Publicado no Jornal Folha de São
Paulo em 21/03/1999
O ceticismo tem um lado saudável.
Duvidar de verdades estabelecidas costuma ser útil para a
evolução da humanidade. Foi preciso que Galileu e
Copérnico duvidassem que a Terra era o centro do universo
para que essa falsa crença fosse um dia derrubada. Deu
trabalho convencer a Igreja e Galileu teve sorte de escapar sem
chamuscar a pele, ao contrário de outro que ousou pôr
em dúvida dogmas cristãos e terminou torrado, o
filósofo Giordano Bruno. Não chega a ser um caso
de alucinação ou de loucura coletiva, como as
centenas de pessoas de uma seita maluca que se suicidaram na
Guiana, ou esses que se mataram no Acre, ou se castraram no
Maranhão. Mas as crenças de boa parte da
humanidade antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) ajudaram
o conflito a acontecer, além de não prepararem as
populações para o que viria pela
frente.Ironicamente, uma das mais importantes descobertas da ciência
teve seu papel na loucura coletiva da Europa do final do século
19. Foi a teoria da evolução do britânico
Charles Robert Darwin (1809-1882). Ele mostrou como a evolução
biológica é dirigida por um processo chamado "seleção
natural''. Trata-se do processo pelo qual os organismos melhor
adaptados ao seu ambiente tendem a sobreviver e a transmitir
suas características aos seus descendentes.Popularmente,
trata-se da "sobrevivência dos mais fortes''. A idéia
de que a natureza vive em guerra constante foi pervertida para a
sociedade humana. E a guerra passou a ser vista como algo "natural''
entre as nações. Muito disso foi obra dos próprios
militares, que juntaram as doutrinas de "darwinismo
social'' com aquela do militar prussiano Karl Von Clausewitz,
para quem basicamente a guerra é a continuação
da política por outros meios. "Acadêmicos,
cientistas, artistas, clérigos e intelectuais também
tiveram um grande papel na formulação de análises
racionais e objetivos para a expansão e o conflito. A
guerra era vista como um meio glorioso para renovar os povos e
escapar da decadência'', escreveu o historiador britânico
Jeremy Black. Um livro que eu achei por acaso em um sebo me
deixou com os cabelos em pé. Trata-se de "La
Guerre'', de um autor francês, Paul Mabille, "doutor
em letras e professor de filosofia'', de 1884. O subtítulo
do livro não deixa dúvidas sobre o que Mabille
acha da guerra: "suas leis, sua influência
civilizadora, sua perpetuidade''. O objetivo do autor é "mostrar
como a guerra é uma lei da evolução
universal, uma lei das espécies animais assim como das
nossas sociedades''. O resultado desse tipo de opinião
disseminada pela Europa se percebeu 30 anos depois. Em 1914,
milhões de jovens europeus estavam metidos em trincheiras
espalhadas da fronteira franco-suíça até o
mar do Norte. Em agosto eles tinham recebido promessas de políticos,
de líderes militares e de uma imprensa patriótica,
de que já estariam de volta em casa para o Natal. A
guerra terminou quase no Natal de 1918. O fogo de artilharia e
de metralhadoras e o arame farpado em enormes quantidades
impediam a movimentação das tropas. O sacrifício
de milhões de soldados mortos e feridos foi feito para
avanços de no máximo 15 km, seja para oeste, seja
para leste. Uma batalha, a do Somme, "foi uma grande máquina
de moer carne dignificada com o nome de batalha", disse o
historiador britânico John Macdonald. Em apenas um dia o
exército britânico teve 54.470 mortos e feridos.
Milhões de granadas de artilharia criaram paisagens
lunares repletas de crateras que a chuva enchia para criar mares
de lama movediça. Até hoje os agricultores de regiões
como Flandres encontram granadas enterradas. Tudo isso teria
sido evitado se um cético tivesse sido ouvido. O nome
dele era Ivan Bloch, era polonês e civil. Escreveu um
livro chamado "O Futuro da Guerra'', publicado em 1897, no
qual previu exatamente como seria o impasse e a mortandade da
guerra moderna, causados pelo grande aumento no tamanho dos exércitos
e pela letalidade muito maior das armas disponíveis. Mas,
para azar da humanidade, o livro de Bloch nunca foi tão
influente como o de Clausewitz, ou os dos darwinistas sociais.
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