'Trainspotting' legaliza tédio juvenil

 

MARCELO REZENDE

(Folha de São Paulo, 19/05/97)

''O filme mostra o uso de heroína, resultando em depravação, linguagem suja, sexo, nudez e alguma violência''.

O parecer do departamento de classificação de filmes dos EUA para ''Trainspotting'' que acaba de chegar às locadoras poderia ser uma espécie de cartão de apresentação para a obra do britânico Danny Boyle.

Um artifício que só funcionaria se à descrição fosse acrescentado mais um dado: o que americanos entendem por degradação, Boyle, e seus personagens, têm como uma dolorosa, muitas vezes desesperada, mas quase sempre saudável forma de rebeldia.

''Trainspotting'' é uma criação do escritor escocês Irvine Welsh. Decretando com alguns anos de atraso a morte dos anos 80, Welsh colocou na literatura um pouco de sua rotina na cidade de Edimburgo.

Um cotidiano marcado pelo despertar ao meio-dia, conversas sobre música com os amigos e sessões de drogas, sempre pagas com o lucro de pequenos assaltos.

A profecia do escritor a idéia de que o tédio não se cura pela ação social nem policial do Estado terminou por transformá-lo em celebridade.

Depois de ser adaptado para o teatro, chegou ao cinema pelas mãos do cineasta Boyle, que antes já havia legado à juventude britânica ''Cova Rasa'', de 1994.

Em imagens, ''Trainspotting'' saltou das estantes e, rapidamente, se transformou em ideal.

''Escolher a vida, um emprego, uma carreira. Escolher uma televisão de muitas polegadas, o futuro, a comida barata em uma casa miserável''.

Quem fala, na primeira cena do filme, é Renton, o alter ego de Welsh que resolve fazer um balanço existencial enquanto foge da polícia.

Ele nos avisa que, entre tantas escolhas que sua sociedade e cultura lhe ofereceram, optou pela ''sincera vida de um viciado''.

Renton o ator Ewan McGregor não possui exatamente uma história, mas ligeiros esquetes. Ao lado de Spud, Sick Boy ou Tommy, os companheiros de vício, ele viverá suas aventuras à maneira de um herói picaresco.

Um dia, dorme com uma menor de idade; apenas mais um de seus atos ilegais. Em outro, passa as tardes atirando em cachorros no parque com uma espingarda de pressão e, finalmente, tenta o tráfico como seu grande golpe.

Nas mãos de Danny Boyle, o que para muitos era uma denúncia se tornou uma comédia. Não dramática, mas cínica.

A escolha fez do filme um ''escândalo''. Até no Brasil aconteceram tentativas para que não fosse exibido em nome da ''moralidade''. Em uma visão simplista, se ''Trainspotting'' não condenava as drogas, logo era um trabalho a favor delas.

Mas se há algum tipo de engajamento no filme não é o da liberação de qualquer substância química, e sim o do compromisso com seu público, oferecendo uma chance para jovens cansados de seus pais, de seus costumes, de seus país e da obrigação moral de ter esperanças com o futuro.

Isso não faz de ''Trainspotting'' o mais corajoso, radical ou genial dos filmes, mas lhe dá, no mínimo, uma qualidade: concede a palavra feita de riso e ironia a uma multidão de insatisfeitos.

Filme: Trainspotting

Produção: Inglaterra, 1996

Direção: Danny Boyle

Com: Ewan McGregor, Ewen Bremner, Robert Carlyle

Lançamento: Alpha (011/230-0200)