CIÊNCIA E VIDA

CIÊNCIA E VIDA

do site extinto "Rede de especialistas" (RJ)

 

Introdução

 

Explicitar o conceito de ciência, bem como o de vida, ou o de ciência da vida, por si só, já é uma tarefa muito abrangente, que nos conduz aos mais diversos questionamentos, a diferentes campos de saber, com a possibilidade de várias abordagens.

 

Trataremos, aqui, da questão Ciência e Vida através de dois pontos principais: primeiro, considerando a vida de acordo com a concepção da biologia, mostrando a relevância de uma história filosófica das ciências da vida, em particular aquela elaborada por François Jacob; segundo, através da articulação das ciências biológicas com outros campos de saber e de práticas (pedagógicos, militares, industriais, médicos) e com as relações de poder, conforme apontado por Michel Foucault. Antes, porém, teceremos algumas considerações.

 

 

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES: vida, ciência e vontade de potência

 

A primeira definição de vida que encontramos no vocabulário técnico e crítico da filosofia é:

 

Conjunto de fenômenos de todo tipo (particularmente de nutrição e de reprodução) que, para os seres com um grau suficientemente elevado de organização, se estendem do nascimento (ou da produção do germe) até a morte (LALANDE, 1983:1204).

 

Esta é uma definição tomada da biologia. Através de um questionamento incessantemente remanejado durante os últimos quatro séculos, assiste-se à transformação da maneira de considerar a vida e o ser humano. Eles se tornam objeto de ciência.

 

Muitas vezes, a noção de vida, no sentido biológico, se funde com a idéia de vida social, vida animal, vida humana, vida moral... Isto porque o conceito de vida se apresenta nas fronteiras de diversos saberes e práticas, com vários significados estabelecidos pelo senso comum, pelo mito , pela arte, pela ciência, pela filosofia,etc.

 

Podemos considerar, então, que a questão Ciência e Vida remete-nos à filosofia das ciências, particularmente das ciências da vida, como a biologia, as ciências biomédicas (medicina com suas diversas especialidades, bioquímica, genética e outras). Assim sendo, a constituição da racionalidade científica nesta área, a história crítica de seus conceitos, seus métodos e sua linguagem, seu caráter sociológico, seus paradigmas , as articulações entre a produção de conhecimentos e as relações de poder devem ser investigados.

 

Outro importante campo de saber para o estudo desta questão são as chamadas filosofias da vida, que se desenvolvem a partir do século XVIII, com a constituição das ciências biológicas e das filosofias intelectualistas ou conceitualistas, contra a noção de vida como mecanismo, em oposição à lógica e às abstrações transportadas das ciências:

 

Aquele que objetasse com a ciência alemã incorreria num profundo equívoco e demonstraria, ademais, não ter lido uma só linha minha. Há dezoito anos não me canso de proclamar a influência deprimente de nosso cientificismo atual sobre o espírito (NIETZSCHE, 1976:57).

 

O pensamento de Nietzsche (1844-1900) é um exemplo do que podemos chamar filosofia da vida. A idéia de vontade de potência da vida é a idéia de força que deve ser afirmada e expandida, em oposição à vontade de potência negativa.

 

A vontade de potência negativa desdobra-se através de vários instintos, como o de conhecimento, o de rebanho, que são forças desembocando na criação de métodos científicos, de teorias do conhecimento, de crenças no sujeito, na unidade, na verdade absoluta. Para Nietzsche, trata-se, de fato, de mecanismos ilusórios, encaminhados não para o conhecer propriamente, mas para adquirir poder sobre as coisas e os outros, para " corrigir" a realidade, atribuindo-lhes um sentido lógico dogmático.

 

A crítica de Nietzsche às concepções de vida cientificistas e intelectualistas baseia-se na idéia de que a moral e a racionalidade filosófico-científica ocidentais seriam a vulgarização da metafísica platônica e socrática, que, em sua opinião, inaugurou o conhecimento racional, característico da época moderna. O pensamento socrático teria sido originado pela invenção e dogmatização de idéias ditas superiores - Bem, Belo, Verdade - criadas, na realidade, pelas consciências enfraquecidas. Seu objetivo seria escapar à luta de forças, que é a vida, e impor a resignação, compensando a impossibilidade de participação na dominação dos senhores e dos fortes.

 

A vontade de potência da vida, positiva, refere-se ao aumento de força, à expansão da vida, à afirmação dos instintos; ela só é possível se o processo de supervalorização da razão for anulado, através da arte trágica.

 

Nessa propriedade de afirmação ou de negação da vida se encontra o essencial da reflexão nietzscheana sobre a relação entre arte e ciência, que se faz não na perspectiva da verdade e da falsidade, mas na perspectiva da força. (...) A força da arte é a afirmação da vida, que é totalmente incompatível com a negatividade que caracteriza a ciência. (...)Se a força científica reprimiu a força artística dionisíaca, isto é, se a arte, e com ela a vida, foi desvalorizada pela metafísica socrática, é preciso revalorizar a arte - que cria uma superabundância de forças, que é o grande estimulante da vida, uma embriaguez de vida - para obrigar o saber a um retorno à vida (MACHADO, 1984: 46).

 

Nietzsche afirma a vida como tendo um valor em si mesma e critica os grandes sábios da filosofia, da metafísica e da ciência, que, a seu ver, não entendem que a vida não pode ser analisada como verdade ou erro, não pode ser submetida à razão:

 

Em todos os tempos os sábios fizeram o mesmo juízo da vida: ela não vale nada... Sempre e em toda parte ouvimos sair de suas bocas a mesma palavra - uma palavra repleta de dúvida, repleta de melancolia, repleta de cansaço da vida, repleta de resitência contra a vida. Mesmo Sócrates disse ao morrer: " Viver - é estar há muito tempo enfermo: devo um galo a Esculápio libertador"(Nietzsche,1976:17).

 

Ao contrário, para François Jacob, professor de genética da célula no Collège de France, que recebeu o prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1965, por seus trabalhos sobre a genética das bactérias e dos vírus, a ciência tem um papel bastante positivo; talvez uma de suas maiores contribuições, afirma, seja a de ter ajudado na destruição do dogmatismo fundado na busca incessante de uma verdade intangível e eterna.

 

Nada causa tanta destruição quanto a obsessão de uma verdade absoluta. Todos os crimes da história são conseqüência de algum fanatismo (...)No final deste século XX, é preciso que fique claro para cada pessoa que nenhum sistema explicará o mundo em todos os seus aspectos e detalhes.( JACOB, 1983:8).

 

 

Em defesa dos cientistas afirma:

 

Há alguns anos os cientistas vêm sendo objeto de censuras. (São acusados) de serem indivíduos perigosos que não hesitam em descobrir e utilizar meios de destruição e de coerção terríveis. Exagera-se sua importância. (...) A frieza, a objetividade apontadas como características condenáveis dos cientistas talvez sejam mais convenientes que a febre e a subjetividade para tratar de certos assuntos humanos. Pois não são as idéias que engendram as paixões. São as paixões que utilizam a ciência para sustentar sua causa. A ciência não leva ao racismo e ao ódio. É o ódio que lança mão da ciência para justificar seu racismo (JACOB, 1983:8).

 

 

VIDA E BIOLOGIA: uma história das ciências

 

 

Pouco a pouco surge o objeto de uma ciência que estuda não mais os vegetais ou os animais enquanto elementos constituintes de certas classes entre os corpos da natureza, mas o ser vivo a quem uma certa organização confere propriedades singulares. Para designar esta ciência, Lamarck , Treviranus e Oken utilizam quase que simultaneamente o termo Biologia. (...) Para além das diferenças de formas, de propriedades, de habitat, trata-se de descobrir os caracteres comuns ao vivo e de dar um conteúdo ao que, de agora em diante, se chama vida (JACOB, 1983:94).

 

 

Em Lógica da Vida, Jacob analisa a questão da vida através de um estudo do conceito de hereditariedade, com o objetivo de descrever as condições que, a partir do século XVI, permitiram o aparecimento sucessivo de estruturas que emergem na arquitetura do ser vivo, reveladas em camadas cada vez mais profundas.

 

 

Segundo Jacob, em meados do século XIX, ocorre uma reviravolta na prática da biologia. Aparece a teoria celular em sua forma definitiva, a teoria da evolução, a análise química das grandes funções, o estudo da hereditariedade, o estudo das fermentações, a síntese total dos primeiros compostos orgânicos.

 

 

A palavra biologia acaba cobrindo um leque de ciências diferentes, que se distinguem não somente por seus objetivos e suas técnicas, mas por seu material e sua linguagem. A bioquímica e a genética são exemplares, cada uma representando tendências da biologia:

 

A bioquímica, que trabalha com extratos, estuda os elementos constituintes dos seres vivos e as reações que se produzem neles, remete à estrutura dos seres e suas propriedades, à rede das reações químicas e aos desempenhos de algumas espécies moleculares. A genética, ao contrário, interroga populações de organismos para analisar a hereditariedade; atribui a produção do idêntico e o aparecimento do novo às qualidades de uma estrutura nova, existente no núcleo da célula (JACOB,1983:187).

 

 

Para Jacob, a principal característica da vida é a reprodução do organismo, concebida, pela biologia moderna, como um programa dos seres vivos que têm a capacidade de conservar a experiência passada e transmiti-la.

 

 

Em um ser vivo, tudo está organizado tendo em vista a reprodução, que é o que define vida. A chamada luta pela vida é o concurso pela descendência, é a fecundidade, cujo princípio determina que "ganham automaticamente os mais prolíficos, através de um combate sutil entre as populações e seu meio" (JACOB, 1983:13).

 

 

Jacob faz uma análise histórica da maneira pela qual o conceito de geração , isto é, de criação sempre renovada, que exige a intervenção de uma força externa, transforma-se na noção de reprodução, propriedade interna de todo sistema vivo:

 

O homem logo soube interpretar e explorar a permanência das formas através das gerações. Cultivar plantas, criar animais, aprimorá-los para torná-los comestíveis ou domésticos supõe a aquisição de uma grande experiência. Supõe que já se tenha alguma idéia de hereditariedade para utilizá-la em proveito próprio. (...)Mesmo depois de estabelecidas as virtudes do método científico com relação ao mundo físico, aqueles que estudavam o mundo vivo continuaram, durante muitas gerações, a pensar a origem dos seres a partir de crenças (...) Até o século XIX persistiram, sob uma ou outra forma, alguns aspectos dos velhos mitos que falavam sobre a origem do homem, dos animais e da terra (JACOB, 1983:9).

 

 

O que é transmitido de geração em geração são os planos arquitetônicos do futuro organismo, assim como os meios para executar estes planos e coordenar as atividades do sistema. O ser vivo representa a execução de um projeto, que tende para um objetivo - preparar para a geração seguinte um programa idêntico para reproduzir-se.

 

A hereditariedade é descrita hoje em termos de informação, mensagens, código. A reprodução de um organismo tornou-se a reprodução das moléculas que o constituem. Não porque cada espécie química tenha capacidade de produzir cópias de si mesma, mas porque a estrutura das macromoléculas é minuciosamente determinada pelas seqüências de quatro radicais químicos contidos no patrimônio genético (...) O organismo torna-se assim a realização de um programa prescrito pela hereditariedade (...) O ser vivo representa certamente a execução de um projeto, mas que não foi concebido por inteligência alguma. Ele tende para um objetivo(...)preparar para a geração seguinte um programa idêntico. (JACOB, 1983:10).

 

 

A concepção atual de hereditariedade resulta, como já sugerimos, do estudo de camadas cada vez mais profundas e ocultas do ser vivo. A explicitação destes níveis, pelas ciências biológicas, não resulta de um acúmulo de observações e experiências, mas expressa uma mudança mais radical na própria natureza do conhecimento. Esta mudança deve-se a uma nova forma de olhar o ser vivo, agora visto como organismo, e não ao aperfeiçoamento de equipamentos.

 

 

Neste sentido, mesmo quando um instrumento aumenta o poder dos sentidos, ele nada mais é do que a aplicação prática de uma concepção abstrata. Por exemplo, o microscópio é a reutilização de teorias - não basta ver um corpo até então invisível para transformá-lo em objeto de estudo, pois, " para que um objeto seja acessível à análise, não basta aperceber-se dele" (JACOB,1983:22), é necessário que o pensamento possa utilizá-lo.

 

 

As transformações que modificaram a natureza dos seres vivos, sua estrutura, sua permanência ao longo de gerações são, segundo Jacob, progressivas e têm uma historicidade própria. A melhor abordagem desta historicidade é a história das questões, ou seja, das diversas configurações da interrogação sobre a natureza, que abandona inteiramente o pressuposto da verdade intangível e eterna para explicar a vida. Pois as questões são a mola propulsora das ciências, enquanto os resultados são respostas acabadas.

 

 

As questões sobre a vida e o ser humano, formuladas em ciências, só podem ser compreendidas a partir das diversas formas de relação entre a visibilidade, o olhar, e o conhecimento, ou seja, a maneira de olhar e seu objeto, ou ainda, a partir dos diversos modos pelos quais se enfoca a verdade.

 

 

Nas ciências da vida, a verdade revelada foi substituída pela verdade produzida, parcial e provisória, contrária à noção tradicional de verdade absoluta. O conflito entre estas duas concepções de verdade manifesta-se nas formas de considerar a vida e o ser humano. Por exemplo, os partidários da idéia de criação encontram, no mais íntimo detalhe da natureza, o sinal que prova infalivelmente a verdade, que eles não imaginam poder deixar de ser reconhecida. Os outros procuram incansavelmente, nesta mesma natureza, traços de acontecimentos que freqüentemente não foram abandonados, com o objetivo de reconstruir aquilo que eles querem que não seja um mito, mas uma história, uma teoria que progride.

 

 

De acordo com Jacob, o biólogo deve conhecer a história da sua ciência, para ter uma melhor compreensão da formação de seus conceitos, suas questões, enfim, suas explicações. Esta história deve ser uma investigação de como os seres vivos e a vida se tornaram objeto de análise, permitindo que novos domínios se constituíssem como ciência.

 

 

A investigação histórica mostra a existência de um domínio que o pensamento explora, instaurando uma ordem, para estabelecer relações abstratas, de acordo com as observações, as técnicas, os valores e as interpretações da época; ela não considera o progresso científico uma evolução linear, em que as idéias engendram umas às outras, porém um processo descontínuo - com cortes ou rupturas. Assim, Jacob tenta demarcar filosoficamente as diversas etapas das ciências da vida, enfatizando que uma época ou uma cultura caracteriza-se fundamentalmente pela natureza das problematizações que introduz, muito mais do que pela extensão de seus conhecimentos.

 

VIDA E PODER: uma história do direito de morte e poder sobre a vida

 

 

Para tratar da questão Ciência e Vida, do ponto de vista político, utilizamos os seguintes pressupostos fundamentados no pensamento de Michel Foucault (1926-1984): (a) que existe uma relação entre saber e poder; (b) que as ciências do homem podem ser consideradas um prolongamento das ciências da vida, porque se fundam biologicamente; (c) que os conceitos biológicos não são pensados exclusivamente através da estrutura interna do ser vivo (organizado), mas se articulam com dispositivos de poder, diretamente ligados a processos fisiológicos; (d) que o nível biológico e o histórico se ligam de acordo com uma complexidade crescente, à medida que são desenvolvidas tecnologias modernas de poder, as quais tomam por alvo a vida.

 

Em História da Sexualidade I: a Vontade de saber, Michel Foucault mostra que, a partir do século XVIII - quando aparece o domínio da Biologia como ciência da vida -, cada vez mais, os mecanismos do poder se dirigem ao corpo, à vida, ao que faz proliferar, ao que reforça a espécie, `a saúde e à vitalidade do corpo social.

 

Os novos procedimentos de poder, elaborados durante a época clássica e postos em ação no século XIX, atuam sobre a vida dos indivíduos e das populações através da norma, do saber, da disciplina e das regulamentações. O poder disciplinar atinge o corpo do indivíduo, com táticas específicas, ordenando as diferenças humanas.

 

Por muito tempo, um dos privilégios característicos do poder soberano fora o direito de vida e morte. Sem dúvida, ele derivava formalmente da velha patria potestas que concedia ao pai de família romano o direito de "dispor" da vida de seus filhos e de seus escravos; podia retirar-lhes a vida, já que a tinha "dado". O direito de vida e morte como é formulado nos teóricos clássicos é uma fórmula bem atenuada desse poder (FOUCAULT, 1977:127).

 

O poder, na época clássica, marca seu direito sobre a vida pela morte que pode exigir, ou melhor, direito de causar a morte ou de deixar viver. Mas ele era sobretudo o direito de apreensão das coisas, de confisco do tempo, dos corpos e da vida; culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la.

 

Entretanto este confisco tende a ser uma entre outras funções do poder, cuja função principal passa a ser produzir forças, fazê-las crescer e ordená-las, mais do que barrá-las ou destrui-las. O direito de morte tenderá, então, a se apoiar nas exigências de um poder que gere a vida:

 

Essa morte, que se fundamenta no direito do soberano se defender ou pedir que o defendessem, vai aparecer como o simples reverso do direito do corpo social de garantir sua própria vida, mantê-la ou desenvolvê-la (FOUCAULT, 1977:128).

 

O poder começa a se exercer positivamente sobre a vida , empreendendo sua gestão, sua majoração, o exercício sobre ela, de controles precisos e de regulações de conjunto. As guerras já não se travam em nome do soberano, mas em nome de todos - das populações inteiras que são levadas à destruição mútua em nome da necessidade de viver. São mortos, legitimamente, aqueles que representam uma espécie de perigo biológico para os outros.

 

Concretamente, este poder sobre a vida desenvolveu-se em duas formas principais e complementares. Primeiramente, o adestramento do corpo considerado como máquina : ampliação de suas aptidões, extorsão de suas forças, crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, sua integração de controles eficazes e econômicos. Tudo isso consiste naquilo que Foucault chama de anátomo política do corpo humano, que se carateriza pela disciplinarização do indivíduo, de seu corpo.

 

A segunda forma de desenvolvimento foi, quando a partir do século XVIII, quando o poder sobre a vida centrou-se no corpo espécie, transpassado pela mecânica do ser vivo, suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar. Estes processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores, que Foucault chama de bio-política da população. O seu papel mais importante é o de garantir, sustentar, reforçar, multiplicar a vida e colocá-la em ordem.

 

A noção de população como problema econômico e político, como representando riqueza, mão-de-obra ou capacidade de trabalho, em equilíbrio, aparece no século XVIII, quando os governos percebem que não têm que lidar apenas com sujeitos ou povos, mas com um conjunto de variáveis específicas - natalidade, fecundidade, saúde ou doença, alimentação, habitação, etc - . Estas variáveis situam-se no ponto de interseção entre os movimentos próprios à vida e os efeitos particulares das instituições.

 

As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem dois pólos em torno dos quais se organizou o poder sobre a vida, que é considerado por Foucault como uma grande tecnologia de poder de duas faces, a anatômica e a biológica:

 

A instalação - durante a época clássica, desta grande tecnologia de duas faces - anatômica e biológica , individualizante e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida - caracteriza um poder cuja função mais elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida... (FOUCAULT, 1977:131).

 

Trata-se da administração dos corpos, gestão calculista da vida, através de técnicas e diversas disciplinas (das escolas, casernas, ateliês), práticas políticas e observações econômicas dos problemas de natalidade, longevidade, saúde pública, habitação e migração.

 

As duas direções ainda aparecem de forma bem separada no século XVIII. A partir do século XIX, o poder transforma-se em agenciamentos concretos - o dispositivo da sexualidade será um deles, por exemplo - que constituirão a grande tecnologia do poder no século XX, capaz de majorar as forças, a vida em geral, através da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos.

 

Os rudimentos da anátomo e bio-política, inventados no século XVIII, utilizados por instituições bem diversas (a família, o Exército, a escola, a polícia, a medicina individual ou a administração das coletividades) agiram no nível dos processos econômicos, do seu desenrolar, das forças da vida:

 

(...)a entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie humana na ordem do saber e do poder - no campo das técnicas políticas (FOUCAULT, 1977:133).

 

O homem aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva, num mundo vivo, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de vida, de saúde individual e coletiva, forças que podem se modificar e um espaço em que se pode reparti-las de modo ótimo. Assim o biológico reflete-se no político:

 

Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político; o fato de viver não é mais este sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos, no acaso da morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no campo de controle do saber e de intervenção do poder (FOUCAULT, 1977:134).

 

Contudo Foucault nos adverte para o perigo desta forma de dominação. Para ele, não há nada mais tirânico e mais fatal do que colocar sua vida sob o signo de uma ciência ou de uma ideologia, ou melhor, de uma exigência de verdade, em que o papel do saber não é apenas produção de verdade, mas o exercício de poder. Para ele, nas sociedades capitalistas, o poder é negativo e repressivo, mas possui uma eficácia produtiva; possui uma positividade que precisa ser conhecida: a da gestão da vida dos indivíduos e das sociedades, para a qual produz uma série de saberes específicos, capazes de auxiliar, como dissemos, na função de tornar os indivíduos dóceis, do ponto de vista político, e produtivos, do ponto de vista econômico.

 

 

Proposta de Atividade em sala de aula

 

 

Debate sobre a questão das ciências da vida como representando perigo e/ou progresso para a vida dos indivíduos e da sociedade.

 

Bibliografia

 

 

1.FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Zahar, 1997. 2._________. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977. 3._________.A história da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1977. 4.JACOB, F. A lógica da vida: uma história da hereditariedade. Rio de Janeiro: Graal, 1983. 5.MACHADO, R. Zaratustra: tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. 6.________. Nietzsche e a verdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1984. 7.NIETZSCHE, F. Crepúsuculo dos ídolos. São Paulo: Hemus, 1976. 8.PORTOCARRERO, V. Foucault: a história dos saberes e das práticas. In: Filosofia, história e sociologia das ciências I: abordagens contemporâneas. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1994.