(Psychiatry On-line Brazil (6) abril 2001 - http://www.polbr.med.br/arquivo/psi0401.htm#)
O filme TRAFFIC de Steven
Soderbergh tem a sobriedade adequada aos objetivos que visam mostrar o problema
das drogas em toda sua complexidade, sem os apelos fáceis advindos do moralismo
pequeno-burguês e sem se arvorar a propor soluções que, na maioria das vezes,
se revelam como simplistas e policialescas.
Em Traffic não vamos ver apenas
jovens negros fumando crack nos guetos urbanos norte-americanos. Pelo contrário,
vemos como a droga penetra completamente a sociedade americana, permeando todos
os seus extratos, sem poupar a ninguém. Ela se infiltra desde as favelas até o
mais íntimo dos redutos WASP (white, anglo-saxon and protestant), ou seja, a
elite detentora do poder.
A história se desenrola em torno
de três núcleos, formalmente marcados por diferentes tonalidades de cor, efeito
do uso de diferentes filtros durante a filmagem. O frio azul para Washington e
o jogo do poder, o sujo marrom para as tramóias mexicanas, o pleno tecnicólor
para os bairros de luxo da Califórnia onde moram os barões da droga.
TRAFFIC apresenta um único senão,
referente à excessiva contenção de Soderbergh, que, em sua imparcialidade no
trato da trama, quase transforma seu filme num documentário de super-luxo,
perdendo assim a oportunidade de temperar sua história com necessárias pitadas
de dramaticidade, o que deixa um tanto insosso o filme.
A meu ver, o valor maior de
TRAFFIC reside no não incidir na postura hipócrita mais comum usada por
Hollywood ao abordar o tema do tráfico e do uso da droga. Em TRAFFIC, toda a
ênfase recai não na produção da droga, nos confins do Terceiro Mundo,
apodrecido e corrupto, que precisa ser salvo pelos mocinhos do Primeiro Mundo
(CIA, ajuda militar, pressões diplomáticas, etc).
Nada disso. Aqui vemos a podridão
e a corrupção dentro do Primeiro Mundo, dentro da sociedade americana,
envolvendo todos os escalões. É, em última instância, o que financia o tráfico
de drogas.
TRAFFIC finalmente diz o óbvio:
se há produção da droga, é porque há um consumo, e esse consumo se dá
exatamente dentro do rico e poderoso Primeiro Mundo.
O problema das drogas não tem
soluções fáceis nem a curto prazo. Timidamente o filme aponta para uma possível
saída – o investir nas novas gerações, o proteger e cuidar melhor das crianças,
a necessidade de refletir sobre o que acontece na sociedade que a leva a esse
consumo fatal, que mina sua maior riqueza – a esperança no futuro, nas novas
gerações.
Hoje em dia, não se ignora mais
que o narcotráfico com seus narcodólares movimenta o mercado financeiro
internacional, com o beneplácito dos grandes banqueiros e paraísos fiscais.
Fortíssimos interesses afastam o
enfoque claro deste problema, quer seja no que diz respeito à novas leis sobre
sigilo bancário e a própria existência dos paraísos fiscais, bem como quanto a
legalização da droga, que mudaria inteiramente o atual estado de coisas. É de
se pensar até onde são manipulados efetivos problemas éticos e morais ligados
ao consumo da droga, com fins de manutenção da situação, tal como hoje se
apresenta.
Do ponto de vista analítico, diria que TRAFFIC mostra o abandono da projeção ( o mal está no outro, na produção da droga nos confins das selvas latinoamericanas, onde governos corruptos e podres estão mancomunados com os traficantes) para o do insight ( nós somos os que consumimos a droga, é em função deste poderoso fluxo de dinheiro que dispomos na compra da droga que ela é produzida; a corrupção e a podridão estão também em nossas instituições; não podemos, nós, norte-americanos, posarmos de vítimas ou heróis nesta guerra suja, temos participação definitiva na criação e manutenção desta guerra).
*Sérgio Telles (54) é psicanalista do Departamento de Psicanálise de
Instituto Sedes Sapientiae e escritor, autor de MERGULHADOR DE ACAPULCO (1992 –
Imago – Rio)