TERROR E PAZ - Janio de Freitas

(Jornal "Folha de São Paulo", 07 de abril de 2002)

 

A proibição demente de que o emissário do governo americano chegasse até Arafat foi retirada, imagina-se a delicadeza com que o presidente Bush o exigiu, mas o primeiro ministro-general Ariel Sharon ordenou que os jornalistas fossem impedidos de reportar o encontro. Bombas de gás lacrimogêneo e granadas de "efeito moral" foram atiradas no grupo e o contiveram. Ainda bem, porque, enquanto as bombas e granadas explodiam, tanques israelenses moveram suas torres de artilharia na direção dos repórteres.

Quem eram essas pessoas contra as quais, na Sexta-feira, se atiravam petardos e eram apontados canhões? Eram civis e desarmados. Civis desarmados em atitude pacífica. Pessoas comuns como as pessoas comuns de todos os países. Como os palestinos comuns, por exemplo. Exatamente como os palestinos que há mais de 50 anos estão sendo expropriados de suas terras, humilhados e mais uma vez devastados, agora a título de represália ao terrorismo dos suicidas, dados como fanáticos de Alá, contra pessoas comuns de Israel.

O que poderiam os jornalistas contra as granadas e os canhões dos soldados de Sharon? Não mais do que conter-se em sua impotência. Mas, se mantidos sob cerco, por quanto tempo seriam capazes de tolerar essa negação de suas vidas, a condenação ao gueto como um dia aconteceu a milhões de judeus?

Por certo, um dia repetiriam os judeus do gueto de Varsóvia, que fizeram um levante bravo e suicida com a esperança, afinal irrealizada, de libertar da atrocidade já insuportável os que sobrevivessem.

Eram fanáticos os que se dispuseram a morrer no levante do gueto de Varsóvia? À falta de registros precisos, prevaleceu a dedução de que a maioria nem era de praticantes rigorosos da religião. São mesmo fanáticos os palestinos suicidas?

Católicos e judeus não têm autoridade moral nem religiosa para censurar fanatismos religiosos alheios, caso os encontrem de fato em alguma parte, e não apenas assim denominados para justificar a criminalidade bélica dos seus opressores.

As milenares histórias de católicos e judeus estão repletas de imolações e sacrifícios assombrosos, em nome da fé. Hoje ainda, não falta às duas religiões quem as pratique com os extremos que definem o fanatismo.

A ninguém a chamada civilização glorifica mais, com as mais altas condecorações e outros reconhecimentos públicos, do que aos capazes de doar a vida em guerras. Existe mesmo uma indústria de propagação e exploração desses atos considerados heróicos: Hollywood, que elevou à categoria de arte o morticínio bélico e o auto-sacrifício do combatente, o suicídio do herói doando-se para salvar companheiros, quando não uma simples ponte ou uma bandeira.

Só os jovens palestinos são suicidas porque fanáticos?

Se o fanatismo não explica o suicida-terrorista palestino, o que o explicaria?

Como sempre, não há uma explicação, mas um composto de elementos explicativos que se integram e se estimulam. Entre eles, e na origem mesma de muitos dos outros, um componente, digamos, institucional. Pode-se identificá-lo até no calendário:

29 de novembro de 1947, resolução 181 da Assembléia geral das Nações Unidas: considerando que a situação da Palestina, sob a feroz guerrilha e o terrorismo de organizações judias, ameaça a paz, decide pela divisão do território em um Estado árabe e outro judeu. (O Estado judeu foi criado já em 48, mas o árabe jamais o foi, sempre sustado pela ação comum de Israel e Estados Unidos).

9 de dezembro de 49, resolução 303 da Assembléia Geral: determina que Jerusalém tenha regime internacional e seja administrada pela ONU. (A solução ideal ficou no ideal).

22 de novembro de 67, resolução 242 do conselho de Segurança: determina a devolução dos territórios ocupados por Israel e uma solução para os refugiados há 20 anos e recolhidos a campos miseráveis. (Os territórios continuaram ocupados, parte deles até hoje, e os refugiados continuaram na mesma situação).

10 de novembro de 1975, resolução 3.379 da Assembléia Geral: qualifica o sionismo como uma foram de racismo e de discriminação racial.

Março de 78, resoluções 425 e 426 do Conselho de Segurança: exige o fim das ações bélicas de Israel no Líbano, onde Sharon se fez acusado dos massacres de Sabra e Chatilla, e decide por uma Força Internacional da ONU na região.

14 de dezembro de 78, resolução 33/71 da Assembléia Geral: proíbe os integrantes da ONU de cooperação bélica com Israel e de lhe fornecer qualquer equipamento militar. (Os Estados Unidos mantiveram a colaboração militar com Israel).

30 de junho de 80, resolução 476 do Conselho de Segurança: volta a exigir o fim da ocupação de territórios árabes tomados por Israel desde 67, e também de Jerusalém, e decide que são nulas todas as medidas israelenses que "alteraram a geografia, demografia e o caráter histórico do status de Cidade Santa de Jerusalém". (A resolução foi ignorada pelo governo de Israel).

7 de outubro de 2000, resolução 13422 do Conselho de Segurança: condena a violência do exército israelense (o célebre uso de tanques e metralhadoras contra atiradores de pedras, depois que Ariel Sharon resolveu ir à praça das Mesquitas) e reafirma a resolução 242 de 1967, pela devolução dos territórios ocupados e por um acordo de paz. (a resolução foi ignorada por Israel).

O atual ataque a cidades palestinas já motivou duas novas resoluções, determinando o cessar-fogo e a retirada imediata do exército israelense das cidades palestinas, ambas desconsideradas pelo governo de Sharon.

As determinações da ONU são suficientes para explicar a exasperação dos palestinos, sem que se precise esmiuçar as condições degradantes a que estão submetidos esses 3 milhões de pessoas pelo plano da direita militar israelense de constituir o Grande Israel. É desta exasperação que sai o terrorista palestino, e não do fanatismo apregoado pelo medo geral, na mídia, da acusação de anti-semitismo e suas sempre pesadas consequências.

Para acabar com o terrorismo palestino basta que os governantes de países da ONU tenham a mínima dignidade de ameaçar o corte total de relações com Israel, até que seu governo cumpra a desocupação dos territórios alheios, e efetivar a criação do Estado Palestino determinada por esses mesmos países da ONU há 55 anos.