Publicado na Revista Veja em 09/12/98
Na disputa pelo comando de seita
sul-coreana, monges budistas trocam meditação por
coquetéis Molotov
Foi uma pancadaria dos diabos, daquelas
que só se vêem em filme de Bruce Lee ou Jackie
Chan. Os bandos rivais - os carecas de quimono cinza (a turma do
mal) contra os cabeludos de túnica negra (os do bem) -
atiravam uns nos outros coquetéis Molotov, extintores de
incêndio, vasos de plantas, pedras e paus. O corpo-a-corpo
foi com golpes de caratê e dedo no olho. Vários
cinzas e negros foram jogados escada abaixo sem dó nem
piedade. Esse tipo de batalha campal ambientada em país
do Extremo Oriente não é estranho a quem gosta de
filmes de artes marciais e se acostumou a associar traços
asiáticos à violência ninja. O difícil
é encaixar tanta truculência entre monges adeptos
do budismo zen, supostamente religiosos contemplativos, com a
vida baseada em meditação, tolerância
extrema e desprendimento total das ambições e
vaidades humanas. Ao contrário, o que jogou os monges
sul-coreanos literalmente uns no pescoço dos outros foi a
mais arraigada das motivações profanas: a disputa
por poder.
A facção de quimono cinza apóia
o reverendo Song Wol-ju, "chefe executivo" do templo
central da Ordem Chogie, a maior seita budista da Coréia
do Sul, com 7 milhões de fiéis. Em São
Paulo, onde o movimento é incipiente, o templo Jin Gak Sa
reúne apenas 100 fiéis. A exemplo de certos
presidentes sul-americanos, Wol-ju quer um terceiro mandato,
embora os estatutos só permitam dois períodos. O
argumento dos partidários do reverendo é que o
primeiro não valeu, pois ele precisou exilar-se para
fugir do antigo regime militar. Revoltados, seus adversários
tomaram de assalto a sede da seita, há um mês. Para
tentar recuperar o quartel-general, defendido por 800 monges de
túnicas negras, os partidários de Wol-ju trouxeram
a Seul 2.000 religiosos do país inteiro, além de
um bando de parrudos guarda-costas.
Na noite de segunda-feira passada,
protegidos por escudos de madeira, os atacantes chegaram a
atingir o 1º andar do prédio, mas foram rechaçados
por uma chuva de pedras, coquetéis Molotov, jatos d'água
e extintores de incêndio. Venerados religiosos de idade
avançada, enviados para tentar separar e pacificar os
adversários, terminaram também envolvidos na troca
de sopapos. A batalha durou mais de doze horas, com quarenta
feridos, alguns com gravidade. A polícia cercou o local,
mas, fiel à orientação de não
interferir em conflitos religiosos, deixou que os monges
resolvessem as diferenças no tapa.
O budismo anda na moda em países
ocidentais, onde muita gente se encanta com a aura de pureza
espiritual dos ensinamentos de Sidarta Gautama, o Buda. Na prática,
o clero budista nem sempre escapa às mazelas mundanas tão
conhecidas em outras religiões - venalidade, comércio
de relíquias e disputas pelas fortunas em donativos
feitos aos templos. O que está em jogo na seita Chogie é
o controle de um orçamento anual de 10 milhões de
dólares. Quase 1.000 anos atrás, o fundador da
ordem, o monge Bojo Guksa, pregou a tranqüilidade da mente,
livre de influências externas. Hoje, além da
administração das substanciais propriedades da
seita, o monge-chefe dispõe de 1.700 empregos para lotear
entre seus amigos e aliados. "Esses religiosos, que
deveriam dar exemplo de virtude espiritual, estão
mostrando sua vulgar humanidade", lamentou o jornal Korea
Times. "Eles são indiferentes às orações
a Buda. Só estão interessados no arroz oferecido a
Buda."