travaram o duelo instigante da representação e enquanto isso o público vai ao encontro da capacidade de indign-ação de Ernesto/Che Guevara. Encontramos enfim com a figura do mito Che.

A seqüência-clímax do filme pode ser um ótimo exemplo da práxis marxista. A tomada de consciência do jovem Che diante da segregação entre sadios e doentes o impulsiona a uma ação. Só ele ousou “se molhar”, se arriscar. Ernesto entrou n’água, nadou, nadou... Para além do nosso alcance da visão ele foi, lá para as bandas da terceira margem do rio... Poucos ousam ir tão longe seja por si ou pelos outros. Ele foi.

A despedida - porque toda viagem precede um fim. Fica claro depois da odisséia pela América latina que o caminho de Ernesto e Alberto não seria o mesmo. Os amigos se separam. O futuro Che entra num avião de volta às terras argentinas e Granado segue o caminho da pesquisa bioquímica. O olhar de Alberto se confunde com o nosso. Estamos todos ali, parados a nos despedir de um mito, da capacidade de mobilização prática, do sonho de uma América unida. Tanto Alberto quanto nós estamos cada vez mais distantes de Che Guevara e de tudo que ele representa. O filme acaba e voltamos para casa indignados com a exploração dos povos e terras latino-americanos, damos uma esmola aqui ou escrevemos algumas palavras banais ali. Mais nada.

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