Milhões de malucos por guerra
Ricardo Bonalume Neto

Publicado no Jornal Folha de São Paulo em 21/03/1999

O ceticismo tem um lado saudável. Duvidar de verdades estabelecidas costuma ser útil para a evolução da humanidade. Foi preciso que Galileu e Copérnico duvidassem que a Terra era o centro do universo para que essa falsa crença fosse um dia derrubada. Deu trabalho convencer a Igreja e Galileu teve sorte de escapar sem chamuscar a pele, ao contrário de outro que ousou pôr em dúvida dogmas cristãos e terminou torrado, o filósofo Giordano Bruno. Não chega a ser um caso de alucinação ou de loucura coletiva, como as centenas de pessoas de uma seita maluca que se suicidaram na Guiana, ou esses que se mataram no Acre, ou se castraram no Maranhão. Mas as crenças de boa parte da humanidade antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) ajudaram o conflito a acontecer, além de não prepararem as populações para o que viria pela frente.Ironicamente, uma das mais importantes descobertas da ciência teve seu papel na loucura coletiva da Europa do final do século 19. Foi a teoria da evolução do britânico Charles Robert Darwin (1809-1882). Ele mostrou como a evolução biológica é dirigida por um processo chamado "seleção natural''. Trata-se do processo pelo qual os organismos melhor adaptados ao seu ambiente tendem a sobreviver e a transmitir suas características aos seus descendentes.Popularmente, trata-se da "sobrevivência dos mais fortes''. A idéia de que a natureza vive em guerra constante foi pervertida para a sociedade humana. E a guerra passou a ser vista como algo "natural'' entre as nações. Muito disso foi obra dos próprios militares, que juntaram as doutrinas de "darwinismo social'' com aquela do militar prussiano Karl Von Clausewitz, para quem basicamente a guerra é a continuação da política por outros meios. "Acadêmicos, cientistas, artistas, clérigos e intelectuais também tiveram um grande papel na formulação de análises racionais e objetivos para a expansão e o conflito. A guerra era vista como um meio glorioso para renovar os povos e escapar da decadência'', escreveu o historiador britânico Jeremy Black. Um livro que eu achei por acaso em um sebo me deixou com os cabelos em pé. Trata-se de "La Guerre'', de um autor francês, Paul Mabille, "doutor em letras e professor de filosofia'', de 1884. O subtítulo do livro não deixa dúvidas sobre o que Mabille acha da guerra: "suas leis, sua influência civilizadora, sua perpetuidade''. O objetivo do autor é "mostrar como a guerra é uma lei da evolução universal, uma lei das espécies animais assim como das nossas sociedades''. O resultado desse tipo de opinião disseminada pela Europa se percebeu 30 anos depois. Em 1914, milhões de jovens europeus estavam metidos em trincheiras espalhadas da fronteira franco-suíça até o mar do Norte. Em agosto eles tinham recebido promessas de políticos, de líderes militares e de uma imprensa patriótica, de que já estariam de volta em casa para o Natal. A guerra terminou quase no Natal de 1918. O fogo de artilharia e de metralhadoras e o arame farpado em enormes quantidades impediam a movimentação das tropas. O sacrifício de milhões de soldados mortos e feridos foi feito para avanços de no máximo 15 km, seja para oeste, seja para leste. Uma batalha, a do Somme, "foi uma grande máquina de moer carne dignificada com o nome de batalha", disse o historiador britânico John Macdonald. Em apenas um dia o exército britânico teve 54.470 mortos e feridos. Milhões de granadas de artilharia criaram paisagens lunares repletas de crateras que a chuva enchia para criar mares de lama movediça. Até hoje os agricultores de regiões como Flandres encontram granadas enterradas. Tudo isso teria sido evitado se um cético tivesse sido ouvido. O nome dele era Ivan Bloch, era polonês e civil. Escreveu um livro chamado "O Futuro da Guerra'', publicado em 1897, no qual previu exatamente como seria o impasse e a mortandade da guerra moderna, causados pelo grande aumento no tamanho dos exércitos e pela letalidade muito maior das armas disponíveis. Mas, para azar da humanidade, o livro de Bloch nunca foi tão influente como o de Clausewitz, ou os dos darwinistas sociais. e-mail: bonalume@uol.com.br

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