Shopping & fucking
Eliane Robert Moraes
(Jornal "Folha de São Paulo", 05 de setembro de 1999)
Como entender a presença de
um manual de sociologia em
meio à bagunça do modesto
quartinho onde uma prostituta
americana recebe seus clientes? O
título do livro é "Introducing Sociology", a prostituta atende pelo
nome de Domino e o quartinho
fica num velho prédio do baixo
Village, em Nova York. O volume
em questão aparece com destaque, em primeiro plano, na cena
em que Bill -o protagonista do
filme "De Olhos Bem Fechados"- afasta-se de Domino para
atender a uma chamada telefônica de sua mulher. O telefonema
serve de mote para que ele desista
da transa, abrindo espaço para
outra cena, tão breve quanto inesperada: a prostituta reluta em
aceitar o pagamento combinado,
numa atitude escrupulosa que a
distingue da maior parte dos personagens do filme.
Aliás, ao longo da história, as
únicas pessoas que revelam algum escrúpulo nas relações com
os outros são realmente as prostitutas. Assim como Domino hesita
em receber o dinheiro pela transa
que não houve, também sua colega de quarto sente-se obrigada a
informar Bill sobre o resultado
positivo do teste HIV da amiga,
numa atitude que supõe a prevalência dos valores coletivos sobre
os individuais. Da mesma forma,
Mandy coloca sua vida em risco
para salvar o jovem médico quando ele se aventura pelos domínios
de uma sociedade secreta dedicada a práticas eróticas. A bem da
verdade, com exceção das prostitutas, a nenhum outro personagem do filme caberia o atributo de
"humano" -num sentido, digamos, "clássico" do termo.
A humanidade das prostitutas
manifesta-se sobretudo na sua
fragilidade: elas se drogam e morrem de overdose, elas vendem
seus corpos e se contaminam, enfim, elas arriscam suas existências
de forma concreta e material. Por
isso, suas transações de dinheiro e
sexo, pautadas pelas leis do mercado, estão fundadas numa "realidade" que, por certo, ainda pode
ser explicada pelos parâmetros
sociológicos. Desnecessário lembrar que nessa "realidade" as
prostitutas encontram-se sempre
numa posição desfavorável, deixando a descoberto o lado mais
frágil do comércio erótico. Isso
talvez explique a presença de um
livro de sociologia no quartinho
insalubre da doce Domino que,
como suas colegas, são as únicas
personagens efetivamente comprometidas com a chamada "vida
real". O resto é puro imaginário.
Alice só consegue escapar do tédio de uma vida abastada, que gira em torno da bela casa e da filha,
por meio de seus devaneios eróticos. Tal como uma Bovary moderna, vivendo à custa do marido
médico em plena ascensão, seu
fastio só se rompe quando as promessas do desejo falam mais alto.
O próprio Bill, que se mostra resignadamente feliz com as perspectivas de um casamento convencional, também é tragado pelas vertigens da fantasia quando
toma conhecimento dos sonhos
ocultos da esposa. Mesmo assim,
o casal representa apenas o lado
mais cândido de um grupo social
que, na tentativa febril de superar
a monotonia da vida, abandona-se a um imaginário vertiginoso no
qual o sexo ocupa um papel central.
Daí a suntuosidade das festas,
como a do início do filme, regadas
a champanhe, povoadas pelas
mais belas modelos e prostitutas
de luxo que acolhem, a qualquer
preço, a lascívia dos homens poderosos. Porém, na medida em
que a insaciabilidade é soberana,
as festas não esgotam os desejos
do grupo. Por isso a história tem
seu ponto culminante quando Bill
penetra nos domínios do clube
secreto que abriga uma fantástica
legião de mascarados, reunidos
para encenar rituais lúbricos.
A cena mobiliza os múltiplos
"topoi" do gênero erótico, evocando as assembléias libertinas levadas a termo no castelo de Silling
-cenário de "Os 120 Dias de Sodomma", de Sade- ou as orgias
praticadas pelos devassos da
"Histoire d'O", no castelo de
Roissy. A mesma pompa solene
recobre o ambiente dessa liturgia
perversa na qual a ordem, austera,
é sempre instaurada a serviço de
uma desordem futura, dando lugar a um desregramento que parece não conhecer limites. Ou,
melhor dizendo, esses limites ficam interditados a Bill, que é obrigado a abandonar o festim, deixando o espectador na mesma ignorância.
Com isso Kubrick -mas também o autor do livro, Schnitzler-
mantém intacta a supremacia de
uma imaginação que, lançada a
seu ponto de fuga, jamais cede aos
apelos da realidade.
"Toda a felicidade do homem
está na imaginação" -a frase,
proferida por um personagem de
Sade, vem lembrar que a fantasia
sempre preside a prática erótica.
Domínio do ilimitado, a imaginação pode renovar e multiplicar ao
infinito o jogo do desejo, ultrapassando os limites da própria matéria carnal que lhe serve de ponto
de partida.
Não é por outra razão que grande parte dos mascarados do ritual
encenado no filme opta por manter-se na mera posição de espectadores das orgias em curso. A prática sexual é obrigatória apenas
para as prostitutas, a quem cabe
encarnar as fantasias do grupo,
colocando seus corpos a serviço
da luxúria, seja ela física ou mental.
É nesse sentido que devemos interrogar a presença da máscara,
fetiche essencial dos ritos sexuais.
Na medida em que o rosto representa por excelência o signo da individualidade, quem se mascara
perde a identidade para tornar-se
parte indeterminada de um mundo anônimo e impessoal. No caso
dos festins eróticos, esse artifício
promove o acesso a um plano puramente carnal, que reduz o sexo
a um processo natural, biológico
e, portanto, animal.
Entende-se por que as máscaras
assumem com frequência formas
bestiais, tal como se evidencia na
"Histoire d'O": para aceder a um
mundo que só obedece ao regime
intensivo da carne, a personagem
passa por um progressivo processo de despersonalização, a terminar num ritual em que ela se apresenta nua, com o rosto coberto
por uma máscara de coruja.
Ora, se Kubrick recorre igualmente à máscara para disfarçar a
identidade dos membros do clube, talvez seja descabido falarmos
aqui de despersonalização, pelo
menos no sentido absoluto que a
"Histoire d'O" supõe. Isso porque
o filme joga, o tempo todo, com a
tensão entre o plano impessoal do
sexo e a inquietação humana que
a ele corresponde.
O mundo inumano ao qual acede O -essa heroína que sequer
tem um nome- recusa qualquer
traço de humanidade em função
de uma transcendência que, partindo da carne, beira a ascese mística. Por certo, não é isso que
ocorre em "De Olhos Bem Fechados": na figura da prostituta, mas
também na do casal Bill e Alice, o
filme realça justamente os impasses de uma sociedade que lança os
sujeitos nas vertigens de um imaginário sem transcendência.
Sociedade de abundância, marcada pelo imperativo do consumo
que impõe sem cessar novas provas à satisfação dos desejos. Se as
prostitutas são as únicas criaturas
que ainda observam certos valores da solidariedade humana, é
porque de certa forma elas se encontram às margens dessa sociedade, na difícil lida com a "vida
real". Mas no mundo imaginário
dos poderosos, onde impera a
fantasia, elas ocupam a mesma
posição dos brinquedos que povoam a grande loja de departamentos visitada por Alice e Bill no
final do filme, a lembrar a face infantil da insaciabilidade contemporânea.
Ora, não é difícil estabelecer elos
entre uma tal sociedade e aquela
do Império Austro-húngaro na
qual viveram Sacher-Masoch e
Schnitzler. Ou, então, a do final do
Antigo Regime francês, que abrigou tanto o marquês de Sade
quanto Casanova, personagem de
um romance do mesmo Schnitzler ("O Retorno de Casanova",
Ed. Companhia das Letras). Ou,
ainda, a do Império Romano, cujas excentricidades conhecemos
por meio de Petrônio e Ovídio.
Aliás, além do obsoleto "Introducing Sociology", o outro livro citado no filme é "A Arte de Amar",
do poeta latino, num contraste
desconcertante que denuncia os
impasses particulares do impiedoso mundo de Cronenberg -e
de Kubrick.
Eliane Robert Moraes é professora de estética e literatura na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo e autora, entre outros,
de "Sade - A Felicidade Libertina" (Imago).