Um altar fora de lugar
Cláudia Amorim

Pesquisadores põem em debate o excesso de programas religiosos na TV

Publicado no Jornal do Brasil em 15/JAN/2003

Volta e meia surge uma bateria de críticas contra a programação das emissoras de TV aberta. Mas, de uns tempos para cá, um novo ingrediente vem apimentando as discussões sobre as grades: os programas religiosos. É um tal de Fala que eu te escuto pra cá, Show da fé pra lá, Posso crer no amanhã à tarde, Rompendo em fé à noite e mais duas dezenas de títulos que compõem uma presença significativa em quatro das seis redes comerciais brasileiras de sinal aberto. Em coluna publicado no JB no dia último dia 7, o jornalista Nelson Hoineff jogou lenha na fogueira, acenando com a idéia de que o fato de o lucro migrar das produções que costumavam ocupar a grade para programas comandados por pastores revela que a situação da TV aberta nacional se tornou insustentável.

Partindo do raciocínio de mercado que fez com que se acreditasse que quanto mais baixo o nível das atrações mais alta a audiência (com índices de lucro inversamente proporcionais aos de qualidade), Hoineff conclui que se chegou a uma sinuca de bico: a TV não é lucrativa e já não há mais um degrau abaixo para a programação descer.

O pesquisador de rádio e TV e sociólogo Laurindo Leal concorda, e vai mais fundo no diagnóstico da doença da TV tupiniquim. Para Laurindo, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e integrante da Ong TVer - instituição criada há cinco anos para acompanhar a qualidade da programação da telinha - as circunstâncias que assolam as emissoras podem ser resumidas em três fatores: os duvidosos critérios adotados nas concessões; a falta de voz da população para revelar que TV a sociedade quer; e a agressão ao Estado laico, representada pelas atrações religiosas.

- O primeiro fator é econômico e financeiro, pois as concessões obedecem a interesses políticos e são incompatíveis com a dimensão restrita do mercado publicitário brasileiro. Então, as emissoras não conseguem se manter - aponta Laurindo Leal.

Quanto à falta de voz da população, o pesquisador acredita que a solução, a exemplo do que acontece na Europa e nos EUA, seria a criação de agências reguladoras às quais as concessões estariam ligadas.

- Não tem nada a ver com censura, é um acordo. Na hora de avaliar os pedidos de concessão, as propostas, que apresentam o perfil da programação, são submetidas a análise. Depois, há um acompanhamento, para ver se o que foi proposto está sendo cumprido. Caso não esteja, são previstas sanções. O ideal é que essas agências tenham a maior representatividade possível da sociedade - diz o pesquisador.

Ainda segundo Laurindo, o último dos três pilares em que repousaria a TV brasileira atual - a agressão ao Estado laico - coloca em lados opostos o loteamento religioso dos horários da grade e a independência do Estado.

- O fato de haver religiões na TV rompe com a natureza laica do Estado. A concessão é pública, dada em nome de toda a sociedade, não pode existir partidarismo, seja político ou religioso. Por exemplo, se os programas são evangélicos, como fica representado, então, o candomblé? A programação religiosa fere a democracia - resume o pesquisador.

O teórico Muniz Sodré, professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ), vê um parentesco entre o veículo televisão e as formas religiosas que invadem o aparelho. A idéia é descrita em seu livro Antropológica do espelho, de 2002.

- A moral mercantilista da TV é, ao mesmo tempo, a moral das novas formas religiosas. O Cristo dos evangélicos aparece como um comerciante, disposto a realizar desejos. Vejo uma ligação entre a estrutura da TV e essa religiosidade: o pedido atendido de imediato, o papel do dinheiro, o contato instantâneo com a divindade. E a TV é uma nova forma de religião. É o que eu chamo de efeito SIG: simultânea, instantânea e global. Assim, a tecnologia tem algo de divino, de sagrado. A ligação entre seita e mídia pode ser vista em fenômenos como o Jedaísmo [inspirado na série Guerra nas Estrelas] - diz Muniz.

Já o pesquisador e professor da ECO/UFRJ Henrique Antoun acha que a saída para melhorar a qualidade da TV brasileira reside na competitividade movida pelo interesse comercial.

- O interesse comercial tem que ser o mais aberto possível, baseado na competição. A televisão tem que deixar de ser abordada politicamente para ser tratada comercialmente. O único canal que temos é a Globo, porque produz, mesmo tendo baixado o nível. As concessionárias são políticas, entendem pouco ou nada do assunto - diz Antoun.

Laurindo Lobo defende outra ótica:

- Tem que haver uma redefinição dos critérios e do número de concessões. É preciso mexer nessa caixa-preta que é a radiodifusão no Brasil.

Fonte: http://www.jb.com.br/jb/papel/cadernob/2003/01/14/jorcab20030114004.html

TV & RELIGIÃO

Autor: Joaquim Ferreira dos Santos

"O Senhor das Luzes contra o Pai do Encosto"

"Vinte e sete caroços desapareceram do corpo de 24 pessoas - uma delas tinha três - na terça-feira pela manhã durante culto evangélico no programa Igreja da Graça em seu Lar, transmitido pela RedeTV! e CNT. Um dos caroços teria o tamanho de uma laranja e estava no bíceps de uma senhora. Outro teria o volume de um limão e estava no cangote de um senhor. Dez pessoas deram testemunho de que uma insistente dor na nuca passara poucos segundos atrás depois que ouviram a oração do Pastor Jaime, nove outras relataram o súbito desaparecimento do mal da 'vista embaçada' e uma senhora informou que ficou com o bumbum mais firme e as coxas mais bem torneadas - mas essa, desculpem nossa falha técnica, já agradecia ao método de ginástica passiva Elysée Belt Plus e seu depoimento fazia parte de um dos quadros do Brazil Connection, o programa de vendas que vem logo depois da Igreja da Graça em seu Lar.

A propaganda, a alma do negócio, e a Igreja da Graça, o negócio da alma, estão juntas todas as manhãs para fornecer o trash, o creme-do-creme-podre, na televisão. Os mais espertos perceberão que poderia ser um único programa.

'Deus chamou você para ser associado e colaborar com 50, 100 ou mais reais para a continuação desta obra', diz o pastor Jaime segurando uns boletos bancários do Bradesco. 'Não quer dizer que você vá ficar curado de suas dores e de suas dívidas financeiras, mas Deus dá condições a quem é associado. Não protele, assine agora e seja associado'.

Em seguida, o pastor Jaime passa o microfone pela igreja em busca de depoimentos de evangélicos que já experimentaram o método associado de juntar o pão do espírito ao mel do contracheque: 'Onze pessoas foram demitidas no trabalho do meu filho. Ele não', agradece uma velhinha devota do boleto de Deus. 'Eu consegui a graça de um emprego de 7 às 13 horas, que era o que eu queria, e dobrei minha colaboração de associada. E o dinheiro todo mês ainda me sobra', diz outra senhora.

Os fiéis desta igreja não só acreditam que Deus exista como parecem achar muito natural que ele esteja fazendo um bico no departamento de marketing da agência de publicidade.

O programa Brazil Connection entra logo em seguida prometendo mais milagres. Não se ganha dinheiro, ganha-se no máximo alguns fios de cabelo se você comprar - 'ligue agora!' - o kit capilar da Hairsink, produzido na Finlândia, 'o maior centro de combate à calvície do mundo'. Sai o pastor Jaime, entra a Feiticeira Joana Prado - mas as promessas de que o paraíso está próximo, e nem custa tão caro assim, continuam. 'Usando o novo exercitador por apenas 15 minutos ao dia, você emagrece e massageia a musculatura, dissolvendo nódulos de tensão e stress' - diz a Feiticeira enquanto a imagem mostra seu bumbum vibrando feliz ao sabor dos choques do método de ginástica passiva Elysée Belt Plus.

'Eu tinha, como todo mundo, uns probleminhas com uns pneuzinhos na cintura', diz um tal de Jay Horn, americano, com a ajuda da incrível dublagem desincronizada que inspirou o Fucker e Sucker do Casseta, 'mas depois que passei a usar o Abtronic, reduzi muitos centímetros e a minha mulher adorou. Eu também.'

O pastor e a Feiticeira foram se encontrar nas manhãs da CNT e da RedeTV! por causa do aluguel barato dos horários. Mas não só. Por mais que a princípio pareça estar o primeiro vendendo a salvação e a segunda, a perdição, eles estão no mesmo barco da camelotagem eletrônica. É um grande momento do humor televisivo vê-los juntos na grade de programação das sub-redes nacionais. Trancados durante 45 dias numa hipotética 'Feira dos Artistas', Feiticeira e Pastor ficariam logo amiguinhos, mas não repetiriam Bárbara e Supla fazendo cabaninha com o edredon. Eles venderiam imediatamente o edredon.

Duelo mesmo, com o bem de um lado e o mal do outro, entra no ar em seguida, às 13 horas, na Record. Já houve Marlene e Emilinha, o Dragão da Maldade contra o Santo Guereiro, Verdugo contra Ted Boy Marino, Collor versus Lula. O pastor Fernando atualiza essas batalhas da comédia brasileira apresentando todos os dias o duelo do Senhor da Luz contra o Pai do Encosto. Seu marido foi embora? Está sem emprego? Dói-lhe a barriga? Tudo culpa dele. O Encosto.

Não há qualquer informação sobre o que aconteceu com o Diabo, mas deve ter sido alguma coisa muito grave porque não se fala mais Dele nos programas evangélicos. O novo príncipe das trevas é o Encosto. Ainda não há representação gráfica, nada de chifres e rabinhos por enquanto. Mas trata-se do novo maior aprontador da paróquia. Nem o Vampeta fez pior no Flamengo. Era ele, o Encosto, quem estava por trás, no programa de terça-feira, do estranho hábito da 'amiga de Niterói', ouvida por telefone, comer tijolo nos intervalos dos 12 maços de cigarro que fuma por dia. Os relatos são feitos em tom dramático. Foi o Encosto também o responsável pela 'amiga do Jacaré' ter ido à falência com sua lojinha de roupas.

Pastor Fernando ouvia todas essas queixas - mais as dos maridos que tinham se mandado, o filho que ficou com catapora, uma menstruação subitamente irregular - e não só colocava tudo na conta do Encosto como convocava as senhoras chorosas para uma Sessão de Descarrego na Catedral Mundial da Fé, em Del Castilho, Zona Norte do Rio. São três por dia, às terças-feiras. Na platéia nunca menos de dez mil pessoas e todas sempre convocadas a participar com alguma ajuda financeira para que, pelo menos nesta guerra travada nas cavernas da alma, o nosso Bin Laden suburbano não fuja. Ao Encosto não se grita 'Teje preso!' Mas o contrário: 'Sai já desse corpo em nome da Luz!'

O programa do Pastor Fernando chama-se Ponto de Luz. Além de ser um fecho de ouro perfeito para a maratona matutina da Feiticeira e do show dos caroços, bastaria para tranformá-lo num cult imperdível os telefonemas com as aflitas telefônicas. Mas Ponto de Luz tem mais atrações. Pastor Fernando apresenta o programa com três senhoras: Cidônia, Alice e Graça. São três comentaristas das artes do Encosto. É como se fosse uma mesa redonda de esportes. Da mesma maneira que o Jorge Kajuru analisa domingo à noite as jogadas do Romário no Rio-São Paulo à tarde, as senhoras resenham as façanhas do Encosto na vida das telespectadoras ao telefone.

As três falam com conhecimento de causa. Antes de se converterem à causa evangélica, eram macumbeiras e faziam feitiços contra o alheio. Ou seja, faziam Encosto. Uma delas contou terça-feira que chegou a ser contratada por um empresário para colocar o nome do sócio na boca do sapo - e viu como o infeliz, enfeitiçado, encostado, foi definhando junto com o batráquio, enquanto os negócios do primeiro empresário prosperavam.

A tarde mal começou lá fora, mas o cenário é escuro e de vez em quando, do nada, apesar do ar parado de um estúdio de televisão, um vento sopra a página da Biblia aberta na frente do Pastor. Cidônia aproveita para contar que um Encosto é capaz de quebrar a perna de uma pessoa para não deixar ela fugir de seus poderes. Parece que o Zé do Caixão vai entrar a qualquer momento e refilmar a chanchada do terror brasileiro com o título de 'Ao meio-dia encarnarei em teu cadáver'.

'Eu não quero assustar', diz Pastor Fernando para a 'amiga do Jacaré'. 'Mas a senhora tem filhos? Pois se a senhora não for na Sessão Descarrego desta terça-feira e tirar esse Encosto, ele vai passar para os seus filhos e a maldição vai se perpetuar por muitas gerações ainda.'

Houve tempo, a se julgar pelo cinema, em que era preciso balançar a cruz para exorcizar o capeta do corpo das mulheres. Agora, a se julgar pela televisão, o Encosto só desencosta se lhe esfregarem nas fuças o boleto quitado do Bradesco."

A MÍDIA E A EXPANSAO DA FÉ

Publicado no OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA em 03-02-2004

Não fosse o registro de Daniel Castro, colunista da Folha de S.Paulo (Folha Online 27/1/04 - 2h52), a relatar a ocorrência da qual trataremos adiante, o cidadão brasileiro estaria absolutamente divorciado de qualquer informação a respeito, o que aliás suponho ainda estar, levando em conta a continuada ausência do fato nos noticiários nos dias subseqüentes.

O jornalista divulgou a seguinte notícia da qual extraímos seu início:

"Na semana em que foi demitido pelo presidente Lula, o ex-ministro das Comunicações, Miro Teixeira, deu em um único dia, 20 de janeiro, 56 canais de retransmissores à Fundação Nazaré, da Arquidiocese de Belém, onde tem uma geradora educativa".

O desdobramento da matéria dá conta de que a rede abrange amplas áreas da região Norte. Os canais concedidos cobrem as cidades de Manaus, Cuiabá, Palmas, Macapá, Rio Branco e Porto Velho. Incluída também está São Luís, em razão dos cinco canais já existentes no Maranhão. Ao que parece, de acordo com a fonte, tudo transcorreu nos limites da lei. A questão, portanto, não envereda pelos possíveis e obscuros atalhos das negociatas. O problema passa a ser de outra natureza. É sabido que a TV Nazaré transmite programação católica, conforme destaca o jornalista citado.

Em outro segmento de notícias, porém com vinculação à mesma matéria, Daniel Castro informou a existência de uma relação conflituosa entre a Igreja Universal do Reino de Deus e a Direct TV, por esta haver, sem aviso prévio, retirado os canais evangélicos Rede Mulher e Rede Família, embora mantivesse no ar a Rede Vida, de orientação católica, o que, segundo o jornalista, motivou, na madrugada de sábado (25/1), indignado protesto por parte de um bispo da Universal, durante um dos programas religiosos exibidos pela TV Record.

Mídia, política e religião

Os fatos aqui rememorados, de início, sugerem um questionamento acerca do silêncio da mídia, considerando que o tema haverá de preocupar não só profissionais diretamente ligados às atividades de comunicação como também a qualquer cidadão, independentemente de seu estado de crença ou descrença - afinal, esses também existem e permanecem reconhecidos como integrantes da espécie humana.

Deseja-se de pronto acentuar o crescente movimento de disseminação da fé religiosa pelos meios de comunicação de massa, além das ostensivas participações de religiosos na vida política da nação. Trata-se de um sintoma grave. O temor não deriva do reconhecimento do quanto a religião se distancia da política. Ao contrário, por identificar que facilmente elas se podem aglutinar é que o temor adquire forma. Em diferentes épocas de uma mesma cultura ou em culturas diferentes, não faltam exemplos a respeito da drástica fusão entre ambas, quando pensamos que, para uni-las, estão sempre à mão o fanatismo, o messianismo e o dogmatismo.

A respeito do tema, é aconselhável lembrar as reflexões empreendidas, entre outros, por E. Cioran, principalmente nos ensaios "Genealogia do fanatismo" e "Rostos da decadência" que integram a edição brasileira de Breviário de decomposição (Rocco, 1989).

Normalmente, quando líderes políticos são pregadores religiosos, facilmente tendem a fazer da política mera extensão de suas crenças religiosas, o que acarreta o surgimento do terreno fértil para vingar o modelo antidemocrático, sob a inspiração da retórica totalitária e salvacionista com a qual se realimentam o fanatismo, o messianismo e o dogmatismo.

Se a mídia responsável, tão zelosa que é (e deve ser) da democracia, não assumir o papel que lhe cabe, ou seja, sinalizar para a população o risco dessa parceria - que, pelo visto, já se constitui em formação triádica, dado o aumento progressivo das instituições religiosas nos meios de comunicação e na indústria cultural -, haverá o perigo de a sociedade brasileira estar a caminho de tensões cujas conseqüências poderão ser nefastas para todos. Volto a insistir: exemplos pelo mundo afora não faltam.

A cena política nacional é cada vez mais habitada por políticos cuja retórica acentua o tom religioso. Sem alarmismo, quer-se pontuar que o perfil laico do Estado brasileiro tem perdido boa parcela de sua autonomia. Não sejamos ingênuos. Proliferam, no Congresso Nacional, bancadas (deputados e senadores) que se elegem com base em seus redutos de fiéis. Igual percepção se pode ter no tocante a cargos executivos, tanto em âmbito municipal, quanto nas esferas estadual e federal. Diferente não se dá na ampliação de publicações, de redes (rádio e TV), programas diários, inclusive com horários comprados em emissoras comerciais desvinculadas de instituições religiosas. Todos têm em comum a prática de ostensivas pregações.

A omissão diante desses passos sinuosos pode estar permitindo a instalação de um quadro societário no qual a intolerância, sempre cúmplice das convicções inabaláveis, venha a germinar tensões até então desconhecidas na vida brasileira. Quando a evangelização se torna o suporte para a ação política transformadora, o que se obtém é a política da evangelização, seguida do domínio sobre as vozes da diferença. Atingido esse estágio, passa a vigorar a lógica persecutória do fundamentalismo, perante o qual a democracia não é mais reconhecida como prática das relações societárias. Não custa recordar que, diferentemente do que possa pensar a maioria, "fundamentalismo" é um conceito formulado primeiramente pela matriz cristã. Somente em tempos posteriores é que o termo foi deslocado para religiões orientais.

Perversa e sanguinária

Ciente da redundância, mas com o propósito de dar a devida ênfase ao problema, reafirme-se que a questão religiosa no Brasil atual não se esgota na ocupação que as instituições da fé promovem no circuito midiático e sim na montagem, passo a passo, de uma arquitetura política. A presença crescente na mídia apenas realimenta o caudal de seguidores; a presença na construção política define estratégias outras.

A preocupação esboçada em parágrafos anteriores leva em conta também a manifestação de políticos em cerimônias oficiais, ou seja, a mistura de papéis e funções tem sido a tônica de muitos pronunciamentos. Apenas para ilustração com fatos mais recentes, vale destacar que o discurso de despedida da evangélica e ex-ministra Benedita da Silva não escondia a pregação em favor de Jesus. Diferente não se portou Patrus Ananias, ministro entrante, que, no discurso de posse deu o troco em versão católica, com várias alusões a Deus, a ponto de inspirar o título da matéria publicada pela Folha de S. Paulo ("Patrus assume e agradece a Deus pelo ministério", 28/1/04).

Logicamente, o tom do artigo não se endereça contra nenhuma religião. O problema é saber se a religião é reconhecida como uma experiência vivencial legítima, ou se é transformada em instrumento de afirmação (sedução) política. Há, portanto, em torno desse tema um éthos que carece de maior definição, sob pena de, perdendo-se o momento certo para o ajuste, não mais se encontrarem mecanismos capazes de refrear o processo.

A defesa em favor da laicização do Estado brasileiro representa um compromisso com a preservação da democracia. Para tanto, a retórica de políticos e as concessões para emissoras de rádio e TV deveriam ser objeto de emergente reavaliação.

A título de simples lembrete, examinemos o seguinte aspecto, antes deixando claro ao leitor que nenhum vínculo tenho com o judaísmo, exceto amizades como as tenho com católicos, protestantes, islâmicos e budistas. Nunca foi segredo para ninguém que a família Bloch é de raiz judaica. Alguém, entretanto, terá na lembrança programas da extinta TV Manchete direcionados à difusão do judaísmo? Documentários ou reportagens a envolver o Holocausto, todas as emissoras sempre os exibiram ou produziram-nos. Por outro lado, na antiga Manchete, nenhum programa tematizava ou pregava a difusão de valores ou crenças do judaísmo.

A ilustração tem o intuito de deixar claro que os detentores de meios de comunicação ou de mandatos políticos devem usufruir da mais ampla liberdade religiosa (é um direito constitucional e democrático), na condição de cidadãos. Atrelar, porém, a imagem e a função públicas aos credos aos quais se subordinam significa traição ao próprio sentido profundo da religião - compreendida, repito, como experiência vivencial subjetiva.

Se o conhecimento da História ainda tem lugar, é bom recordar que nenhum Estado com direcionamento religioso, seja no Ocidente ou no Oriente, trouxe prosperidade à nação. E mais: em todos os casos nos quais a instituição religiosa assumiu (ou assume) a condução política, a conseqüência foi (e tem sido) desastrosa, catastrófica, perversa e sanguinária. É bom que a mídia - ainda independente - saiba colocar o tema na ordem do dia.

(*) Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA) [i]

Fonte: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/iq030220047.htm

Voltar