Ocidente tenta coibir o ritual milenar africano de extirpação do clitóris de crianças e adolescentes
Eduardo Ferraz

Gritos do passado

Publicado na Revista Isto é de 20 de novembro de 1996:

Existe um dia na vida de milhões de africanas que elas jamais esquecem. É o dia em que foram circuncidadas. Nada comparado à circuncisão masculina. A brutalidade pela qual cerca de dois milhões de meninas e adolescentes passam anualmente é praticada em pelo menos 28 países da África e, dependendo da região, a tortura varia de intensidade. No tipo de mutilação mais brando, a ponta do clitóris é cortada. Em alguns rituais, ele é integralmente extirpado (clitoridectomia). Na versão mais radical, é feita uma infibulação: são retirados o clitóris e os lábios vaginais e, em seguida, o que sobrou de um lado da vulva é costurado ao outro lado, deixando-se apenas um minúsculo orifício pelo qual a mulher urina e menstrua. Tudo isso é realizado sem nenhum tipo de anestesia, com instrumentos não-esterilizados como facas, tesouras, giletes ou mesmo cacos de vidro. Para qualquer ocidental, o fato provoca indignação. Mas ele está tão arraigado em algumas populações que muitas africanas nem imaginam que fora dali o costume não seja adotado. As estimativas sobre o atual número de mulheres que já se submeteram a esta tradição monstruosa variam de 80 milhões a 130 milhões.

O próprio termo "circuncisão" foi substituído por outro mais próprio e destituído da possibilidade de eufemismo: Mutilação Genital Feminina. No início do ano, o comitê da ONU para Eliminação da Discriminação contra Mulheres mandou às favas o relativismo antropológico e considerou a mutilação feminina uma violação dos direitos humanos - o que abre espaço para que governos onde o ritual é praticado sofram maiores pressões para eliminá-lo.

A mutilação genital feminina só traz problemas à saúde. Com muita frequência, as mulheres contraem tétano, gangrena ou infecções crônicas na região pélvica. Aquelas que foram infibuladas sofrem mais ainda. A menstruação é incrivelmente dolorosa. No parto, podem acontecer complicações sérias para o bebê e para a mãe. Nessas ocasiões, elas precisam fazer a reabertura da vagina [abre-se cortando com uma navalha] e qualquer demora acarreta uma pressão às vezes fatal no crânio e na coluna da criança. Quando a mãe não faz a abertura da vagina, a saída do bebê do útero pode provocar cortes que vão da vagina ao ânus

Dados da Anistia Internacional

Mutiladas

Escrito por Carlos Alberto Idoeta diretor da Seção Brasileira da Anistia Internacional.

São uns 6.000 casos por dia - perto de dois milhões por ano - de meninas e adolescentes expostas à prática. Cerca de 135 milhões de mulheres já foram submetidas a alguma das três formas de mutilação genital feminina. Na clitoridectomia, ocorre a extirpação total ou parcial do clitóris. Na excisão, se extirpam o clitóris e os lábios menores total ou parcialmente. Na infibulação, se extirpam TODOS os genitais externos e se costura quase todo o orifício vaginal. Geralmente a mutilação se pratica entre os quatro e os oito anos de vida da menina, mas as idades oscilam entre o nascimento e a primeira gravidez.

A ferramenta pode ser um pedaço de vidro, a tampa de uma lata, uma tesoura ou uma navalha. Na infibulação se usam espinhos para juntar os lábios vaginais maiores e as pernas podem permanecer amarradas por até 40 dias. O praticante pode ser um médico, uma parteira, um barbeiro ou uma curandeira. A menina é imobilizada com as pernas abertas e se utiliza a anestesia local ou apenas água fria para intumescer a parte do corpo.

Os possíveis efeitos imediatos são muita dor, hemorragias e ferimentos na região do clitóris e dos lábios. Depois há o risco de infecções urinárias crônicas, abscessos, pedras na bexiga e na uretra, obstrução do fluxo menstrual e cicatrizes proeminentes. A primeira relação sexual só é possível depois da dilatação gradual e dolorosa da abertura que resta. O tecido cicatricial pode ser rasgado no parto.

A investigação científica das seqüelas psicológicas é mais difícil. Apesar da falta de provas, os relatos pessoais indicam sentimentos de ansiedade, terror, humilhação e traição, com prováveis efeitos negativos de longo prazo. A mutilação genital feminina é prática comum na África e em alguns países do Oriente Médio. Também ocorre em comunidades de imigrantes em países latino-americanos, asiáticos, europeus, Canadá e EUA. É associada à castidade e à crença de que diminui o desejo sexual e reduz o risco de infidelidade (na infibulação, a mulher "costurada" só é "aberta" para o marido). Invocam-se também supostos motivos de higiene e estética, com a genitália feminina tida como feia e volumosa. Em algumas culturas, às mulheres não mutiladas é vedado o manuseio de alimentos e água. É desconhecida a origem da mutilação. Precedeu o cristianismo e o islamismo, era praticada pelos "falashas" (judeus etíopes), não é preceito de nenhuma das chamadas grandes religiões.

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