Os fios da teia

(Comentário sobre o filme "O homem aranha")

*Jorge Coli

(Fonte: Jornal "Folha de São Paulo", Caderno "Mais" - 26/05/2002 - http://www.uol.com.br/fsp)

Existem, no cinema de Sam Raimi, aglutinações, intimidades silenciosas. Elas não se explicitam pela narração imaginativa nem pela habilidade técnica. Dizer, por exemplo, "Sam Raimi sabe filmar a paisagem" é muito pouco, porque não está apenas em jogo o visível. "A Morte do Demônio" (1982) não mostrava demônio nenhum, ao contrário do que sugere o título do filme no Brasil. Sam Raimi captava o Mal, um mal sem rosto, habitante da noite, das folhas, do vento. Em "O Dom da Premonição" (2000), árvores enormes, com suas estranhas raízes que se infiltravam num pântano, faziam sentir a circulação de forças secretas que escapam ao entendimento lógico. "Um Plano Simples" insistia nas paisagens de neve; mais o branco se impunha, mais ele se carregava de remorsos e crimes. São frutos de uma intuição inventiva que não se aprende no colégio.

Seu novo filme, "Spiderman" ("Homem-Aranha"), faz pulsar uma Nova York vertical, cujas paredes, cujas pontes metálicas, cujas avenidas, formando desfiladeiros retilíneos, são habitadas por alma orgânica e imóvel. Ela se torna o habitat do homem-inseto. Os ataques abrem feridas; um prédio atingido é como um corpo que desmorona. Distante da metáfora urbana de Gotham City, Sam Raimi parte do quotidiano, do verossímil e, ao progredir rumo à fantasia, evita as rupturas, mantendo seus poderes de convicção. Os personagens e a história do filme afinam-se com a invenção de Stan Lee nos quadrinhos, afastando-se das convenções criadas nos gibis mais antigos, e são acrescidos de uma verdade própria ao cinema.

Urdir - Os personagens de Sam Raimi são tomados por forças contraditórias, que se revelam pouco a pouco, menos em repentes dramáticos que em gestos ou falas banais. Nesse sentido, Raimi é avesso ao melodrama: basta imaginar que filme diferente não seria "Homem-Aranha" se confiado a James Cameron, que esteve envolvido com o início do projeto. Raimi leva as contradições interiores a se aguçarem conforme cada um expande suas relações com os outros.

O mais solitário de todos é Norman Osborn. Por isso mesmo, desdobra-se em três para projetar seus conflitos: ele é o empresário; ele é um duplo maligno, com quem dialoga no espelho; ele é o Green Goblin (Duende Verde). É como se o dr. Jeckyll tivesse dois mr. Hyde; um para uso interno, outro pondo máscara para sair e cometer maldades. A feiúra expressiva de Willem Dafoe, que encarna o personagem, é dolorosa, esvaindo-se em cansaço. Diferentemente de "Titanic", também o amor, em "Homem-Aranha", não é unívoco nem exaltado. É calmo nas suas certezas e fragilidades, complexo nos seus desacertos, dele emanando diálogos cuja espantosa qualidade poética destoaria em qualquer outro filme de aventura.

- A bandeira americana, no final de "Homem-Aranha", e os desabamentos de prédios remetem, sem dúvida, ao trauma do dia 11 de setembro passado. É verdade que o filme já estava sendo feito e que imagens do World Trade Center foram eliminadas dele. Mas Sam Raimi, na verdade, fala de outra coisa. Ele insiste na responsabilidade esquecida pelos poderosos: assim, o superpaís que inventou os super-heróis deveria ser o mais responsável de todos. Raimi configura inimigos e os dispõe em hierarquia: o dinheiro está em cima, submetendo e aliando-se à ciência e ao Exército. Trata-se de uma corrupção interior pela riqueza, no avesso da moral protestante.

Essa obsessão já surgira, insistente, em outras obras do diretor: a fortuna ambicionada traz poderes deletérios e maléficos. Menos até: uma simples transação, um banal pagamento, envolvendo notas e moedas, parecem ocultar sempre algo de doentio e de asqueroso.

Fios - As facetas sombrias de "Homem-Aranha" não diminuem o contágio de sua euforia. Nenhum outro super-herói recebeu um beijo tão sensual de sua amada nem saboreou, com tanto prazer, seus poderes extraordinários. Melhor ainda, ele os compartilha. O gênio de Sam Raimi que transparece em todos os seus filmes propulsa o público para dentro das cenas.

* Jorge Coli é historiador da arte - E-mail: jorgecoli@uol.com.br