Gritos do passado
Publicado na Revista Isto é de 20
de novembro de 1996:
Existe um dia na vida de milhões de
africanas que elas jamais esquecem. É o dia em que foram
circuncidadas. Nada comparado à circuncisão
masculina. A brutalidade pela qual cerca de dois milhões
de meninas e adolescentes passam anualmente é praticada
em pelo menos 28 países da África e, dependendo da
região, a tortura varia de intensidade. No tipo de mutilação
mais brando, a ponta do clitóris é cortada. Em
alguns rituais, ele é integralmente extirpado
(clitoridectomia). Na versão mais radical, é feita
uma infibulação: são retirados o clitóris
e os lábios vaginais e, em seguida, o que sobrou de um
lado da vulva é costurado ao outro lado, deixando-se
apenas um minúsculo orifício pelo qual a mulher
urina e menstrua. Tudo isso é realizado sem nenhum tipo
de anestesia, com instrumentos não-esterilizados como
facas, tesouras, giletes ou mesmo cacos de vidro. Para qualquer
ocidental, o fato provoca indignação. Mas ele está
tão arraigado em algumas populações que
muitas africanas nem imaginam que fora dali o costume não
seja adotado. As estimativas sobre o atual número de
mulheres que já se submeteram a esta tradição
monstruosa variam de 80 milhões a 130 milhões.
O próprio termo "circuncisão"
foi substituído por outro mais próprio e destituído
da possibilidade de eufemismo: Mutilação Genital
Feminina. No início do ano, o comitê da ONU para
Eliminação da Discriminação contra
Mulheres mandou às favas o relativismo antropológico
e considerou a mutilação feminina uma violação
dos direitos humanos - o que abre espaço para que
governos onde o ritual é praticado sofram maiores pressões
para eliminá-lo.
A mutilação genital feminina
só traz problemas à saúde. Com muita frequência,
as mulheres contraem tétano, gangrena ou infecções
crônicas na região pélvica. Aquelas que
foram infibuladas sofrem mais ainda. A menstruação
é incrivelmente dolorosa. No parto, podem acontecer
complicações sérias para o bebê e
para a mãe. Nessas ocasiões, elas precisam fazer a
reabertura da vagina [abre-se cortando com uma navalha] e
qualquer demora acarreta uma pressão às vezes
fatal no crânio e na coluna da criança. Quando a mãe
não faz a abertura da vagina, a saída do bebê
do útero pode provocar cortes que vão da vagina ao
ânus
Dados da Anistia
Internacional
Mutiladas
Escrito por Carlos Alberto Idoeta diretor da Seção
Brasileira da Anistia Internacional.
São uns 6.000 casos por dia - perto
de dois milhões por ano - de meninas e adolescentes
expostas à prática. Cerca de 135 milhões de
mulheres já foram submetidas a alguma das três
formas de mutilação genital feminina. Na
clitoridectomia, ocorre a extirpação total ou
parcial do clitóris. Na excisão, se extirpam o
clitóris e os lábios menores total ou
parcialmente. Na infibulação, se extirpam TODOS os
genitais externos e se costura quase todo o orifício
vaginal. Geralmente a mutilação se pratica entre
os quatro e os oito anos de vida da menina, mas as idades
oscilam entre o nascimento e a primeira gravidez.
A ferramenta pode ser um pedaço de
vidro, a tampa de uma lata, uma tesoura ou uma navalha. Na
infibulação se usam espinhos para juntar os lábios
vaginais maiores e as pernas podem permanecer amarradas por até
40 dias. O praticante pode ser um médico, uma parteira,
um barbeiro ou uma curandeira. A menina é imobilizada com
as pernas abertas e se utiliza a anestesia local ou apenas água
fria para intumescer a parte do corpo.
Os possíveis efeitos imediatos são
muita dor, hemorragias e ferimentos na região do clitóris
e dos lábios. Depois há o risco de infecções
urinárias crônicas, abscessos, pedras na bexiga e
na uretra, obstrução do fluxo menstrual e
cicatrizes proeminentes. A primeira relação sexual
só é possível depois da dilatação
gradual e dolorosa da abertura que resta. O tecido cicatricial
pode ser rasgado no parto.
A investigação científica
das seqüelas psicológicas é mais difícil.
Apesar da falta de provas, os relatos pessoais indicam
sentimentos de ansiedade, terror, humilhação e
traição, com prováveis efeitos negativos de
longo prazo. A mutilação genital feminina é
prática comum na África e em alguns países
do Oriente Médio. Também ocorre em comunidades de
imigrantes em países latino-americanos, asiáticos,
europeus, Canadá e EUA. É associada à
castidade e à crença de que diminui o desejo
sexual e reduz o risco de infidelidade (na infibulação,
a mulher "costurada" só é "aberta"
para o marido). Invocam-se também supostos motivos de
higiene e estética, com a genitália feminina tida
como feia e volumosa. Em algumas culturas, às mulheres não
mutiladas é vedado o manuseio de alimentos e água.
É desconhecida a origem da mutilação.
Precedeu o cristianismo e o islamismo, era praticada pelos "falashas"
(judeus etíopes), não é preceito de nenhuma
das chamadas grandes religiões.