Haneke une ficção e realidade

 

LEON CAKOFF

(Fonte: Folha de São Paulo, 17/05/97)

A frase mais chocante foi desferida por Bruce Willis na abertura do festival: ''As opiniões escritas só interessam para quem as lê. O que interessa está aí atrás de vocês''. Willis se referia às câmeras de televisão na sala da coletiva de imprensa para o filme ''O Quinto Elemento'', de Luc Besson, já um campeão de bilheteria internacional, em resposta a uma crítica negativa publicada na ''Variety''. Ficção e realidade ao vivo.

Ontem o jornal francês ''Libération'' reafirmou jocosamente, em entrevista na página dois com dois críticos, o pensamento do ator: ''O que a imprensa escreve não tem mais importância''.

Um ato de mea-culpa em reconhecimento ao que se passa no mundo da informação, em que as imagens reinam sobre as palavras.

O efeito confortante de uma imagem na televisão contra a reflexão das informações dadas por escrito. Muito antes da televisão, já há mais de um século, o cinema tira o melhor proveito que pode de tudo isso.

Vemos filmes em que sempre há tiros que sentenciam pactos de silêncio, em que as mortes são banalizadas e até aguardadas por espectadores que sabem torcer para o bem contra o mal.

Quentin Tarantino destacou-se no começo da carreira por romper com esse ''pacto de silêncio''. No filme ''Reservoir Dogs'' (Cães de Aluguel), seu personagem sangra lentamente ao longo do filme, sofrendo antes de morrer.

Exceção

A banalização da morte, mesmo com uma trama mais sofisticada que sugere um compromisso mais próximo com a realidade _como se viu ontem em ''L.A. Confidential'', do norte-americano Curtis Hanson_, segue um ritual que não inova nada.

A nova exceção surgiu ontem com ''Funny Games'', do austríaco Michael Haneke, um cineasta que marca, há quatro filmes consecutivos, pela violência explícita.

Haneke trouxe à competição uma distinção incômoda entre ficção e realidade.

Longe do que sugeriu o messiânico Wim Wenders em seu filme americano ''O Fim da Violência'', a violência e a dor são capazes de torturar implacavelmente o espectador.

''Funny Games'' mostra, em uma longa sessão de tortura, que é possível também fazer um espectador sofrer e muito quando um filme ficcional tortura e mata seus personagens.

Uma proeza e uma comoção que nem os dois filmes exibidos no começo do festival conseguiram: ''Welcome to Sarajevo'', de Michael Winterbottom, na competição, e ''O Círculo Perfeito'', de Ademir Kenovic, na Quinzena dos Realizadores, com os escombros da guerra civil ao fundo.

Os vilões austríacos são psicopatas que se autoproclamam Beavis & Butt-Head, os engraçados aspirantes a delinquentes juvenis da MTV.

Para completar o quadro maniqueísta, os dois tipos gostam de rock pauleira e de corrida de automóveis. Adrenalina ao extremo e requintes de perversidade de embrulhar o estômago na tela.

O ritual que praticam visa casais burgueses em fins-de-semana na beira de um tranquilo lago, onde a quietude e os bens de consumo servem para neutralizar as misérias do mundo.

Ficção e realidade no mesmo barco. Sem dúvida, um filme marcante que veio para polemizar.