A crônica de um mundo que se partiu

 

Por Maria Maia

 

(Fonte: Correio da Cidadania: http://www.correiocidadania.com.br/ed169/cultura2.htm)

 

 

 

Um filme sobre a esquizofrenia de nosso tempo. Assim é Clube da Luta. Rápido e nervoso, com diálogos ágeis e eficazes, o filme testemunha a queda de um mundo que se partiu arrastando o sujeito que nele se via preso. Jack, um burocrata yuppie sacrifica sua vida em um escritório onde ganha rios de dinheiro que o levam a construir um mundo vazio. E a vivê-lo. A insônia, que lhe rouba não apenas o sono, mas os sonhos, aparece como um primeiro sintoma, não de sua doença, mas de sua saúde. É um sintoma de que aquilo que é vivo e ainda pulsa nele não suporta mais a falta de sentido de um mundo em que o ser sucumbiu sob o peso do ter.

 

A temática aqui, e a solução final - um mundo que explode, literalmente - remetem a Zabriskie Point, de Antonioni, que, com soluções estéticas diametralmente opostas fez, em 1969, a crônica do mundo esvaziado pelas coisas. David Fincher, no seu Clube da Luta não usa o tom de calmaria desértica que Antonioni genialmente imprimiu a Zabriskie Point. Ao contrário, situa sua história numa cidade febril e se utiliza de todos os clichês com os quais o cinemão americano inunda e polui as telas mundo afora: violência, ação, espetáculo, catástrofe e astros ( Brad Pitt, está magnífico como a desencantada e violenta metade do anti-herói do filme ). Mas Fincher se apropria destes elementos para fazer uma das mais contundentes críticas, não só do cinemão, mas da própria sociedade americana.

 

O trabalho, na grande companhia americana, só ajudou Jack a tecer a doença em que se entranha. O transformou em um ser enredado nas malhas do consumo, escravizado pela abundância que a sua ultra desenvolvida e rica sociedade lhe permite, ou melhor, lhe impõe, compulsoriamente. Para obturar o vazio existencial, procura escatologicamente o sentido da vida na dor real do outro em volta. Começa a frequentar círculos de auto-ajuda para pessoas desesperadas, doentes terminais, alcoólatras, drogados, seres muito perto da morte, para os quais o mundo confortável e artificial do consumo já não pode fazer o menor sentido. Em cada um destes lugares nosso herói assume um nome diferente: Cornelius, Ruppert, etc. Ancorado na insuportável dor do outro ele encontra alívio e volta a dormir.

 

O apartamento de Jack é uma metáfora do universo onde repousam ou enlouquecem os consumidores modernos - anti-seres, crias legítimas do brutal capitalismo, para seu deleite e perpetuação: repleto de aparelhos domésticos de última geração, objetos de decoração superdescolados e outras inutilidades, que a propaganda teima em fazer necessários e vitais para o "incluído" moderno. Templo dos desejos de consumo o apartamento foi montado, peça a peça, com o rito cotidiano de entrega - via trabalho - da alma do jovem yuppie ao grande diabo capitalista. De fato, a companhia em que trabalha é mestra em falcatruas e entrega peças adulteradas aos consumidores, mesmo que isto signifique a morte de outros.... consumidores.

 

Este mundo "confortável" se rompe violentamente no filme arrastando o nosso herói: a certa altura da vida vazia e preenchida por milhares de objetos inúteis, sua alma atormentada pela insônia se parte em duas. Sucumbe à esquizofrenia. Grande sacada do roteiro. A esquizofrenia é precisamente uma doença mental fruto da perda de contato vital com a realidade. É que a realidade em que ele vive, não oferece mesmo nenhuma chance para o sujeito estabelecer contato vital com nada, a não ser com objetos e coisas. Então no seu caso, paradoxalmente, sua doença é sua saúde. Ele não pode mais seguir concordando em fazer parte de um mundo em que o ser é obrigado a "viver" ilhado em meio às coisas. Em que o ser é primordialmente destituído da condição de ser.

 

A queda na loucura se dá em pleno vôo, quando conhece mais um daqueles "amigos descartáveis" que as pessoas conhecem nos vôos, mundo globalizado afora. Amizades que estão fadadas a durar o tempo dos vôos. Tão breve quanto a satisfação que as coisas do universo do consumo são capazes de oferecer.

 

Ao chegar de viagem em casa, Jack assiste atônito a queda de seu mundo. A mesa de design ying e yang e todos os seus "preciosos" objetos, que eram até então o centro de sua vida, estão em chamas. Resolve então ligar para seu novo amigo descartável. Sem saber bem porque, sente que aquela estranha criatura, Tyler Durden, é a sua tábua de salvação.

 

Tyler é a antítese do burocrata yuppie. Cínico, cético, sarcástico e obsceno, renunciou à racionalidade esquizóide do capitalismo: leva a vida a fazer pequenas sabotagens na vida "confortável" das pessoas: garçon, faz xixi no prato que serve; montador de filmes, coloca pequenas e imperceptíveis ( conscientemente) inserções de cenas pornográficas nos filmes; fabrica sabonete com gordura roubada de uma clínica de lipoaspiração. E por aí vai errando ...

 

O errante induz o burocrata a aceitar ajuda e morar com ele. E o convence a fazer algo muito estranho. Pede que lhe bata. Que lhe bata o mais forte que puder. A afetividade neste mundo esquizóide só se manifesta por seus signos contrários. O único contato humano possível é o soco.

 

Os socos que trocam, por prazer e querer, instauram entre eles uma forte amizade e estabelecem uma estranha cumplicidade. O burocrata idolatra o errante. Docilmente vai se deixando dominar por ele. Resolvem criar o clube da luta, esquisita sociedade cuja regra número um é não falar do que se passa nela com ninguém. E o que se passa nela é muita luta. Mas luta leal, corpo a corpo, dois a dois, sem objetivo nenhum de vitória. Os perdedores, que a América tanto abomina, talvez façam ali algum sentido. Descobrem que a grandiosa e vitoriosa América está coalhada deles. Servindo em bares, conduzindo ônibus e taxis, fazendo os pequenos e ordinários serviços. E o clube da luta cresce e avança por toda a parte, pregando o caos. Crescendo entre seres desesperançados e revoltados.

 

Jack agora mora na casa-ruína do errante. Nada funcional, tudo é precário e contrário ao mundo em que vivia antes. Mas dali, daquele novo mundo, que como dizia Freud, "o louco constrói sobre as ruínas do ego que ruiu", ele pode enfim se encontrar - mesmo que sob o impacto da violência, do choque físico mesmo - com seu duplo. E descobre estupefato que seu duplo é ele próprio. A parte recalcada de si mesmo, seu centro vital.

 

Mas não há lugar para encontro com a vida nestes tempos de morte.