Não há alternativa à paz

(Jornal "Folha de São Paulo", 05/04/2002)

Não se vai a lugar nenhum se israelenses e palestinos não entenderem as reivindicações básicas uns dos outros

*JAIME PINSKY

Numa guerra, quem mais sofre, depois dos povos envolvidos, é a história. No atual conflito do Oriente Médio ela é reescrita e manipulada ao sabor das conveniências. E, como dizia minha tia Ana, pior do que a mentira é a meia verdade, que confunde esse monstro sem rosto chamado opinião pública.

Não que se deva fingir a inexistência de tanques israelenses atirando em jovens nas cidades palestinas ou terroristas palestinos explodindo adolescentes israelenses em pizzarias e danceterias. Mas alguém que imaginasse entender a Segunda Guerra Mundial apenas a partir do bombardeio de Dresden, pelos aliados, ou a crise da Iugoslávia simplesmente pelos ataques aéreos das forças da ONU correria o risco de equacionar a questão de maneira totalmente equivocada.

Não se vai a lugar nenhum se israelenses e palestinos não entenderem e atenderem as reivindicações básicas uns dos outros. O que querem os palestinos? Terra e liberdade. O que querem os israelenses? Reconhecimento e segurança. Cabe, pois, aos israelenses atender às reivindicações básicas dos palestinos, como cabe a estes atenderem às reivindicações básicas dos israelenses. Isso implica, efetivamente, o quê?

Do lado israelense, desistir da idéia de "ganhar a guerra" e permitir que os vizinhos escolham de forma autônoma o meio de gerir seu próprio Estado. Do lado palestino, interromper o discurso de acabar com o Estado judeu e reprimir o terrorismo.

Estudos realizados por organismos internacionais mostram que a economia desses Estados seria complementar, o que provocaria enorme sinergia, e não uma competitividade deletéria. Aventa-se até a hipótese de cortar os poucos quilômetros que separam o Mediterrâneo do mar Morto e, aproveitando a diferença de nível entre um e outro (400 m), produzir energia elétrica para os países da região!

Mas, para que tudo isso aconteça, é preciso que as partes cedam. Os judeus religiosos vão ter que se conformar com o fato de ficarem sem aquilo que chamam de Margem Ocidental, lugar onde patriarcas como Abraão viveram. Os palestinos terão que abrir mão em definitivo da idéia de que poderão controlar cidades que ficam em Israel. As cartilhas palestinas não poderão mais instruir as crianças na ilusão de uma grande Palestina, com a expulsão dos judeus, ou com sua presença apenas tolerada, da mesma forma que os ortodoxos judeus precisam interromper seu discurso a favor de um grande Israel, dos dois lados do Jordão, com a expulsão de todos os palestinos.

Continuo achando que a paz é inevitável, mesmo porque não há alternativa a ela. Ninguém pode, ninguém vai vencer esta guerra. Para os palestinos não tem sentido sair de onde estão; nem para os israelenses. Eles são povos e querem viver em seus respectivos Estados nacionais. Dizem que a Autoridade Palestina é corrupta e incompetente. Se corrupção e incompetência implicassem perda de independência política, muitos países voltariam à condição de colônia.

Por outro lado, não é porque o governo Sharon tem um tom francamente direitista que Israel perde o direito de existir. Não se deve confundir Estado e governo: este é circunstancial, passageiro (nós mesmos não fomos chefiados por Collor?); aquele, duradouro. Senão teríamos que acabar com a Alemanha por conta de Hitler, com o Chile por conta de Pinochet e assim por diante.

Fronteiras seguras dependem de boa vizinhança e não de armamentos. Ainda mais num território cuja extensão máxima corresponde à distância entre o Rio e São Paulo e cuja largura é de poucos quilômetros, sempre visíveis a olho nu. De momento, talvez seja necessário um cordão sanitário, separando os territórios do Estado de Israel daqueles sob o controle da Autoridade Palestina. Aos poucos, porém, há que modificar a postura diante dos vizinhos. Quando se quer guerrear, nenhuma distância é suficientemente grande _nem para terroristas nem para militares. Se, depois do cessar-fogo, vierem a paz e a convivência, não vejo por que não se poderia atravessar a fronteira para visitar monumentos religiosos cultuados pelos diferentes credos.

Aos pessimistas lembro que, se franceses e alemães, inimigos ferrenhos por muitas décadas, podem liderar conjuntamente a Europa, não há motivos para que isso não venha a acontecer com israelenses e palestinos, no Oriente Médio. Há mais: imagino, num futuro próximo, palestinos e israelenses _com Estados laicos, justos, modernos e integrados_ funcionando como exemplo para toda a região, hoje ainda plena de Estados autoritários, fundamentalistas, preconceituosos e socialmente injustos. Que não têm, evidentemente, nenhum interesse na presença de israelenses e palestinos atuando em simbiose.

A nós, brasileiros, principalmente aos descendentes de judeus e árabes, cabe ter a grandeza de exportar sanidade, e não de importar insanidade.

*Jaime Pinsky, 62, historiador e editor, foi professor da Unesp e da USP. É professor titular de história da Unicamp, diretor da Editora Contexto e autor, entre outras obras, de "Origens do Nacionalismo Judaico" (Ática). / E-mail: pinsky@editoracontexto.com.br