A BUSCA DO PRAZER COMEÇA NA INFÂNCIA

Entrevista com o Professor Milton Zaiden, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise e especialista em psicanálise infantil

(Jornal "Folha de São Paulo", Folhetim, 23 de setembro de 1979)

Folhetim - Qual a influência da psicanálise na concepção teórica do mundo mental da criança?

Milton Zaiden - Bem, praticamente a psicanálise consiste na descrição do mundo mental da criança. Pode-se até dizer que são a mesma coisa: falar em psicanálise é, em última instância descrever o mundo mental da criança. Freud ao estudar o adulto começou a descobrir a existência da criança dentro dele. Tudo aquilo que os estudiosos da mente humana faziam anteriormente eram tentativas de aproximação de um doente mental: primeiro, de vê-lo como um doente; depois de tentar estabelecer uma classificação de doenças, diferenciar em grupos, coisas desse gênero. Freud foi quem percebeu que todos os chamados sintomas tinham um determinado significado. E, à medida em que foi aprofundando seus dados de observação e contatos com seus pacientes, formulou uma teoria dizendo que tudo aquilo que ele observava nada mais era do que a persistência do mundo mental da criança no adulto. Então ele trouxe todo esse conceito de desenvolvimento do psiquismo, do aparelho mental - e, para ilustrar melhor, é o mesmo caso de uma maçã verde que não pudesse amadurecer por haver nela condições tais que impedissem o seu amadurecimento - de modo que essa influência é total na minha maneira de ver.

Folhetim - Como se deram os primeiros estudos de Freud sobre a criança?

Milton Zaiden - Antes de tudo Freud era um estudioso primeiramente curioso; e, em segundo lugar, um observador muito perspicaz. Seus primeiros pacientes "mostraram" a Freud que possuíam perturbações na vida sexual. Foi a partir desses dados que começou a desenvolver uma teoria de que a função sexual existia, desde o começo da vida. Ficava difícil compreender como alguma coisa pudesse surgir, nascer no ser humano a partir de uma determinada idade, como se algo descesse lá do céu. A gente pode explicar, por exemplo, que uma perna ou um dedo existem, mesmo que de forma rudimentar, desde o embrião. Então a gente podia supor que as várias funções, sejam digestivas, renais, mentais ou sexuais também tivessem um principio e, depois, toda uma continuidade de desenvolvimento até chegar na "função sexual do adulto".

O mérito de Freud nesta questão, foi o de diminuir aqueles limites tão nítidos que existiam entre o que se considerava "normal e anormal". Ele viu que esses limites não eram tão nítidos, havia um interposição. A função sexual normal, na sua concepção, passou a ter um conceito mais amplo, tanto no sentido do normal para anormal, quanto no de adulto para criança.

Agora é preciso diferenciar o sexual do genital. O adulto, por exemplo, exerce funções sexuais num nível genital - que é a realização do ato sexual - quando ele o faz em busca do prazer, olhando sob o prisma biológico (embora a religião tenha colocado esse ato sexual sob a condição da reprodução). Freud descobriu, e teorizou, que a sexualidade se manifestava de várias maneiras, e não só através o genital. Quer dizer, na criança tudo aquilo que ela considerasse prazeiroso passava a ser considerado como sexual. Neste caso estaria o prazer que a criança sente ao ser amamentada, tanto pelo contato físico com a mãe, como na alimentação em si, satisfazendo a fome.

De uma forma esquemática - mas pouco esclarecedora em meu modo de ver - nós poderíamos dizer, que, a partir da teoria de Freud, a primeira e principal satisfação de uma pessoa vinha através da amamentação materna. Na medida em que a pessoa vai crescendo, essa necessidade ligada à boca passava para as necessidades excretoras, especialmente com a evacuação. Ou seja, a sexualidade ligada a outro ponto do corpo. Depois é que começaria a haver um predomínio ligado ao genital.

É importante notar que todas essas manifestações predominam durante determinada época da vida, mas não desaparecem depois de diminuir.

A fase oral persiste no adulto em menor grau e só gera preocupação se as suas manifestações predominarem sobre a genitalidade.

Logo no início dessa teorização, Freud acreditava que a nãos satisfação normal dessa atividades sexuais na criança é que, provocavam as perturbações mentais no adulto. Depois, ele chegou a ampliar um pouco o conceito de sexualidade ao afirmar que essas manifestações sexuais nada mais eram do que "manifestações de vida". Mas parece que as pessoas não compreenderam muito isso, começaram a achar que crianças queriam ter relações sexuais desde bebê etc. E essa coisa são todas teorias.

Folhetim - E essa chamada "perversão" de que Freud tanto falou nada tinha ver com moral?

Milton Zaiden - Pois é, a chamada perversão é, simplesmente, o desvio do normal. Alguém estabeleceu o que era normal, e tudo aquilo que saísse dos padrões rotulava-se como perversão. Freud começou a ver que aquilo não podia ser definido daquele jeito; por que considerar certas práticas como pervertidas se eram difundidas e faziam parte da relação sexual normal?

Para Freud, era necessária apenas uma substituição por outra prática, vista de outro ângulo mas também normal. Assim, se uma pessoa não conseguia obter uma satisfação através do ato sexual, se só o obtivesse através do olhar, ou do coito anal, ou do coito bucal, aí ele poderia achá-lo patológico, anormal. Mas se essas práticas fizessem parte do contato sexual, e depois a satisfação fosse obtida pela maneira considerada normal, deixavam de ser perversões.

Outra cosia que Freud costumava dizer é que a existência dessa chamadas perturbações e perversões - desde que elas não provocassem mal estar na própria pessoa - não deveria nem mesmo serem psicocanalisadas. Certa vez ele escreveu uma carta a uma mãe muito aflita por ter um filho homossexual, dizendo para ela nem se preocupar, pois, se o filho assumiu, se estava satisfeito, e aquilo fazia parte da vida dele, não havia motivos de preocupação.

Folhetim - Freud afirma, em sua autobiografia, que "os surpreendentes descobrimentos relativos á sexualidade da criança teve sua origem, a princípio, na análise dos adultos. Ele intensificou esse estudo sobre a criança mesmo?

Milton Zaiden - Não. Aliás, é muito interessante que ele nunca tenha trabalhado com crianças, diretamente. Ele fez, uma vez, uma análise de um menino de cinco anos (que é chamado de Joãozinho pela tradução brasileira de sua obra sobre o assunto), mas a fez indiretamente, só conversando com o pai, tendo-o encontrado poucas vezes. Ele sempre procurou a pessoa na idade infantil através da pessoa na idade adulta e, por isso, nunca escreveu nada a respeito, com exceção do Joãozinho.

O que ele dizia é que a gente, estudando o adulto, pode reconstruir o passado dele da mesma maneira que um arqueólogo pesquisando ruínas pode descrever toda a vida de uma cidade ou civilização. Ou seja, ele dizia que um ser adulto neurótico ou psicótico nada mais seria que ruínas de um ser humano. Justamente o pilar sobre o qual se constrói toda a teoria da psicanálise, toda sua técnica está naquilo que o Freud chamou de transferência que nada mais é do que a persistência no adulto da criança.

Folhetim - Freud chegou a apresentar propostas pedagógicas concretas para choques, repressões e traumas ocorridos na fase infantil?

Milton Zaiden - Eu, particularmente, sou descrente desse tipo de proposta pedagógica e posso explicar porque. A gente, partindo da idéia que o próprio Freud nos deu de que existe todo um desenvolvimento do psiquismo e que o adulto perturbado é, no fundo, uma criança (mentalmente falando), então eu acho que não adianta nada você querer "ensinar". Por exemplo: à mãe que não consegue se achegar afetivamente a seu filho por causa de uma angústia muito grande (mesmo quando o motivo é o choro do bebê por dor ou fome) como vou explicar a ela o que fazer? Ou o que não fazer se ela não tem uma estrutura para apreender o que estou falando? É por isso que digo que sou descrente quanto a esse tipo de proposta pedagógica. pois isso não se ensina nem se aprende: vive-se. É tudo função do desenvolvimento da personalidade.

Por outro lado, como vou chegar a dizer algo para essa mulher, se eu não sei exatamente o que ela está passando? Se eu nunca fui mãe? Não adianta você me explicar por que o limão é azedo. se eu nunca o experimentei para saber quão azedo ele é.

Freud nunca chegou a falar nada, também, a respeito de propostas, conselhos, a não ser quando comentou determinadas medidas profiláticas. higiênicas, coisas que pudessem ajudar às populações. Mas nada de teorias a respeito, coisas mais concretas, conselhos. etc.

Folhetim - Freud chegou a falar alguma coisa a respeito de crianças numa sociedade mais mecanizada?

Milton Zaiden - Não, acho que ele não chegou a pensar nada a respeito disso. É muito boa a sua pergunta por que. em última análise, você quer saber qual a influência do meio externo no meio interno. O que o Freud mostrou foi que essa influência existe. Mas ela existe - e isso é que é o ponto principal - sendo toda colorida pelo mundo mental. É como se a pessoa estivesse usando uns óculos: se ele usasse uns óculos cor-de-rosa, passaria a enxergar o mundo cor-de-rosa.

Algumas experiências são traumatizantes para algumas pessoas. E não são para outras. Em última instância. o que quero dizer a partir de Freud. é que tudo depende da estrutura mental de cada um. Se generalizarmos e dissermos que o mundo ambiental influi decisivamente no mundo mental. nós não podemos mais analisar o indivíduo. A generalização só serve, por exemplo, para um tipo de conversa como essa. Mas nunca para estudar uma pessoa. Então, se essa pessoa viveu num ambiente muito bom e, no entanto, ela é muito perturbada, eu não sei explicar o por que; posso dizer que ela nasceu assim, alguma coisa ocorreu no desenvolvimento da sua estrutura. Agora, se ela nasceu num ambiente, digamos ruim, as probabilidades dela crescer e se desenvolver perturbadamente são maiores