IDENTIDADE E IDENTIFICAÇÃO

(Do Livro: Psicanálise, judaísmo: ressonâncias. Renato Mezan. Ed. Escuta, 1986, Campinas, SP, pág. 44-49)

A idéia básica da qual vamos partir é a seguinte: a identidade não é um elemento que cada um de nós possui ao nascer; ela é algo adquirida aos poucos, ao longo de nossa infância, de nossa educação, etc.

A identidade situa-se no ponto de cruzamento entre algo que vem de nós (o equipamento psíquico com o qual nascemos) e algo que nos vem de fora, isto é, da realidade externa. E, como dizia Freud em Totem e Tabu, na realidade externa o que existe é a sociedade humana, com as suas instituições e as suas normas.

Tentemos definir, brevemente, o que quer dizer a palavra identidade.

O primeiro sentido é o de ser idêntico a: duas folhas de papel são idênticas quando não existe diferença perceptível entre uma e outra. Outro sentido é aquele em que empregamos a expressão "carteira de identidade": neste caso, trata-se de um conjunto de sinais que permitem a outros dizerem quem nós somos, isto é, nos identificar, nos distinguir em meio a um conjunto. No caso da carteira de identidade, tais sinais são o número do R. G., a filiação, etc. Já percebemos, ao justapor estas duas acepções da palavra, que a identidade remete aos temas da diferença e da alteridade, isto é, remete aos seus opostos. Identificar significa "separar", "designar", mas também significa "tornar igual a": é neste campo semântico que se insere o sentido propriamente psicológico do termo.

Todos nós temos um sentimento de identidade, isto é, a sensação subjetiva de que algo subjaz aos diversos momentos de nossa existência e os torna partes da mesma vida, a de cada um de nós. Este sentimento de identidade está associado a fenômenos como o da continuidade (hoje e ontem, sou o mesmo, embora esteja em outro lugar e esteja vivendo coisas diferentes), e como o da sensação de ter limites (por exemplo, limites do meus corpo: sei intuitivamente onde começo e onde termino, e me sinto inteiro dentro dos limites da minha pele). Estes fenômenos podem parecer naturais, mas não são: existem pessoas cuja perturbação psíquica concerne exatamente a estas sensações de permanência, de continuidade, de limites claros entre si e outros; tais pessoas podem apresentar sintomas muito variados, que indicam estar pouco estruturado o nível de identidade, neste sentido que estou assinalando.

São patologias deste gênero que colocaram Freud e seus sucessores na pista de um problema que envolve este que estamos estudando, e que eu formularia assim: como se constitui a identidade de um ser humano? Que ela não é um dado natural é evidente pelo fato de que podemos perdê-la, ou de que ela poder ficar seriamente comprometida em certos quadros clínicos. Então, de onde vem?

A psicanálise responde: do processo a que chamamos identificação. E este processo de identificação resulta na constituição, dentro de cada um de nós, de um eu, isto é, de uma parte nossa que vai nos parecer a única, porque é apenas dela que temos consciência.

Quando uma criança nasce, ela ainda não tem um "eu", por mais estranho que isto possa parecer. Um bebê é um animalzinho que nasce cedo demais para a vida; é preciso cuidar dele durante vários anos a é que ganhe uma certa autonomia, coisa que os filhotes da maioria dos animais obtêm em questão de horas, dias ou semanas. Este fato biológico tem conseqüências psíquicas muito importantes. Através de filmes como Kaspar Hauser e de histórias reais de crianças que foram abandonadas logo ao nascer entre animais selvagens, e que por algum milagre sobreviveram, nós sabemos o que acontece quando o ser humano se desenvolve fora da sociedade humana: ela não realiza nenhuma das potencialidades que caracterizam nossa espécie, como a postura ereta ou o uso da linguagem e das técnicas de trabalho.

Histórias como a de Tarzan ou a de Mowgli, o Menino-Lobo, são infelizmente mitos; elas humanizam a vida dos macacos e dos lobos, transformando-as em réplicas melhoradas da sociedade humana.

Um psicanalista diria que estas lendas projetam sobre os animais algumas idéias acerca da felicidade do homem em estado selvagem, idéias que deram origem, em outros contextos, às mais variadas utopias (sem qualquer sentido pejorativo no termo utopia). Um personagem como Tarzan representa algo dos nossos ideais, ou pelo menos dos ideais do autor e da sociedade na qual e para a qual ele escreve: o homem, deixado às influências da Natureza, torna-se belo, autônomo, justo (Tarzan está sempre combatendo pelo Bem); ele reúne as melhores qualidades do animal e do ser humano. Mas as coisas não são bem assim: sem tirar a graça das histórias de Tarzan, é preciso reconhecer que o que humaniza o homem, o que o torna homem, é o convívio com outros seres humanos. E isto não apenas no plano mais óbvio, o dos hábitos, crenças e maneiras de ser que diferenciam as civilizações umas das outras – é claro que uma criança educada entre os pigmeus tem boas chances de se converter em pigmeu, socialmente falando, e independentemente de sua estatura. O que a psicanálise mostra é que a própria identidade pessoas nos chega através do convívio com outros seres humanos: nosso Eu, que consideramos tão "nosso", na verdade resulta de um longo e complicado trabalho psíquico.

Suponhamos um momento uma psique desencarnada, fechada sobre si mesmo e fora de um corpo. O que esta psique seria capaz de produzir? Claramente, nada que tivesse relação com o mundo fora dela: vamos chamar estas produções, quaisquer que possam ser elas, de pictogramas, utilizando um termo criado pela psicanalista Piora Aulagnier. Mas a psique não existe assim. Ela existe dentro de um corpo, e, por mais desagradável que seja esta experiência, ela precisa se abrir para o mundo e ser capaz de representar este mundo; se não, ela e o corpo que a abriga morrerão rapidamente. Originariamente, a psique não distingue entre um "dentro" e um "fora" dela; ou melhor, coloca fora de si tudo o que seja desagradável (ainda que a fonte deste estímulo desagradável seja o próprio corpo), e coloca dentro de si tudo que é agradável (mesmo que a fonte deste estímulo agradável seja, por exemplo, o seio do qual o bebê mama). Este é um espaço de fantasia, no qual vigora o princípio que Freud chamou de onipotência do pensamento. Todos nós sabemos que, em nossas fantasias, tudo é possível: às vezes, em nossos devaneios, somos amigos do rei, ou o próprio rei, somos imortais, belíssimos, etc. Basta querer e as coisas acontecem; uma imagem disto é a idéia da boa fada, com sua varinha de condão, que torna instantaneamente reais nossos desejos mais profundos.

Mas nem a fantasia nem o que caracterizei como pictograma são funções do eu. Este é uma parte do espaço psíquico que está em relação com a realidade exterior, cujos objetos de prazer se encontram nesta realidade, e não podem ser criados, como as fantasias pela atividade espontânea da psique.

Os primeiros objetos deste gênero são o corpo próprio e o Eu da mãe.

E criação de um Eu no bebê depende decisivamente da maneira como a mãe lida com ele, o que por sua vez depende decisivamente da maneira como ela lida com sua própria psique e com seu próprio Eu. A função do Eu é dar sentido ao que ocorre à psique, ao que vai lhe acontecendo por estar inserida num corpo e num sistema de relações com os outros seres humanos. Por isto, é preciso que o eu seja capaz de uma atividade psíquica que não se confunde com a fantasia, e que se chama o pensamento. E, para que o Eu do bebê tenha pensamentos para pensar, é preciso que a mãe os ofereça a ele.

Aqui convém introduzir uma noção psicanalítica muito importante: a de investimento. Investir algo significa, em psicanálise, ligar uma certa fração de energia psíquica a um objeto, objeto que pode ser uma idéia, uma pessoa, uma parte do corpo, uma coisa do mundo externo, etc. A psicanálise utiliza esta idéia um pouco esquisita segundo a qual, para que o Eu se constituia, é necessário que ele invista a si próprio, isto é, que a idéia de "eu" tenha sentido para o bebê. E como isto acontece? De uma maneira muito simples: é a mãe, como porta-voz da sociedade em que o bebê nasce, que por assim dizer "introduz" na psique do bebê um certo tipo de pensamentos, pensamentos cuja função é identificante, isto é, que dizem ao bebê quem ele é. "Você é meu bebê", "Você é lindo", "Você é meu filho", são exemplos simples deste tipo de pensamentos, que são pensamentos da mãe acerca de seu bebê. Eles exprimem os desejos da mãe quanto a esta criança, como podemos ver na seguinte anedota: Uma mãe judia está passeando na praça Buenos Aires com seus dois filhos, no carrinho de bebê. Uma pessoa se aproxima e pergunta: "são seus filhos?" E ela: "Claro! Este é o médico e este é o engenheiro!". Enunciados deste tipo são, na linguagem técnica da psicanálise, enunciados identificatórios.

Uma parte importante destes enunciados concerne ao nome e ao sobrenome que nós temos, e que fazem parte de nossa identidade, mas não foram escolhidos por nós. Eles nos localizam dentro da sociedade, como membros desta ou daquela família, e assim designam para cada um de nós alguém como nossa mãe, alguém como nosso pai, outros seres humanos como nossos irmãos ou primos. Isto serve também para definir aqueles ou aquelas com quem não posso manter relações sexuais: é o que se chama de lei da proibição do incesto. Entre os animais, não existe esta regra: um gatinho, quando cresce, pode fecundar uma gata que nós sabemos que é a mãe dele; mas nenhum dos dois sabe disso, porque no mundo dos gatos não existem pais nem mães, só existem machos e fêmeas. Estou dando este exemplo para mostrar que um gato não tem o que chamamos de identidade. Ele pode até reconhecer que seu nome é este ou aquele – os cachorros, por exemplo, percebem perfeitamente quando dizemos seu nome – mas eles não se designam a si mesmos desta maneira. Então, creio que está clara esta idéia: nós nos designamos por nosso nome, e nosso nome nos foi dado por outros, para quem este nome tem um sentido qualquer, no seu próprio desejo.

Aqui cabe uma observação. Costuma-se apresentar a relação entre a sociedade e o indivíduo como sendo basicamente uma relação de repressão. O indivíduo, por viver em sociedade, não pode fazer tudo o que deseja, deve aprender a controlar seus impulsos etc. Mas a sociedade não apenas nos impede de fazer o que desejamos. Através dos procedimentos identificatórios, ela também nos permite, torna possível para nós, o exercício de nossas potencialidades. No cinema, há bons exemplos disso. Num filme de Buñel, se não me engano O Discreto Charme da Burguesia, há uma cena que mostra isto bem: as pessoas comem em segredo, mas defecam em público. Isto é perfeitamente admitido naquela sociedade, enquanto o ato de comer é considerado sujo e indecente. Cenas assim servem para mostrar como são relativos os critérios do permitido e do proibido; os romanos defecavam em latrinas coletivas, como se pode ver nas ruínas das termas; ia-se ali não só para tomar banho ou fazer as necessidades, mas para ficar sabendo das últimas novidades, etc. Mesmo em nosso meio social, os critérios do permitido e do proibido variam de época para época. Há cem anos, era absolutamente indecente para a mulher mostrar as pernas, mas o colo era considerado como feito para ser exposto: de onde saias compridas e decotes extremamente ousados. Há um romance de José de Alencar, A Pata da Gazela, no qual o herói se apaixona pelo sapato da moça, que sugere um lindo pé, não visto e por isto mesmo misterioso, desejável; era considerado extremamente indecente mostrar os pés, mas os ombros e os cabelos podiam ser exibidos sem o menor constrangimento.

Tudo isto nos ajuda a compreender que sempre existe uma regra que partilha entre o permitido e o proibido, embora o que faz parte de cada uma destas categorias possa variar de época para época e de sociedade para sociedade.

A sociedade precisa criar não somente obstáculos á realização dos desejos, mas também canais através dos quais o sujeito possa dispor de um espaço psíquico interno; e uma das partes deste espaço interno é a identidade.

O poder não é apenas uma instância que reprime e proíbe; ele faz surgir, incita, produz comportamentos, como mostram os estudos do filósofo Michel Foucault. Entre estes comportamentos, está a relação do indivíduo consigo próprio, que é função de certas maneiras de sentir, de agir e de pensar que lhe são inculcadas através dos mecanismos identificatórios. Cada sociedade precisa se estruturar de forma tal, que seus membros possam se identificar a certos modelos, adotá-los como seus, representá-los como ideais a serem atingidos, etc. É necessário que haja também uma margem de manobra interna para cada sujeito, um espaço dentro do qual ele possa acomodar estes modelos gerais que a sociedade lhe oferece às suas próprias fantasias e às suas próprias fontes de prazer; é neste espaço que cada um de nós é Pedro ou João, goza de um direito á subjetividade que nos permite ser assim ou assado. Caso contrário, se houvesse apenas o processo de identificação no sentido sociedade - psique, todos os membros de uma dada sociedade seriam psiquicamente iguais, o que obviamente, não é verdade.......