Quer com ou sem corte?
Fabiana Parajara
Publicado na Revista Superinteressante de
Agosto de 2000
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"Quer
com ou sem corte?"
Você
já pensou em se submeter a uma cirurgia em que
o médico não é médico e o
bisturi pode ser a própria unha? Prenda o fôlego
e saiba como são feitas as operações
mediúnicas
Por
Fabiana Parajara |
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Foto
Marcio Sinch
Tratamento
de sinusite da Fundação Espiríta
Caminho da Luz, em Campos Gerais (MG). "Depois
que comecei a vir aqui, não tive mais nenhuma
crise", diz o paciente |
Céu
azul, dia quente, pessoas de branco por todos os lados.
O galpão enfeitado com bandeirolas azuis abriga
umas 200 pessoas. Todas parecem rezar. Em cima de um
palco um sujeito entoa mensagens de esperança. De
repente, uma porta se abre e um homem aparece puxando
uma senhora pela mão. É o médium João
Teixeira, famoso por curas espirituais que operaria.
Depois de um breve discurso e de uma prece, ele pega uma
tesoura longa em uma bandeja que está nas mãos
do assistente. Sem nenhum tipo de anestesia e muito
pouco delicadamente, empurra o instrumento para dentro
do nariz da mulher. Ela levanta o braço com medo.
Ele a tranqüiliza. Ouvem-se estalos. A mulher
murmura, mas parece não sentir dor. O sangue começa
a escorrer do seu nariz. Em segundos, o médium
balança a tesoura no ar. Na ponta, um pedaço
de carne esponjosa. "Carrega!", grita, e dois
homens retiram a mulher do recinto.
A platéia assiste
extasiada ao espetáculo que acontece toda semana
no galpão da Casa de Dom Inácio, em Abadiânia,
interior de Goiás. O médium João
Teixeira atrai gente de muitos lugares. "Eu tinha
um problema no nervo ciático. A dor era insuportável
na parte baixa das costas. O tratamento médico
tradicional não resolvia", conta Luiz
Alberto Gomes Silva, que veio de Brasília. "Achei
estranho ser operado pelo nariz. Perguntei para a
entidade, o espírito incorporado pelo médium,
se o corte não devia ser no local que doía,
mas ela disse que não." Depois disso, Silva
garante que a dor praticamente acabou. "Ficou
apenas uma sensação estranha, como se
tivesse tomado uma leve pancada", afirma.
O metalúrgico José
Walter de Matos veio de Sabará, Minas Gerais. Ele
sofreu vários pequenos cortes atrás da
orelha antes de o médium enfiar uma tesoura com
gaze em seu ouvido. Matos conta que vinha perdendo a
audição do lado direito. Até o
final da tarde em que foi operado, ainda não
escutava bem, mas já havia comprado três
garrafas do chá artesanal vendido pela Casa.
O centro Dom Inácio
é visitado por centenas de estrangeiros todos os
anos. "Eu estava na sala de cirurgia, orando. O João
se aproximou de mim e enfiou o bisturi no meu olho",
conta o americano Bob Dinga, 42 anos, professor em
Aptos, na California, em Abadiânia pela quinta
vez. "Antes, eu não enxergava quase nada, só
vultos. Hoje, um dia após a operação,
vejo que a sua blusa é azul e o seu cabelo é
marrom." Dinga soletra palavras que lê nos
cartazes, rindo como criança. Usar o bisturi não
é, no entanto, o procedimento-padrão das
cirurgias mediúnicas. Normalmente o médium
pergunta ao paciente: "Com ou sem corte?" Cada
um decide o que vai ser.
As cirurgias
na Casa de Dom Inácio, em Abadiânia
(GO), são feitas em público. O
paciente escolhe se quer ser cortado ou não |
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O médium
e presidente da Casa João Teixeira, depois
de rezar, empurra uma tesoura pelo nariz de uma
paciente |
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O "cirurgião"
limpa o sangue e faz o curativo. A paciente, sem
reclamar de dor, vai para uma sala separada e
espera pela "alta" |
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Não pense que essa escolha
envolve uma minuciosa avaliação sobre a
possibilidade de a cirurgia trazer complicações.
Em lugares assim, a limpeza é inadequada e o
risco de infecção é muito grande.
No entanto, o desleixo com as bactérias
aparentemente não traz tantos malefícios
quanto poderia. "Há pouquíssimos
casos registrados de infecção", diz o
pesquisador Stanley Krippner, especialista em fenômenos
paranormais da Saybrook Graduate School, da Califórnia.
Ele é co-autor do livro Varieties of
Anomalous Experiences, sobre curas paranormais em
todo o mundo.
Krippner viu uma cirurgia
espiritual pela primeira vez na década de 80, no
Brasil. O médium era Edson Queiroz, que depois da
morte de José Arigó manteve a fama da
entidade Doutor Fritz em evidência. Em suas operações,
Queiroz e Arigó usavam facas e canivetes muitas
vezes enferrujados. Em Abadiânia, pelo menos, os
bisturis são descartáveis e as tesouras e
as pinças são cirúrgicas. Contudo,
depois que o corte é feito, os dedos do médium
entram em ação. E ele não costuma
lavar as mãos antes de operar.
A ausência de dor
também intriga a ciência. "As
cirurgias são superficiais", afirma o
cirurgião Hércules Bueno, do Hospital
Santa Lúcia, em Brasília, depois de
assistir, a convite da SUPER, a algumas operações
feitas no centro. Além disso, ao que parece, a
analgesia (nome que os médicos dão para a
falta de dor) ocorre por sugestão. "Quando o
médium manda o paciente concentrar seu pensamento
em Deus, ele acaba desviando a atenção dos
estímulos dolorosos", diz Bueno. Haja
concentração para suportar cortes e
perfurações sem anestesia.
O interior de Goiás
é apenas um dos muitos lugares em que essas práticas
acontecem. Onde quer que haja notícia de curas
milagrosas, forma-se uma enorme fila. E em cada um
desses lugares há uma maneira diferente de
praticar esse estranho casamento entre a medicina e a fé.
A Fundação Espírita Caminho de Luz,
em Campos Gerais, no sul de Minas, é uma entidade
espiritualista. Eles acreditam em espíritos, mas
não seguem dogmas de religiões como o
kardecismo ou a umbanda. Na sede da fundação,
o médium Gaudêncio Nunes afirma ser
incorporado pelo espírito do doutor Schandhermen
Ludwig, um médico alemão que teria morrido
na Primeira Guerra Mundial. Ele diz curar catarata
raspando com a própria unha o olho do paciente. "Na
verdade isso não é catarata. É pterígeo,
uma pele que se desenvolve sobre o olho", diz o
oftamologista da Universidade Federal de São
Paulo Paulo Augusto de Arruda Mello. "Ele retirou o
tecido que estava sobrando. A pessoa passa a enxergar
melhor e pensa que se curou de catarata, que se
manifesta dentro do globo ocular", diz. A córnea,
mesmo traumatizada, recupera-se logo.
O médium Nunes
também utiliza agulhas de injeção,
de 2 centímetros de comprimento. Os pacientes
levantam a roupa e as agulhas são enfiadas na
pele, em cima dos órgãos doentes.
Encerrada a sessão, todos os instrumentos usados
são incinerados. O que é um consolo.
Muitos centros se valem
de métodos mais suaves, como os passes - a "transmissão
de energia" pelas mãos, sem tocar o
paciente. Na Legião Branca Mestre Jesus, em Santa
Rita do Passa Quatro, em São Paulo, práticas
da umbanda se misturam com a doutrina cristã. No
terreiro, sob a imagem de Jesus, queimam-se ervas para
atrair boa sorte e isolar energias negativas. Em seguida
vêm as preces, em meio à fumaça doce
que impregna o ar. Os médiuns "incorporam"
as entidades tremendo e mexendo muito o corpo. Nas salas
de cirurgia, o paciente é tocado por um
crucifixo, enquanto todos oram o pai-nosso.
Fotos
Marcio Sinch |
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Em Campos Gerais, o médium
Gaudêncio Nunes utiliza agulhas para "desmaterializar"
hérnias e tumores
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Na Fundação
Espírita Caminho da Luz, o médium trata
de catarata raspando o globo ocular do paciente com a
unha
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O Instituto Espírita Cidadão
do Mundo, na capital paulista, só faz passes. O
espírito que segundo o Instituto cura as pessoas é
o do alemão Hoffman Belgrand. (É curioso
que os espíritos sejam na maioria de médicos
alemães. Não há um simples polonês,
um único australiano, um mísero
boliviano.)
É claro que a
eficiência dessas práticas é
controversa. Além da auto-sugestão, muitos
acreditam em hipnose. "Pessoalmente, acho que essa
seja a hipótese mais provável. A religião
e as preces induzem ao transe hipnótico",
diz Sérgio Henriques, psiquiatra do Centro de
Estudos da Dor, do Hospital das Clínicas de São
Paulo. "Sob o comando do médium, o doente se
sente melhor porque a mente dele aceita a idéia
de que a dor passou."
Uma das pacientes do
Instituto Cidadão do Mundo é vítima
de poliomielite - a paralisia infantil. No seu
tratamento, o médico apenas colocou as mãos
sob suas pernas. O cirurgião Jorge Kalil, do
Hospital São Luiz, de São Paulo, que
acompanhava a reportagem a convite da SUPER, perguntou o
que o espírito estava fazendo. "Reforçando
a musculatura", respondeu o que seria a entidade. "Poliomielite
atinge o sistema nervoso, não o muscular" -
retrucou o médico. Era o princípio de uma
discussão. O médico questionava os
conhecimentos de medicina da "entidade". O médium
respondia aos questionamentos com afirmações
de fé. Nada de fisiologia. A paciente, então,
entrou no debate declarando-se convencida de que seus
problemas eram musculares. E mais: creditou ao
tratamento espiritual o fim das dores que sentia nos braços.
"As pessoas estão aqui atrás de atenção
e carinho. Coisas que nem sempre encontram no sistema público
de saúde", diz o cirugião. "Se
houver melhora, é psicológica."
Os próprios médiuns
admitem parcialmente essa tese. "Os cortes ajudam a
reforçar a fé das pessoas para que elas
realmente acreditem que estão sendo curadas",
explica João Teixeira, de Abadiânia. "Por
isso, as entidades perguntam se a pessoa quer corte ou não.
Quando ela tem fé, a operação é
invisível. Mas também há gente que
precisa ver a doença saindo do corpo para ter
certeza de que está sendo curada."
Apesar de haver histórias
mal contadas, há evidências que, apesar de
concretas, refutam qualquer explicação lógica.
No Instituto Espírita Cidadão do Mundo,
uma menina de apenas 4 anos, vítima de leucemia,
teve uma melhora repentina logo depois do primeiro
passe. "A médica ficou impressionada. Minha
filha vivia doente, com febre contínua e, muitas
vezes, estava tão debilitada que nem podia
receber a quimioterapia", conta a mãe, Rosa
Pereira dos Santos. "A febre cedeu depois do
primeiro passe e há um ano ela não deixa
de fazer a quimioterapia na data marcada." Uma
criança dessa idade dificilmente ficaria
auto-sugestionada por um passe.
Paulo
Negreiros
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O
mineiro José Walter de Matos recorre ao bisturi
do médium João Teixeira, em Abadiânia.
Ele estava perdendo a audição no ouvido
direito. Até o fim da tarde em que foi o
operado sem anestesia, não havia melhorado |
Além disso, há
relatos de alguns médiuns que adivinham com
precisão o problema das pessoas sem que elas dêem
nenhuma pista. Em Abadiânia, o casal Fátima
Trindade e Andrew Seidenfeld, recém-chegado dos
Estados Unidos, entrou na fila do atendimento sem contar
para ninguém por quê. O médium
imediatamente levou a mão à barriga de Fátima
e pediu que ela não falasse nada. "Vou
cuidar de você. Você pode ficar por aqui uma
semana? Opero você na próxima quarta-feira",
disse João Teixeira. Ela respondeu que ficaria.
Antes de saírem, mais uma surpresa. O "espírito",
que se identificou como José, completou: "Vou
curar também o vício dele. Sei que isso a
incomoda". Passado o episódio, Fátima
revelou que tinha um cisto no ovário,
diagnosticado nos Estados Unidos. Andrew era viciado em
maconha e tinha compulsão por sexo. "Sou
hiperativo. Às vezes preciso fumar alguma coisa
para conseguir me controlar", diz Andrew. "Naquela
hora, o médium parecia ler meu pensamento",
afirma Fátima.
Os relatos mostram duas
coisas. Primeiro, que mesmo quem tem os melhores
recursos da Medicina à disposição não
hesita em procurar soluções mágicas
para seus problemas. Segundo, que nem sempre os que
procuram ajuda do além esgotaram todas as
tentativas de se curar pela medicina tradicional. A
catarata, por exemplo, é uma das queixas mais
comuns nas filas dos centros e têm uma solução
rápida e segura em qualquer consultório
oftamológico.
O Conselho Federal de
Medicina tem uma posição clara quanto a
esse tipo de prática. "Todos os casos que o órgão
acompanhou eram fraudes e estelionato", afirma
Edson de Oliveira Andrade, presidente do conselho. "Nossa
função é informar as autoridades
sanitárias sobre os abusos, como cortes,
administração de remédios ou
abandono de tratamento", completa.
"Um sinal da
seriedade de um centro espírita é não
cobrar pelo tratamento", afirma Gerson Monteiro,
presidente da União das Sociedades Espíritas
do Estado do Rio de Janeiro. Em Campos Gerais, de acordo
com vários pacientes, a Fundação
Grupo Espírita Caminho de Luz cobra 10 reais por
consulta. A instituição nega que receba
dinheiro pelos serviços que presta. De qualquer
forma, a sala de espera lota todas as quartas-feiras.
Primeiro, as pessoas passam por uma consulta, nas quais
os "espíritos" diagnosticam, receitam
remédios - alopatia comum -, suspendem
tratamentos médicos e marcam cirurgias
espirituais.
"De diagnósticos
a tratamentos, tudo foge aos padrões da Medicina",
afirma o cirurgião Zacarias de Almeida Neto, de
Alfenas, Minas Gerais, que foi com a SUPER a Campos
Gerais. "O médium não demonstrou
conhecimentos médicos profundos. Eles receitam
antiinflamatórios e antibióticos sem
perguntar se a pessoa tem, por exemplo, problemas alérgicos
ou gástricos", diz. Na sua opinião, "só
um acompanhamento dos casos mostraria se as curas
ocorrem de fato". Enquanto essas pesquisas não
aparecem, as explicações continuam sendo
uma questão de fé.
Para
saber mais |
In
Search of Brazi's Quantum Surgeon, Masao
Maki, Cadence Books, San Francisco, 1997.
Varieties
of Anomalous Experience, Etzel Cardeña
e Stanley Krippner, APA Books, Washington, 2000.
www.petshop.com/cokroac.htm |
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