Ciência e poder

(Do Livro: fundamentos da Filosofia, Gilberto Cotrim, Editora Saraiva, 2001, pág. 253-255)

Não é só em relação á possibilidade de verdade das teorias científicas que a filosofia da ciência deve se debruçar. Outras questões ainda surgem no mundo contemporâneo em relação à ciência. Elas dizem respeito ao sentido, ao valor e aos limites éticos do conhecimento científico....

Nos filósofos da Escola de Frankfurt essa crítica foi formulada, pelo menos por Adorno e Horkheimer, juntamente com a crítica da própria razão contemporânea, dominadora e manipuladora, uma razão instrumental.

A partir dos ideais iluministas, essa razão apresentava-se como libertadora, mas passou a servir à dominação e destruição da natureza. Em um texto de autoria de Horkheimer e Adorno, A dialética do esclarecimento, de 1947, os dois fazem dura crítica o Iluminismo, que estimulou o desenvolvimento dessa razão controladora e instrumental que predomina na sociedade contemporânea. Denunciam também o desencantamento do mundo, a deturpação das consciências individuais, a assimilação dos indivíduos ao sistema social dominante. Em resumo, Horkheimer e Adorno denunciam a morte da razão critica, asfixiada pelas relações de produção capitalista.

A vida dos indivíduos também foi submetida a mecanismo de racionalização, como a especialização do trabalho nas indústrias, que se apresentou como científica, quer dizer, neutra, desinteressada. Por trás dessa aparente neutralidade e imparcialidade, esse cientificismo escondia interesses bastante concretos.

Outro filósofo que denunciou os mecanismo de controle social através da indução racional e científica dos comportamento foi Foucault. Ele mostrou que o saber especializado é usado como forma de convencimento racional das pessoas em geral, exercendo poder sobre elas.

Essa utilização do discurso científico só é possível a partir do mito do cientificismo, ou seja, a crença no poder da ciência de tudo explicar e, sobretudo, a crença na neutralidade da ciência, a idéia de que o conhecimento científico é desinteressado e imparcial.

Tomemos apenas um exemplo que, por suas dimensões e características nos dá uma idéia precisa do que pode ser o uso "interessado" da tecnologia.

A filósofa e socióloga de origem alemã naturalizada norte-americana Hannah Arendt (1906-1975), em seu livro Eichmann em Jerusalém, investigou a brutalidade do regime nazista, apontando como uma das sua principais características a forma racionalizada com que foi feito o extermínio de seis milhões de judeus nos campos de concentração. O emprego da tecnologia, ou seja, das câmaras de gás e dos fornos crematórios, era um procedimento frio, burocratizado, uma operação feita por funcionários públicos.

Eichmann é o nome de um desses funcionários de Hitler, a quem Arendt identificou como um produto típico do regime nazista.

Analisando as condições em que se tornou possível o extermínio de um número tão grande de pessoas, Hannah Arendt concluiu que isso se deveu á banalização do mal, obtida através de uma prática cientificamente programada e racionalizada.

Em nossos dias, nos deparamos com situações semelhantes nos "ataques cirúrgicos" que caracterizam as guerras atuais. Resultado do refinamento da tecnologia de armamentos, essas guerras à distância também banalizam o mal, uma vez que quem aperta um botão não vê, não presencia, não vive diretamente o horror da guerra que passa a ser assistida comodamente numa telinha de TV.

Por isso é importante o reconhecimento de que os avanços científicos e tecnológicos atendem a interesses que muitas vezes fogem do campo propriamente científico.

Os cientistas envolvidos na construção da bomba atômica, por exemplo, não detinham o controle do uso de seu produto.

O físico norte-americano Julius Robert Oppenheimer (1904 -1967), diretor do centro de pesquisas nucleares de Los Alamos durante parte dos trabalhos das pesquisas relativas a tal projeto, redigiu uma declaração na qual revelou sua ignorância política, ou seja, os desconhecimento do uso previsto para as suas pesquisas.

Muitos países dependem economicamente da indústria armamentista, pois ela é responsável por grande parte do produto interno bruto mundial. Isso faz com que se invistam mais recursos nesse tipo de tecnologia em detrimento de outros, pois estão envolvidos interesses de dominação política e econômica. Conforme disse Albert Einstein:

O pensamento científico tem um olho aguçado para métodos e instrumentos, mas é cego quanto a fins e valores. Fruto do intelecto, a ciência pode determinar como as coisas são, mas não o que devem ser.

Assim, o desenvolvimento tecnológico, que traz em si a possibilidade de ser fator de emancipação da humanidade traz também em si a possibilidade de ser instrumento de dominação e legitimação do sistema. Marcuse, um dos filósofos da Escola de Frankfurt, disse a esse respeito:

O método científico, que levou á dominação cada vez mais eficaz da natureza, passou assim a fornecer tanto os conceitos puros, como os instrumentos para a dominação cada vez mais eficaz do homem pelo homem através da dominação da natureza (...) Hoje a dominação se perpetua e se estende não apenas através da tecnologia, mas enquanto tecnologia, e esta garante a formidável legitimação do poder político em expansão que absorve todas as esferas da cultura. (...) Assim, a racionalidade tecnológica protege, em vez de suprimir , a legitimidade da dominação e o horizonte instrumentalista da razão se abre sobre uma sociedade racionalmente totalitária" (Marcuse, H. Apud HABERMAS, Técnica e ciência enquanto "ideologia", p. 315-316.

De acordo com Marcuse, a tecnologia consegue submeter os indivíduos pelo seu poder real de ampliar as comodidades da vida. E essa sua capacidade é utilizada pelo sistema capitalista para "vender" a sua imagem de "sistema mais racional", que proporciona maior progresso (entendido aqui como maior capacidade de produção aliada à liberdade de consumo). Para isso ele lança mão dos próprios recursos tecnológicos (a mídia, pro exemplo) e de outros mecanismos de racionalização já apontados por Foucault e outros filósofos.

Levando-se tudo isso em consideração, percebemos que a ciência não pode ser pensada como um setor da sociedade no qual um grupo de pessoas trabalha desinteressadamente no desenvolvimento do conhecimento humano.

A ciência está atrelada a interesses econômicos políticos que norteiam sua própria ação, seja pela definição do que vai ser pesquisado, seja pela escolha das áreas que serão beneficiadas com recursos para possibilitar as pesquisas.

Não cabe, enfim, nenhuma ilusão a esse respeito: um redefinição dos rumos do desenvolvimento tecnológico implicará, necessariamente, uma reorientação global da estrutura social.