A guerra de três mundos
Ali Kamel

Publicado no Jornal O Globo em 04 de abril de 2004

Essa é a história de um outro mundo que vive à espera de um outro mundo. E nenhum desses dois mundos é o nosso. Por isso, para prosseguir na leitura, é preciso que o leitor se dispa de suas noções de possível e impossível. Se eu fosse fazer a genealogia do terror muçulmano, o leitor se perderia num emaranhado de nomes de difícil pronúncia. Teria de voltar aos precursores dos homens-bomba, os adeptos da seita dos assassinos, no século XI, que inauguraram os ataques suicidas. Mas não será necessário recuar tanto. Porque a sustentação teórica do terror islâmico contemporâneo foi elaborada no século XX. Dois nomes se destacam: Hassan Al-Banna e Sayyid Qutb. Conhecê-los, saber o que pensam e o que pregam, é fundamental para entender a al-Qaeda e Bin Laden. É este o propósito da série de três artigos que tem início hoje. Se eu obtiver êxito, o leitor nunca mais achará que a possibilidade de um ataque terrorista usando armas atômicas é apenas uma paranóia. E, talvez, passe a admitir que, contra essa gente, nossa forma ideal de combate, nós que não gostamos de guerras, não tem serventia. Porque o lema que eles usam desde 1928 - “preparem-se para a Jihad e sejam amantes da morte” - não é uma frase vazia.

O primeiro passo é conhecer o mundo em que eles vivem, um mundo muito pequeno, apenas a Arábia Saudita (e outros minúsculos países do Golfo Pérsico) e micro-sociedades nas cavernas do Afeganistão, onde Bin Laden e seus adeptos se escondem. Nele, só há uma crença que tudo rege: Deus é Único e, por isso, ninguém mais pode ser cultuado, nem o profeta Maomé, nem santos. As orações devem ser feitas somente tendo Deus em mente e, portanto, apelar pela interseção de algum intermediário é pecado gravíssimo (é proibido comemorar datas festivas, mesmo que seja o aniversário de Maomé). Deve-se viver como eles acreditam que o Alcorão prega, observando-se estritamente a Sharia (o código de leis muçulmano), e os costumes devem ser apenas aqueles mencionados nas Hadith (a coletânea de ditos e feitos de Maomé e seus companheiros). A música, a dança, o álcool e o fumo estão banidos e, às mulheres, é imposta uma condição de segunda classe. Elas não podem dirigir e só podem viajar na companhia do marido ou de algum parente masculino de primeiro grau. Os homens são obrigados a fazer as cinco orações, e, às sextas, devem comparecer às mesquitas, sob pena de para lá serem levados sob vara. E as punições físicas estão em pleno vigor: adúlteros têm de ser apedrejados, ladrões devem ter o braço amputado, e a pena de morte deve ser executada em lugares públicos. Se obrigado a viver no Ocidente ou em países muçulmanos mais liberais (a maioria), o fanático leva esse mundo em sua cabeça para onde for. E reza todos os dias para não se contaminar com a impureza que o cerca.

O mundo que eles querem é parecido com aquele descrito acima, mas com algumas crenças a mais e algumas liberdades a menos. Se, para nós, a liberdade é o direito mais sagrado, para eles a submissão a Deus é o dever mais absoluto. Como Deus é o criador de todas as coisas, tudo a Ele pertence e somente Ele pode ser o soberano de todos os homens. Só ele pode ser adorado, só ele deve ser obedecido. É à primeira vista uma crença que muitas religiões compartilham, mas, aqui, ela ganha dimensões totalizantes. Como Deus já revelou as suas leis e já anunciou que seu último profeta foi Maomé, não abrindo assim possibilidade para um novo período de revelações, nenhuma lei feita pelo homem pode ser respeitada, sob pena de incorrer no pecado da Shirk (adorar outro deus ou associar Deus a outro deus, porque respeitar outra lei que não a de Deus é o mesmo que reconhecer que há outro soberano). Um muçulmano não tem nenhuma nacionalidade, senão a sua crença. Votar, portanto, é também um ato de Shirk, porque não é possível escolher um soberano - este é Deus. A crença de todo democrata - todo poder emana do povo - é Shirk, porque todo poder emana apenas de Deus. O mundo hoje se encontra no estado de Jahiliyyah, a completa ignorância que reinava antes da revelação do Alcorão. Depois dos primeiros anos após Maomé, inovações de todo tipo teriam desvirtuado o Islamismo de tal forma que a Jahiliyyah tomou conta de todos novamente. Mesmo os muçulmanos que se acreditam muçulmanos são Jahilis, porque não seguem a religião com pureza. A luta é, portanto, fazer o Islamismo vencer em todo o mundo, porque a mensagem do Alcorão é universal. É obrigação de todo muçulmano se engajar nessa luta, em escala mundial, até que a lei de Deus esteja implantada em todo o planeta. O mundo que eles querem é esse: todo ele islâmico, sem exceção. É um mandamento de Deus.

Chamar estes fanáticos de fundamentalistas é uma imprecisão, porque dá a entender que eles advogam a volta da religião aos seus fundamentos, com base numa leitura literal do Alcorão. Eu mesmo já disse mais de uma vez que a leitura que eles fazem do Alcorão é literal, mas usei a definição, consagrada pela mídia, apenas para me desviar de uma discussão mais aprofundada. Porque o termo “fundamentalismo” chegou ao Islamismo por empréstimo. Os estudiosos e jornalistas aplicaram ao Islamismo o mesmo rótulo que já havia sido dado aos movimentos fundamentalistas cristãos do início do século passado: protestantes ultraconservadores propunham uma releitura literal da Bíblia a que todos os cristãos deveriam se submeter. Não é o caso dos fanáticos do Islã. Embora gostem de que pensem que eles têm uma leitura literal do Alcorão, o que os fanáticos na verdade fazem é algo bem diverso: uma “interpretação” radical do que está no livro sagrado dos muçulmanos. O Alcorão, com uma linguagem ultrametafórica, presta-se bem mais a interpretações do que a leituras literais. Da mesma forma, as Hadith (os ditos e os feitos do profeta) são tantas que se costuma dizer que, para cada exemplo mandando fazer tal coisa, é possível achar outro mandando fazer o seu contrário. O que os fanáticos fazem é escolher, entre as Hadith, aquelas que mais se prestam à sua interpretação e, depois, dizer que elas são as únicas. Para vencê-los, é preciso saber como surgiram, como se multiplicaram, quem são os seus mentores. É uma viagem necessária.

O início de tudo é o ano de 1928, com a criação da Irmandade Muçulmana. Quando Hassan al-Banna a criou, aos 22 anos, ele já não era mais aquele filho de um relojoeiro pobre do norte do Egito, mas um jovem e respeitado professor, formado pela tradicional Universidade de Al-Azhar, a mais prestigiada do país. Al-Banna, porém, já tinha sido feito refém de uma corrente de pensamento dentro do Islã que, ao longo dos séculos, sempre ressurgiu em países muçulmanos. Trata-se de um desejo ardente de volta ao passado, a um idealizado estado de pureza que, supostamente, teria existido no tempo do Profeta Maomé. No século XIII, o líder religioso Ibn Tayniyya já reclamava de que o Islã havia se corrompido com inovações de todo tipo e que era preciso voltar a praticá-lo tal como no tempo do Profeta. No século XVIII, Al-Wahhab, com o mesmo tipo de pregação, varreu toda a região da Arábia, praguejando contra tudo o que ele considerava estranho ao Islã original. Foi tão influente, que, quase três séculos depois, a seita que ele fundou é a religião dominante na Arábia Saudita. Tão dominante que sequer se apresenta como seita: eles se dizem o verdadeiro Islã. Os sauditas dizem que somente detratores os chamam de wahhabistas, numa referência ao fundador, justamente para irritá-los, já que, tendo como norma cultuar apenas Deus, insinuar que eles cultuam al-Wahhab seria dizer que eles próprios comentem o pecado da Shirk, que atribuem a todos os outros muçulmanos. Eles, no máximo, se permitem chamar de unitários (uma referência à adoração do Deus único) ou, também, salafis, que vem do termo árabe Salafi, uma palavra que se refere às primeiras gerações de muçulmanos, os pioneiros do tempo do Profeta (hoje, os salafis seriam aqueles que vivem como os pioneiros viviam). Essa visão do Islã, restrita a uma pequena parte do mundo, é, no entanto, a mais conhecida, porque, com o dinheiro do petróleo, é a Arábia Saudita quem mais financia a abertura de mesquitas e escolas muçulmanas em todo o mundo: nos Estados Unidos, por exemplo, 80% das mesquitas são sauditas e, portanto, wahhabistas. O que o Ocidente acredita ser o Islamismo é apenas a pequena parte dele, a mais conservadora, a mais fechada, a mais repressora.

Em relação aos wahhabistas, qual então a novidade de Hassan al-Banna, ao criar a Irmandade Muçulmana? Ele transpôs a pregação, do terreno do religioso, para o campo político, e além do que advogavam os wahhabistas, ele postulou que a divisão do mundo muçulmano em nações-estado era essencialmente antiislâmica. Al-Banna queria a reunião de todos os muçulmanos numa só nação, sob o comando de um novo califa. Para ele, a miséria e os males que afligiam os países islâmicos do início do século passado, e ainda afligem, eram conseqüências diretas dos desvios que o Islã sofreu ao longo dos anos. Ele costumava dizer de si, imodesto: “Sou um altruísta que, tendo desvendado o segredo sobre a existência, declaro ao mundo: Minhas orações, meu sacrifício, meu modo de vida são totalmente devotados a Deus. Ele é Único. Isso me foi ordenado dizer e eu sou o primeiro dos muçulmanos.” Mas Al-Banna advertia: “O Islã é fé e devoção, é um país e é cidadania, é uma religião e um Estado, é espiritualidade e trabalho duro, é o Alcorão e a espada.” A Irmandade Muçulmana foi um sucesso imediato entre o povo pobre do Egito: seus membros se multiplicavam ao longo dos anos. No início, Al-Banna assim classificava o movimento por ele fundado: “A Irmandade tem uma mensagem Salafi, segue o caminho dos sunitas (em oposição aos xiitas), é uma organização política, um grupo atlético, uma união científica e cultural, um empreendimento econômico e uma idéia social.” A Irmandade era tudo.

O livro mais popular de Al-Banna é também o mais curto: “Carta a um estudante muçulmano”, escrito em 1935, no qual ele ensina como um muçulmano deve se comportar no exterior. Há uma lista de obrigações duras, estritas, severas, mas o que mais sobressai é a visão que ele tem do Ocidente: uma região engolida pelo pecado. “Todos os prazeres trazidos pela civilização contemporânea não resultarão em nada, senão dor. Uma dor que vai superar seus atrativos e remover a sua doçura. Portanto, evite os aspectos mundanos desse povo; não deixe que eles tenham poder sobre você e o enganem.” Em 1934, já havia 50 filiais da Irmandade em todo o Egito. Em 1939, passou a atuar como grupo político organizado e, depois de 1945, sofreu a sua mudança mais radical: aderiu à violência e ao terror, praticando assassinatos políticos com o objetivo de derrubar a monarquia egípcia. A Irmandade já tinha então duas mil filiais, 500 mil militantes e o dobro de simpatizantes: eles abriam escolas, mesquitas, hospitais, fábricas. Dizia-se que a Irmandade era um Estado dentro de um Estado. A mudança radical foi possível porque Al-Banna foi quem primeiro modificou o conceito de Jihad, antes sempre definida de duas maneiras: uma “guerra” interna que o crente deve travar dentro de si para se manter no reto caminho e uma guerra defensiva propriamente dita, em caso de ataques de infiéis contra uma nação muçulmana. Para Al-Banna, Jihad passou a ser a guerra que o muçulmano verdadeiro tem obrigação de travar para reconverter o mundo muçulmano ao islamismo puro, mesmo que, para isso, tenha de pagar com a própria vida.

No livro, “A mensagem dos ensinamentos”, Al-Banna diz: “Por sacrifício eu entendo dar-se totalmente, sua riqueza, seu tempo, sua energia e tudo o mais pela causa do Islã. Não há Jihad sem sacrifício, e não há sacrifício sem uma recompensa generosa por parte de Deus. Quem evita o sacrifício são pecadores. Por isso, queridos irmãos, vocês entendem o nosso slogan: a morte na luta por Deus é a nossa grande esperança.” No mesmo livro, Al-Banna define os cinco objetivos da Irmandade: “Deus é o nosso objetivo, o Mensageiro é o nosso exemplo, o Alcorão é a nossa constituição, a Jihad é o nosso método, e o martírio é o nosso desejo.” Em 1948, a Irmandade foi posta na clandestinidade, seus bens foram confiscados e, no ano seguinte, Al-Banna, com apenas 43 anos, foi assassinado por agentes secretos do governo real egípcio, tornando-se um mártir para os fanáticos e um exemplo a ser seguido. O assassinato não teve o efeito que o governo egípcio imaginou: a Irmandade tinha milhares de simpatizantes, espalhados por todo o país, e eles já pareciam ter absorvido a mensagem de Al-Banna, como a que ele expôs no livro “A indústria da morte”: “Para uma nação que aperfeiçoa a indústria da morte e sabe como morrer de forma nobre, Deus dá uma vida de orgulho nesse mundo e eterna graça no mundo que está por vir.” Naqueles dias, militantes costumavam marchar pelas ruas do Cairo, gritando: “Nós não temos medo da morte; nós a desejamos.” A frase com que a al-Qaeda costuma terminar suas declarações - vocês amam a vida; nós, a morte - vem daí.

Em 1950, o grupo voltou à legalidade e recebeu o apoio do movimento nacionalista pan-arabista do coronel Gamal Abdel Nasser, que também tentava derrubar a monarquia. Em 54, porém, quando Nasser assumiu o poder, a Irmandade exigiu que a Sharia se tornasse a lei no país. Não foi atendida e foi posta novamente na ilegalidade. No mesmo ano, seus adeptos tentaram matar Nasser, que, numa reação furiosa, prendeu quatro mil militantes e cometeu o seu maior erro: expulsou do país outros milhares de simpatizantes, que seguiram para Síria, Arábia Saudita, Jordânia e Líbano, internacionalizando o movimento. Na Arábia Saudita, eles foram abrigados com entusiasmo, porque eram salafis, e receberam dinheiro do rei para que criassem a sua própria universidade em Medina. O impacto disso na vida de Bin Laden será grande. Em todos os países para onde fugiram, foram abertas seções da Irmandade Muçulmana. O Egito era então um centro para onde iam estudantes de todos os países árabes e, por isso, jovens de todos os países da região conheciam já os ideais da Irmandade: com líderes perto, abrir seções internacionais foi bem mais fácil.

Amanhã, na continuação desse artigo, mostrarei como Sayyid Qutb transforma uma Jihad para reconverter o mundo muçulmano ao Islamismo numa Jihad global, visando ao mundo inteiro. Os leitores terão também uma idéia sobre o estrago que uma mulher bêbada e seminua pode fazer na cabeça de um fanático. E como o Ocidente inteiro pode sofrer por isso.

A ORIGEM DO TERROR ISLÂMICO

Publicado em 05/04/2004

A mulher seminua e o ódio ao Ocidente

Ontem, tentei mostrar como a Irmandade Muçulmana, criada em 1928 por Hassan Al-Banna, lançou as bases teóricas do terrorismo islâmico contemporâneo, ao estabelecer que é obrigação de todo muçulmano lutar, sem medo da morte, para que o islamismo volte a um idealizado estado de pureza dos tempos do Profeta. Com o slogan “a morte na luta por Deus é a nossa grande esperança”, o objetivo do grupo era reviver o califado, com a reunião de todas as nações muçulmanas reconvertidas. Apesar da repulsa ao Ocidente, a Irmandade acenava, porém, até o fim da década de 1940, com uma espécie de compromisso. No manifesto “Na direção da luz”, Al-Banna disse: “As pessoas imaginam que a nossa maneira muçulmana de viver nos desconecta do Ocidente. E isso só serve para perturbar nossas relações políticas com eles justamente agora que estávamos para estabelecê-las. Nada é mais fantasioso. Porque os porta-vozes do Ocidente sempre disseram que todas as nações são livres para estabelecer seus próprios caminhos, desde que não infrinjam os direitos dos outros.” Mas tudo isso iria mudar ainda na década de 50, com a aparição de Sayyid Qutb, principal ideólogo da Irmandade depois do assassinato de Al-Banna pelos agentes secretos do governo egípcio. Na verdade é Qutb, e não Al-Banna, quem é hoje o principal mentor dos atuais terroristas. A história de Sayyid Qutb é a de um convertido. E a conversão ao radicalismo muçulmano se deve em grande parte aos Estados Unidos. Egípcio como Al-Banna, Qutb passou a juventude entre a intelectualidade do Cairo, ambicionando uma carreira de escritor. Embora sempre muito religioso, demorou a ligar-se à Irmandade. Formou-se em educação e atuou como inspetor de escolas. Mais tarde, já trabalhando para o Ministério da Educação, foi mandado, em 1948, para os EUA, a fim de se inteirar dos métodos educacionais e dos currículos americanos. A idéia do governo egípcio era abrir-lhe os horizontes, mas o resultado foi trágico. Ele passou dois anos e meio nos EUA: Nova York, Washington, Colorado e Califórnia. A experiência certamente mudou a vida dele, mas teve uma influência ainda maior sobre as nossas. Já na viagem de navio, de Alexandria a Nova York, ele enfrentou a situação mais embaraçosa de sua vida: à porta de sua cabine, uma mulher seminua e bêbada tentou seduzi-lo. Ele não era nenhum garoto, tinha já 42 anos de idade, mas o efeito daquele encontro o marcou para o resto de seus dias (ele permaneceu solteiro até a morte). Sem nenhuma base na realidade, anos mais tarde ele disse ao seu biógrafo Abd al-Fattah Khalidi que a mulher seria uma agente americana, cuja missão era corrompê-lo. John Calvert, professor de história da Creighton University, em Nebrasca, estudou a passagem de Qutb pelos EUA em seu artigo “O mundo é um menino sem modos: a experiência americana de Sayyid Qutb” (o título é uma referência a um curto ensaio de mesmo nome que Qutb escreveu nos EUA, dizendo que o mundo era um menino sem modos por ter ignorado os dons do espírito que o Islã legou à Humanidade). O próprio Qutb escreveu artigos e cartas sobre sua experiência americana, anos mais tarde reunidos por seu biógrafo em um volume chamado “América por dentro: através dos olhos de Qutb”. Qutb ficou pouco tempo em Nova York, mas o suficiente para detestá-la, classificando-a como uma grande oficina barulhenta e estrepitosa. Os nova-iorquinos tinham, segundo ele, a mesma sorte dos pombos que infestavam a cidade, “condenados a viver uma vida sem graça, entre engarrafamentos e os empurrões”. Logo, ele estava em Washington, no Wilson Teacher's College, da Columbia University, tentando melhorar o seu inglês. Mas a repulsa por tudo o que era americano só aumentou. Qutb desabafou em carta a um amigo, segundo conta Calvert: “Eu preciso muito de alguém com quem possa conversar sobre outros assuntos, que não apenas dinheiro, estrelas de cinema e modelos de carro!” Na mesma carta, ele disse que os americanos eram totalmente desinteressados da dimensão espiritual da vida e tinham péssimo gosto. Como prova da degeneração americana, Qutb descreveu um rapaz que estava a uma mesa de distância no mesmo restaurante que ele, cujo corpo era marcado por enormes tatuagens representando um elefante e um leopardo. “Este é o gosto dos americanos”, disse, espantado.

Mas àquela altura, Qutb ainda não tinha visto tudo. Ele se mudou pouco tempo depois para Greeley, uma cidade do Colorado, onde foi continuar seus estudos de inglês. Já chocado com o “american way of life”, Qutb só tinha olhos para ver degeneração e vícios nas mais singelas manifestações de vida. Como numa divertida tarde durante uma festa de igreja. Certo dia, Qutb visitou uma delas e viu casais dançando, à meia luz, na presença das famílias e do pastor, que botava na vitrola a música “Baby, it is cold outside”. Mais tarde, quando descreveu a cena, Qutb a pintou como a visão de um bacanal: “A atmosfera era de sedução e a música servia para criar um efeito romântico e onírico. A dança intensificou-se, o salão fervilhava em pernas, braços enlaçavam braços, lábios tocavam lábios, peitos tocavam peitos, enfim, uma atmosfera cheia de sedução.” Até o hábito de dedicar o fim de semana para aparar a grama era visto por Qutb como sintoma da preocupação americana com o externo, o material, o fútil, e prova do egoísmo dos indivíduos. Detalhe: Greeley era uma das cidades mais conservadoras do Colorado, fundada em 1870 como uma experiência utópica de puritanos protestantes, que cultivavam valores rígidos (quando Qutb lá esteve, a venda de álcool era proibida). Greeley é conservadora até hoje, mas, para os olhos de Qutb, ela era a porta para o inferno. Quando voltou para o Egito, descreveu o que viu como o reino do pecado e da decadência: para ele, as igrejas eram centro de lazer e playground sexual, a liberdade das mulheres era, mais que excessiva, um desrespeito aos valores mais sagrados de Deus, e os costumes, a vida social e política dos ocidentais, um atentado contra as leis divinas. Antes da visita aos EUA, Qutb era religioso e conservador, certamente. Mas a experiência americana o transformou num radical. Em 1951, aderiu à Irmandade Muçulmana e passou a ser o seu principal teórico. Em pouco tempo estaria preso. Passou mais de dez anos na cadeia, foi libertado por um breve período, mas, mesmo sabendo que o risco de voltar à cadeia era grande, decidiu não emigrar. Quando publicou “Sinalizações na estrada”, sua obra mais conhecida e radical, considerada a bíblia do terror islâmico, foi preso por pregar a derrubada do governo, por conspiração e por traição. Julgado, foi enforcado em 1966. Durante todo o período em que esteve na cadeia, sofreu toda sorte de tortura, mas não parou de escrever. O resultado é uma obra monumental, 30 volumes que ele chamou de “À sombra do Alcorão”, uma minuciosa exegese do livro sagrado dos muçulmanos. Ele escreveu outros 24 livros, que se caracterizam por impor demandas implacáveis aos crentes que se quiserem crentes. Mas o ódio ao Ocidente será a grande marca de sua obra. A viagem aos EUA certamente abriu-lhe os horizontes, mas não na direção que a monarquia egípcia imaginava. Como Al-Banna, Qutb não tinha dúvidas existenciais. À eterna pergunta — quem somos, de onde viemos e para onde vamos — ele tinha uma resposta simples: “O Alcorão explicou para o homem o segredo de sua existência e o segredo do universo que o cerca. Ele revelou quem o homem é, de onde ele vem, com que propósito e para onde vai ao fim da vida.” E, como Al-Banna, Qutb acreditava que até mesmo o mundo muçulmano encontrava-se no estado de Jahilliyyah, a ignorância pré-islâmica.

Apesar das semelhanças, Qutb superou Al-Banna. Ele é o responsável pela principal transformação do movimento radical islâmico: se antes a luta era para devolver ao Islã a sua forma original e reunir todos os muçulmanos num só califado, depois de Qutb a meta passou a ser a conversão de todo o mundo ao islamismo, sem exceção. É Qutb quem lança as bases para uma Jihad mundial, hoje principal objetivo da al-Qaeda e de Bin Laden. Para Qutb, a luta para livrar as terras muçulmanas de governos corruptos vinha se mostrando infrutífera porque não se percebia, até ali, que o Ocidente, com sua influência diabólica (o que não faz uma americana bêbada!), era o grande entrave: era preciso também convertê-lo. Para ele, o homem quis tomar o lugar de Deus, tanto nos países ditos muçulmanos como nos ocidentais. “A rebelião contra Deus transferiu ao homem o maior atributo de Deus, a soberania sobre todas as coisas. E fez alguns homens senhores de outros. Somente num sistema islâmico de vida, todos os homens se tornam livres da servidão de alguns homens a outros homens e se devotam à submissão do Deus único, recebendo Dele orientação e se curvando diante Dele.” Qutb dirá que é preciso criar antes um Estado muçulmano modelo, que dê o exemplo da virtude islâmica ao mundo. E, logo depois, empreender a luta para que o Islã purificado vença, indistintamente, no Ocidente e nas terras muçulmanas. “A beleza do nosso sistema não pode ser apreciada a menos que ele tome uma forma concreta. Por isso, é essencial que uma comunidade ordene a sua vida de acordo com ele e o mostre ao mundo. Para que isso aconteça, é preciso que o movimento para o renascer do Islamismo seja iniciado em algum país islâmico”, pregava Qutb em “Sinalizações da estrada”, para logo em seguida descrever os passos seguintes: “Essa religião é realmente uma declaração universal para libertar o homem da servidão a outros homens e da servidão a seus próprios desejos. É uma declaração de que a soberania pertence apenas a Deus e que Ele é o senhor dos mundos. É um desafio a todos os tipos e formas de sistemas baseados na soberania do homem. (...) Em resumo, é preciso proclamar a autoridade e a soberania de Deus para eliminar toda forma humana de governo e anunciar o mando Daquele que sustenta o Universo sobre a Terra inteira.” E, para que não pairasse dúvidas sobre os seus métodos, Qutb deixava bem claro que a meta de expandir o Islã só seria obtida com o uso da força. “O estabelecimento do domínio de Deus sobre a Terra não pode ser atingido apenas com pregação. Aqueles que usurparam o poder de Deus não desistirão do seu poder meramente através de pregação. Se assim fosse, a tarefa de estabelecer a religião de Deus no mundo teria sido muito fácil para os profetas de Deus. E isso é contrário a toda evidência da história dos profetas e da história das lutas da verdadeira religião em todas as gerações.” Lendo essas declarações conjugadas, é impossível não lembrar a estratégia usada pela al-Qaeda: primeiro, estabeleceu o que considerava ser um Estado muçulmano perfeito no Afeganistão e, depois, tão logo pôde, declarou guerra ao mundo ocidental com os atentados às Torres Gêmeas e ao Pentágono.

Outro ponto na obra de Qutb faz lembrar a al-Qaeda e o 11 de Setembro. Diferentemente de Al-Banna, para quem todo contato com o Ocidente devia ser evitado, Qutb enxergava a necessidade de que os muçulmanos aprendessem com não-muçulmanos toda sorte de técnicas e ensinamentos. “Um muçulmano pode ir a um não-muçulmano para aprender ciências abstratas como química, física, biologia, astronomia, medicina, técnicas em produção, agricultura, tecnologia, artes militares. A razão fundamental é que quando a comunidade muçulmana pura vier a existir, ela terá de ter especialistas em todos esses campos em abundância, para não incorrer em pecado”, dizia Qutb. Isso talvez explique por que, durante anos, os participantes do 11 de Setembro estudaram na Europa e nos EUA (e foi em escolas americanas que eles aprenderam a pilotar aviões). Para justificar as suas teses, Qutb teve, no entanto, de dar nova interpretação a antigos mandamentos do Alcorão. Somente uma interpretação bastante heterodoxa poderia justificar o ódio que ele prega aos judeus e aos cristãos, tradicionalmente vistos por muçulmanos como “homens do Livro”, ou seja, como parte da mesma tradição religiosa, filhos de Abraão e, portanto, merecedores de respeito. “O Profeta, que a paz esteja com ele, definiu claramente, de acordo com a Sharia, que ‘obedecer’ é “cultuar”. Tomando esse sentido do verbo ‘cultuar’, quando judeus e cristãos não obedecem, eles se igualam àqueles que associam outros a Deus”, diz Qtub, pondo então judeus e cristãos no mesmo nível que os idólatras e politeístas, a quem o Alcorão manda punir com a morte. Vem daí, também, a retórica de Bin Laden e da al-Qaeda sobre os novos “cruzados”, o ódio a Israel e aos judeus de todo o mundo, e a luta que deve ser empreendida contra eles.

Mas a heterodoxia de Qutb, travestida de ultraortodoxia, deu outros passos. Como fez Qutb para conciliar sua interpretação segundo a qual impor o Islamismo ao mundo é um mandamento de Deus e a clara e reiterada proibição do Alcorão de converter qualquer pessoa à força ao Islamismo? Qutb disse que os estudiosos do Alcorão sempre erraram ao considerarem as duas coisas inconciliáveis. Para ele, a mensagem de Deus é tão clara, o Islamismo é tão obviamente uma forma de vida superior, que os indivíduos se converterão a ele tão logo os governos de todo o mundo deixem de impedir que os seres humanos enxerguem isso. “Quando o Islã libertar as pessoas de toda pressão política e apresentar a sua mensagem espiritual, apelando para a razão, ele dará a todas elas a liberdade para aceitar ou não as suas crenças”, dizia Qutb. Mas ele próprio advertia: “Entretanto, essa liberdade não significa que eles possam fazer de seus desejos seus deuses ou que eles possam escolher continuar na servidão a outros seres humanos. Mas, num sistema islâmico, há espaço para que todo tipo de gente siga suas crenças, desde que obedeçam às leis que serão baseadas na autoridade divina.” Algo semelhante acontece hoje na Arábia Saudita, onde a liberdade de religião é bastante restrita. Não é possível, para nenhuma outra religião, fazer cultos em público, fazer proselitismo religioso, tentar conquistar adeptos: o crente de outra religião só pode rezar em casa e, mesmo assim, sem a presença de pessoas de fora do meio familiar, porque, do contrário, arrisca-se a ser acusado de desobediência, uma vez que nunca se sabe ao certo a partir de que número de participantes um culto, mesmo realizado privadamente, torna-se público.

Amanhã, no último artigo, como Qutb destrói a esperança de muitos ocidentais que acreditam na estratégia de deixar o Islã em paz para que ele nos deixe em paz também. E como Bin Laden se torna herdeiro de Qutb e põe em prática as suas idéias. E, por último, a ameaça: por que pode ser evidente que não é apenas um blefe a afirmação de Bin Laden de que já dispõe de capacidade nuclear.

A ORIGEM DO TERROR ISLÂMICO

Publicado em 06/04/2004

A capacidade nuclear de Bin Laden

Ontem, expus as idéias de Sayyid Qutb, que radicalizou a herança do fundador da Irmandade Muçulmana, Hassan al-Banna, estabelecendo a necessidade de uma Jihad global para a conversão do mundo ao Islã. Qutb confirmou a noção de Al-Banna de que a Jihad não é apenas defensiva, mas ampliou-a, deixando para trás a noção de que o terror islâmico deixaria o Ocidente em paz se o Ocidente deixasse em paz o mundo muçulmano. Em seu livro “Sinalizações na estrada”, Qutb diz: “Pode acontecer que os inimigos do Islã considerem conveniente não tomar nenhuma medida contra o Islã, se o Islã os deixar sozinhos em suas fronteiras geográficas para que continuem o domínio de alguns homens sobre outros homens, e se o Islã não estender a eles a sua declaração de liberdade universal. Mas o Islã não pode concordar com isso.” E complementa: “De fato, o Islã tem o direito de tomar a iniciativa. Ele não é uma herança de nenhuma raça particular ou país. O Islã é a religião de Deus e é para o mundo inteiro. Ele tem o direito de destruir todos os obstáculos na forma de instituições e tradições que limitem a liberdade de escolha dos homens.” Foi o que fez a al-Qaeda ao atacar as Torres Gêmeas e o Pentágono. Os terroristas tomaram a iniciativa.

A morte de Qutb em 1966, enforcado por Nasser depois de mais de dez anos na prisão, transformou-o num mártir. Seus adeptos foram perseguidos implacavelmente pelos ditadores árabes laicos da década de 60 e 70. Mas o Ocidente, ignorante dos reais propósitos dos radicais, chegou a enxergar neles um antídoto contra o comunismo no mundo árabe. A Arábia Saudita, como se estivesse olhando num espelho, viu neles apenas ultraconservadores, e os incentivou. É conhecido o apoio que os radicais receberam na luta contra os soviéticos no Afeganistão. Faltou leitura. Qutb, já em 1965 em seu “Sinalizações”, recusava ambos os sistemas: “O mundo ocidental tem consciência de que a civilização ocidental é incapaz de apresentar valores para guiar a Humanidade. (...) O marxismo foi derrotado no plano do pensamento, não há nenhuma nação do mundo que seja de fato marxista. A Rússia, que é a líder dos países comunistas, sofre de desabastecimento de comida.” De qualquer forma, países como o Egito, que se aproximou dos Estados Unidos depois da morte de Nasser, relaxaram a guarda contra os remanescentes do grupo, então em declínio. E arrependeram-se amargamente. No Egito, os adeptos da Irmandade foram todos novamente libertados por Anwar Sadat. Depois do acordo de paz com Israel, em 1979, a Irmandade tomou novo fôlego, promoveu ações contra o governo, que prendeu dois mil militantes. Para tentar acalmar os ânimos, Sadat prometeu estabelecer a Sharia no país, mas não o fez. Em 1981, fanáticos mataram Sadat, num de seus feitos mais ousados. Para justificar o crime, os quatro membros da Jihad Islâmica, um grupo que nasceu da Irmandade, citaram os estudos de Qutb sobre o religioso do século XIII Ibn Taymiyya, que pregava a purificação do Islã. Segundo Qutb, Taymiyya teria apoiado o sultão do Egito na guerra contra os muçulmanos mongóis do Irã, porque, “apesar de se dizerem muçulmanos, eles não seguem absolutamente todas as regras da religião e, por isso, podem ser considerados pagãos, contra quem a guerra é legítima.”

O assassinato de Sadat teve repercussões negativas para a Irmandade Muçulmana em todo o mundo árabe. Em 1982, o então ditador sírio, Hafez Assad, sufocou uma revolta liderada pela Irmandade na cidade de Hama, matando cerca de dez mil pessoas. A Irmandade continua ativa em todos os países árabes, mas deu origem a muitas dissidências: quase todos os grupos terroristas vêm dela. Além da Jihad Islâmica, o Hamas nasceu da Irmandade — o xeque Ahmed Yassin, recentemente assassinado por Israel, foi membro do grupo durante anos. E a história da al-Qaeda é indissociável da Irmandade. O primeiro grande parceiro de Bin Laden foi Abdullah Azzam, fundador da Irmandade Muçulmana da Palestina, que se desencantara com o laicismo de Yasser Arafat. Azzam não era um qualquer, mas uma das mais respeitadas autoridades em Sharia, tendo se graduado no assunto em Damasco, na Síria e, mais tarde, obtido um PhD na Al-Azhar, do Cairo. Depois de se desencantar com a OLP, Azzam foi lecionar na Arábia Saudita, onde deu aulas a Bin Laden. Tão logo os soviéticos invadiram o Afeganistão, Azzam mudou-se para o Paquistão, decidido a fazer o que sempre quisera: dedicar-se de corpo e alma a uma verdadeira Jihad. Em pouco tempo, foi para o Afeganistão ajudar a organizar a guerra dos Mujaahedeem, a partir da criação da MaK (Maktabu I-Khidamat, que quer dizer “escritório de serviços”), uma organização destinada a recrutar guerreiros em todas as terras muçulmanas, treiná-los e armá-los. No mesmo período, Bin Laden, 17º filho de um bilionário saudita de origem iemenita, com a idade em torno de 25 anos, partiu também para o Afeganistão, juntou-se a Azzam e logo tornou-se um dos líderes da organização, por ser um dos seus maiores financiadores. Há muita discussão sobre se o movimento foi financiado pela CIA e outros serviços secretos ocidentais, mas, ao menos indiretamente, não há dúvidas de que isso aconteceu. O próprio governo americano admite isso, mas alega que jamais negociou diretamente com Bin Laden: o dinheiro era repassado ao governo do Paquistão, que os repassava aos diversos grupos de Mujaahedeen do Afeganistão.

Nove anos depois, com a derrota dos soviéticos, Bin Laden voltou para a Arábia Saudita como herói. A MaK teria treinado e doutrinado cerca de dez mil homens, que, de volta a seus países (Egito, Argélia, Arábia Saudita, Turquia), estavam prontos a organizar seus próprios grupos terroristas. Em 89, o parceiro de Bin Laden, Abdullah Azzam, foi morto num atentado que provocou a explosão do carro em que viajava, no Paquistão. Nunca se soube os motivos reais do atentado, mas diz-se que Azzam discordava do uso dos fundos da MaK na criação da al-Qaeda. Azzam queria que eles fossem usados integralmente na construção do Estado islâmico no Afeganistão ou na luta contra Israel. Nada ficou provado e alguns dizem que insinuar que Bin Laden tenha alguma coisa a ver com o atentado é uma calúnia, se é que se pode usar este termo em relação a Bin Laden. Azzam, ligado à Irmandade Muçulmana no passado, não foi, no entanto, o introdutor de Bin Laden nos ensinamentos de Qutb. Já antes de ter aulas com ele, Bin Laden bebeu diretamente na fonte: Mohamed Qutb, irmão do ideólogo do terror Sayyid Qutb, mudara-se para a Arábia Saudita na década de 50, quando os adeptos da Irmandade foram perseguidos por Nasser. Lá, foi aceito como professor e deu aulas a Bin Laden na década de 70, antes mesmo que ele ingressasse na universidade. Não há dúvidas, porém, de que Bin Laden se inspira nos ensinamentos de Qutb, embora, hoje, haja muitos outros autores (entre eles o próprio Azzam, que publicou muitos livros), que desenvolveram, aperfeiçoaram ou até mesmo criticaram as teorias de Qutb. É curioso ver hoje como o establishment religioso da Arábia Saudita tenta se distanciar de Bin Laden, com argumentos que chegam a ser engraçados. Engraçados, mas não ingênuos ou pobres intelectualmente. Porque todos eles são grandes estudiosos. No site “salafipublications.com”, há muitos artigos de eruditos, tentando entender o que se passou no reino saudita que pudesse ter dado origem a desvios como o de Bin Laden. A conclusão é de que o reino deixou-se enganar ou foi enganado pelos membros da Irmandade que lá foram acolhidos quando perseguidos por Nasser. Acreditando que eram salafis “puros” (aqueles que acreditam que vivem o Islã como no tempo do Profeta, sem inovações), os sauditas, que se consideram salafis, lhes deram plena liberdade para trabalhar em escolas e universidades durante décadas. Somente mais tarde, quando o movimento terrorista de Bin Laden eclodiu, no início dos anos 90, é que teriam descoberto que eles traíram o reino ao lecionar livremente os ensinamentos de Al-Banna e Qutb. Os eruditos sauditas dizem que tarde demais se deram conta de que os dois não eram verdadeiros salafis, mas o seu contrário: inovadores da religião! A principal inovação, evidentemente, era pregar a derrubada de governos, especialmente do governo saudita. “Todo salafi sabe que não se prega a derrubada de um governante justo, quando ele erra. Um salafi aponta os erros para que o governante possa mudar”, diz um dos textos do site. Os sauditas seguem os ensinamentos de um salafi do século XVIII chamado al-Wahhab, mas se ofendem quando chamados de wahhabistas (porque isso dá a entender que eles cultuam outro que não o Deus único). Mas eles próprios tentam ofender Bin Laden chamando-o de qutbista! Na verdade, trata-se de uma guerra para ver quem é o Islã mais puro. Porque Bin Laden também renega o wahhabismo, e, portanto, o credo em vigor na Arábia Saudita, acusando-o de Shirk (adorar outro deus ou associar outro a Deus): “Eles deixaram Deus de lado para se submeter a outro senhor”, diz Bin Laden, referindo-se à doutrina de al-Wahhab.

A Arábia Saudita tem mesmo muito do que se lamentar, porque criou um monstro. Assim que o Iraque invadiu o Kuwait, e a Arábia Saudita aceitou a ajuda americana para expulsá-lo de lá, evitando, assim, a invasão de seu próprio território, houve muita discussão. Bin Laden e muitos no reino não se conformavam com a ajuda de Kuffars (não-muçulmanos) no que eles consideravam uma Jihad. Se eles tinham obtido êxito, sozinhos, no Afeganistão contra o império soviético, porque não seriam capazes de enfrentar Saddam Hussein? Os eruditos muçulmanos do reino foram obrigados a divulgar estudos provando por “a” mais “b” que a tradição permitia tal tipo de ajuda, contanto que fosse temporária. Mas Bin Laden nunca aceitou tais estudos e passou a desafiar a família real, acusando-a de não praticar o Islã puro, salafi. Com a retórica de que tropas americanas estavam maculando as terras santas do Islã, Bin Laden anunciou uma luta contra a família real e acabou expulso do país. Seguiu primeiro para o Afeganistão, onde passou um ano, depois mudou-se para o Sudão, onde morou por quatro anos, totalmente livre para continuar seus negócios (banco, construtora, empresa de exportação e importação). Por pressão americana, acabou expulso novamente e voltou para o Afeganistão, onde deve estar até hoje. Em 98, ele divulgou um manifesto, dizendo: “Matar americanos e seus aliados, civis e militares, é uma obrigação individual de todo muçulmano.”

E ele se mostrou capaz de tudo. Aqui no Brasil, quando queremos dizer que alguém não é de fato maluco, afirmamos: “Ele é louco, mas não rasga dinheiro”. Bin Laden rasga: sua imensa fortuna, calculada em US$ 300 milhões, vem sendo dilapidada desde que se lançou em sua Jihad contra o Ocidente. Hoje, a al-Qaeda conta com uma rede de centenas de grupos terroristas, espalhados no Oriente Médio, na Ásia, na Europa. Em novembro de 2001, um repórter paquistanês disse que Bin Laden lhe havia garantido que a al-Qaeda tinha “capacidade nuclear”. Esse mesmo repórter, há poucas semanas, aproveitando-se da amnésia coletiva, repetiu a mesma história com grande sucesso (o repórter concedeu uma entrevista a uma TV australiana e a notícia voltou a varrer o mundo). Poucos lhe dão crédito.

Mas leiam isso. Existe um instituto em Israel dedicado a pensar o terrorismo. Chama-se The International Policy Institute for Counter-Terrorism (ICT), criado em 1996, em Herzliya. Um dos seus pesquisadores mais conceituados chama-se Yoram Schweitzer. Durante a Conferência Internacional sobre Terrorismo Suicida, realizada na sede do ICT em 21 de abril de 2000, Schweitzer dissertou sobre o tema “Terrorismo suicida, desenvolvimento e características”. Depois de todos os dados históricos, do relato das ações mais recentes contra Israel, ele disse que o número médio de vítimas era de nove a 13 por atentado. E, bem ao final, declarou: “O terrorismo suicida pode representar no futuro um grande potencial de risco se os terroristas fizerem operações combinadas com ações espetaculares, tais como explodir aviões ou usar armas de destruição em massa. Esta combinação vai aumentar imensamente o número de mortos de um simples ataque terrorista e vai ter um efeito psicológico terrível sobre o moral do público. Nesse nível, o terrorismo suicida se constituirá numa genuína e estratégica ameaça e será, provavelmente, enfrentada como tal.” Schweitzer disse isso um ano e cinco meses antes do 11 de Setembro, quando, vale lembrar, 19 suicidas usaram quatro aviões para matar cerca de três mil pessoas. Como ele previu, a reação, à altura, desencadeou uma guerra, que estamos vivendo até hoje.

O mesmo pesquisador, quando confrontado em 2001 com a afirmação de Bin Laden de que já tinha capacidade nuclear, escreveu um artigo para desmenti-la (“Osama e a bomba”). Schweitzer disse que muitos ditadores investiram anos e milhões de dólares tentando, sem sucesso, desenvolver ou comprar armamentos nucleares. Não seria, portanto, assim tão fácil para Bin Laden, isolado nas montanhas afegãs, conseguir realizar seus desejos nucleares. Mas, também ao final do artigo, como fez em 2000, Schweitzer advertiu: “No entanto, é preciso ter uma atenção meticulosa para a habilidade criativa de Bin Laden. Ele não investiu seu dinheiro em aviões, equipamentos ofensivos ou explosivos para realizar o 11 de Setembro. Em vez disso, ele simplesmente usou as ferramentas de seus oponentes contra eles próprios. Tomando o controle de quatro aviões, usando recursos mínimos, ele teve sucesso, sendo o autor do pior ataque terrorista da história da Humanidade. A lição deve ser clara para os encarregados da segurança mundo afora. Rigorosas medidas devem ser tomadas para inspecionar instalações e materiais não-convencionais. Nós não devemos ser pegos de surpresa novamente, se Osama bin Laden tentar tirar vantagens de nossa complacência ou negligência para virar nossas próprias armas contra nós.” Ou seja, o pesquisador esclarece que Bin Laden já tem capacidade nuclear: as nossas.

Eles são muitos, têm uma idéia clara sobre o que querem fazer, são resolutos, cultivam a certeza e já demonstraram que sabem como agir. Além de tudo, “sentem” que têm Deus ao seu lado e, por isso, amam a morte (e mais de 300 deles já demonstraram isso nos últimos vinte anos). Para mim, isso seria o bastante para que o Ocidente se unisse. Por três vezes no século passado, o mundo que pensa, o mundo que duvida, o mundo que respeita as diferenças, o mundo que ama a liberdade se uniu para derrotar o inimigo comum: os totalitarismos. Dessa vez, o nosso mundo ainda caminha dividido talvez porque nem todos tenham ainda percebido que o outro mundo é o totalitarismo do século XXI.

ALI KAMEL é jornalista



Alcorão numa mão e arma na outra. Isso é o islam

Alcorão numa mão e a morte na outra. Isso é o islam.

Alcorão numa mão e arma na outra. Isso é o islam.












O ácido sulfúrico e o álcool são usados para tortura de maridos que queriam castigar suas esposas infiéis, jogando este mesmo ácido no rosto delas e ainda fazem isto até hoje, em países como a Indonésia.

Tratamento dado as mulheres no Islam

Mulçumanos e seus presos



Indonésios muçulmanos tem como palavra de ordem decaptar kafires (não-mulçumanos)

terrorismo




NO IRÃ, MATAR UMA FILHA É UM CRIME QUE CONTA COM A INDULGÊNCIA DA LEI

Teerã, 24 abr de 2004 - O caso de um pai iraniano, acusado de ter assassinado a filha, de apenas cinco dias de vida, pelo simples motivo de ser uma menina e não um menino, trouxe à ribalta, uma vez mais, a chocante atualidade da legislação que, na República islâmica do Irã, garante ao homem, uma espécie de propriedade sobre seus filhos.

O infanticídio foi perpetrado em Kerman, no sudeste do país, e ocorreu apenas poucos dias após outro crime hediondo, do mesmo gênero, que viu um homem decapitar sua filha, de nove anos, em Teerã, porque a sua existência era a única coisa que o impedia de se divorciar da mulher.

A lei iraniana comina a pena de morte para um homicídio, enquanto o pai que mata um filho consegue safar-se com poucos anos de reclusão. Isso não contribui _ sublinham as organizações de defesa dos direitos femininos _ para extirpar a praga dos “delitos de honra”, que são numerosos no país, sobretudo nas regiões tribais do sudoeste.

Nessa área é comum que uma jovem seja “eliminada” pelo pai ou um irmão, apenas por se ter recusado a um matrimônio combinado pela família ou porque suspeita de manter relações sexuais pré-matrimoniais.

O delito que vitimou a recém-nascida foi denunciado pela mãe da menina. A mulher disse ainda que, durante a gravidez, quando se soube o sexo da nascitura, o marido a espancou mais de uma vez, tentando provocar-lhe um aborto. (AF)

JORDANIANO MATA IRMÃ, GRÁVIDA DE OITO MESES, PARA "LAVAR A HONRA DA FAMÍLIA"

Aman, 22 abr de 2004 -

Uma mulher grávida de oito meses foi assassinada a punhaladas por seu irmão, que confessou à polícia que cometeu o crime para “limpar a honra da família”, publicou nesta quinta-feira, a imprensa jordaniana.

A vítima, de 25 anos, que não teve o nome divulgado, recebeu mais de 20 punhaladas em diferentes partes do corpo quando estava na cozinha de sua casa acompanhada de seu irmão, disseram fontes oficiais jordanianas citadas pela imprensa.

Uma vez cometido o crime, o homem ligou para a polícia e esperou que os agentes chegassem à casa, para efetuar sua prisão.

O assassino, de quem não se há nenhum tipo de informação, confessou à polícia que matou sua irmã com uma faca de cozinha “para limpar a honra da família”, acrescentaram as fontes.

Segundo as primeiras informações, a moça havia se casado há um ano, sem o consentimento da família, com um egípcio, com quem vivia no país deste último.

Há poucos dias, a mulher, grávida de oito meses, voltou para a Jordânia para dar à luz e, quando seu irmão soube que ela estava no país, foi a sua casa e a matou.

Este ano, 50 mulheres foram assassinadas por um parente próximo ou marido na Jordânia, cujo Código Penal permite que os juízes ditem sentenças benévolas contra aqueles que cometem “crimes de honra”. (AF)

Nova onda de violência atinge Tailândia após "bombardeio da paz"

Publicado em 06 Dez de 2004

Fonte: http://br.news.yahoo.com//041206/5/pq4s.html

BANGCOC (Reuters) - Novos episódios de violência atingiram na segunda-feira o sul da Tailândia, região majoritariamente muçulmana, horas depois de a Força Aérea do país ter jogado cerca de 100 milhões de "pássaros da paz" de origami, em meio a um conflito que já matou quase 500 pessoas.

A polícia disse que uma bomba explodiu perto de um mercado de uma cidade do sul do país, ferindo ao menos um soldado.

Na noite de domingo, pouco depois de 50 aviões da Força Aérea tailandesa terem "bombardeado" a região com pássaros de papel, uma bomba explodiu na Província de Narathiwat, ferindo gravemente uma autoridade do governo e destruindo o carro em que ele estava.

A casa de um professor de Narathiwat, uma das três do sul da Tailândia atingidas pela violência, foi queimada. Na Província de Yala, o prédio de uma escola também acabou incendiado, mas sem provocar grandes prejuízos, disseram as forças de segurança.

Em um outro incidente, ocorrido no domingo, dois homens armados mataram um ex-promotor da Província de Pattani, afirmou a polícia.

A campanha de distribuição das figuras de origami, lançada pelo primeiro-ministro Thaksin Shinawatra semanas antes da eleição geral, chamou atenção nesse país majoritariamente budista.

Várias pessoas, de ministros de governo a taxistas, reuniram-se em grupos para dobrar pedaços de papel no formato de pássaros depois de o premiê ter convocado a população a participar da campanha.

Com esses esforços, o governo pretende dar mostras de harmonia e boa vontade na região, onde uma insurgência começou em janeiro, quando 300 fuzis de assalto foram roubados de uma base militar.

A situação piorou ainda mais em outubro, após as Forças Armadas matarem 85 manifestantes muçulmanos depois de um protesto. A maior parte deles morreu asfixiada ao ser transportada em caminhões militares.

(Por Khettiya Jittapong)

JUSTIÇA ESPANHOLA CONDENA IMAME QUE ENSINA A ESPANCAR AS MULHERES SEM DEIXAR VESTÍGIOS

Barcelona, 14 jan de 2004 – A Justiça espanhola condenou a 15 meses de reclusão, o líder religioso muçulmano Mohamed Kamal Mustafá, por incitar à violência contra as mulheres, num livro de sua autoria.

Um processo celebrado em Barcelona concluiu-se com a condenação de Kamal Mustafá, imame da localidade sulista de Fuengirola, sentenciando-o além dos 15 meses de reclusão, a pagar uma multa de US$ 2.700 pelo delito de incitação à violência contra as mulheres. No livro que escreveu, o imame ensinava a espancar as mulheres sem deixar vestígios. Fontes judiciais informaram que esta foi a primeira vez na Espanha, que um caso de discriminação sexual foi imputado como delito, ainda que a sentença não implique na prisão do líder religioso muçulmano, considerado como um dos grandes sábios do Islamismo na Espanha.

O livro em questão, intitulado “A mulher no Islã” foi publicado em 2000, pela Casa do Livro Árabe, de Barcelona, e distribuído também em outras cidades.

O imame foi denunciado em julho de 2000 pelo Conselho da Mulher, de Madri, que reúne cerca de 80 associações. A querela esteve paralisada por mais de um ano e meio, em razão de um conflito de competência para julgar a ação.

Em sua obra, o imame Kamal Mustafá recomenda que as mulheres sejam surradas nos pés e na mãos, “utilizando uma vara não demasiadamente grossa, para não deixar marcas”.

Ele observa que “os golpes não devem ser fortes nem muito duros porque a finalidade é fazer sofrer psicologicamente a mulher, e não humilhá-la nem maltratá-la fisicamente”.

Segundo a sentença, toda a obra “é escrita num tom de machismo obsoleto, em alguns momentos muito acentuado”, que “ofende abertamente o princípio de igualdade consagrado pela Constituição, promovendo condutas de discriminação, por razões de sexo intoleráveis e penalmente reprováveis”. (AF)

O véu é um inferno

Publicado na Revista Veja - Edição 1861 . 7 de julho de 2004

Entrevista: Azar Nafisi

A autora do best-seller Lendo Lolita em Teerã fala do terror imposto às mulheres pelo fanatismo dos aiatolás

Gabriela Carelli

"A questão não é usar ou não o véu. É se a mulher tem o direito de escolha, se pode interpretar a religião como bem entender"

Nos últimos meses, a vida da iraniana Azar Nafisi, de 54 anos, deu uma reviravolta. Professora de literatura inglesa na Universidade Johns Hopkins, em Washington, ela foi promovida a celebridade das letras com seu livro Lendo Lolita em Teerã (A Girafa, 502 páginas, 58 reais), que será lançado no Brasil nesta semana. A obra está há 26 semanas no primeiro posto da lista de livros mais vendidos do jornal New York Times e é um retrato sensível – às vezes chocante – da situação das mulheres no Irã, submetidas ao fanatismo do regime islâmico. Esse drama é mostrado através da experiência de Nafisi e de sete de suas alunas da época em que ela lecionava na Universidade de Teerã. Por dois anos, desafiando a repressão do regime dos aiatolás, elas se encontraram semanalmente para discutir autores proibidos no país, como Henry James e Vladimir Nabokov. Nascida em Teerã, Nafisi deixou seu país aos 13 anos para estudar na Europa e nos Estados Unidos. Retornou ao Irã em 1979, logo após a Revolução Islâmica, e lá permaneceu por dezoito anos. Cansada de lutar contra a "atmosfera de terror", decidiu voltar para os EUA. "Para uma mulher, viver no Irã é comparável a fazer sexo com o homem que ela mais odeia, é um estupro dissimulado", diz Nafisi. De Washington, onde vive com o marido e os dois filhos, ela deu a seguinte entrevista a VEJA.

Veja – Por que os muçulmanos se preocupam tanto em cobrir o cabelo das mulheres?

Azar Nafisi – O objetivo é eliminar a personalidade da mulher. Ao colocar o véu, ela passa a fazer parte de uma massa padronizada, sem identidade. É uma forma de repressão psicológica. Nas últimas décadas, as mulheres se tornaram símbolos de abertura e de democracia. As mudanças mais importantes em termos de conquista de direitos foram femininas. Ao se tornarem mais visíveis, elas ganham maior controle sobre sua vida. Eis por que as sociedades autoritárias, principalmente nos países muçulmanos, sentem necessidade de conter as mulheres. As conquistas do feminismo, para os radicais islâmicos, são representações do imperialismo ocidental.

Veja – No passado, o cristianismo também relegou a mulher a papéis subalternos. Mas o mundo cristão evoluiu e se modernizou nesse aspecto. É possível modernizar o Islã?

Azar – Todas as religiões têm flexibilidade para mudar, inclusive o Islã. A questão é que o mundo islâmico está passando por uma crise cujo pivô é o fundamentalismo. Diferentemente do que possa parecer, o radicalismo não é uma tradição muçulmana, mas um fenômeno moderno. As outras religiões passaram por momentos de rigidez e intolerância similares aos que nós, muçulmanos, vivemos agora – e por isso se reformaram. O que se vê hoje em alguns países islâmicos é muito parecido com o que ocorreu com a Igreja Católica na Idade Média. Muitos muçulmanos querem uma mudança, uma abordagem mais moderna dos costumes religiosos. Mas esbarram na resistência daqueles que têm medo de um novo estilo de vida, do que pode acontecer, de tornar ainda pior o que já está ruim.

Veja – Muitas muçulmanas expressam a convicção de que o Islã é generoso e justo com as mulheres e que elas são mais felizes que as ocidentais. É possível que a maioria das muçulmanas esteja satisfeita com a situação?

Azar – Muitas muçulmanas, aquelas que não vivem sob tortura, têm uma vida agradável. O problema não é a religião, mas quando a religião se transforma em Estado, quando a religião vira lei. A submissão total e irrestrita nunca fez parte da cultura das mulheres do Irã. Tanto que houve muita resistência por parte delas. As ruas de Teerã se tornaram zonas de guerra. Mulheres enfrentaram guardas armados para poder se expressar. A questão não é usar ou não o véu. É se a mulher tem o direito de escolher, se pode interpretar a religião da forma que bem entender. Eu não gosto de usar véu, mas não digo que seja errado. Digo que não é certo impô-lo a todas. O problema atual não é a religião. É a liberdade de escolha.

Veja – Seu livro conta a história do Irã sob o comando dos aiatolás por meio das impressões de um grupo de mulheres que se reunia para discutir literatura. O que a motivou a montar esse grupo?

Azar – Formei-o depois de pedir demissão de meu cargo de professora de literatura inglesa na Universidade de Teerã. Havia chegado ao meu limite com as normas da revolução islâmica. As regras e imposições arbitrárias eram constantes. Nós, mulheres, entrávamos por uma porta especial e éramos revistadas diariamente. Os fiscais nos apalpavam para ver se portávamos maquiagem, tiravam nossas roupas. Alunas que subiam as escadas correndo ou riam nos corredores eram castigadas. Lecionar era uma tortura. Na sala de aula, tudo o que eu dizia e fazia era controlado. Além disso, vivíamos num ambiente hostil à literatura. As únicas obras consideradas importantes eram aquelas que manifestavam algum tipo de ideologia. O resto era conspiração. Tudo no Irã, até o menor gesto, era interpretado à luz da política vigente. Eu não podia abandonar a literatura, uma de nossas poucas formas de redenção. Chamei minhas alunas mais dedicadas, aquelas em que realmente confiava, para continuar as aulas em minha casa.

Veja – Por que a senhora considera a literatura uma forma de redenção?

Azar – Quando todas as possibilidades nos são tiradas, a menor das aberturas se transforma numa grande liberdade. O escritor russo Vladimir Nabokov, o autor de Lolita, explica bem isso ao dizer que todo romance é um conto de fadas. As histórias sempre oferecem uma maneira de superar os limites. De certa forma, os contos de fadas, ou os romances, nos dão a liberdade que a realidade nos nega.

Veja – Como eram as reuniões do grupo?

Azar – Propus que estudássemos os autores na tentativa de encontrar nossa saída pessoal. As reuniões ocorreram por dois anos, todas as quintas-feiras de manhã. Duravam de três a sete horas. Algumas de minhas alunas mentiam para os familiares para poder comparecer a elas, outras se intimidavam porque aquilo que eu estava promovendo era contra a lei. Mas nunca, durante esse período, elas deixaram de aparecer. Era naquela sala de estar que tirávamos nosso véu, escapávamos dos olhos dos aiatolás, redescobríamos nossa identidade. Não importava o regime nem o medo que sentíamos. Criávamos nosso pequeno oásis de liberdade, assim como fazia a personagem Lolita, de Nabokov.

Veja – Por que Lolita foi o livro mais discutido durante esses encontros?

Azar – Geralmente as pessoas acham que escolhemos Lolita, cuja narrativa trata da relação proibida entre um homem maduro e uma criança, porque vivíamos numa sociedade reprimida sexualmente. Não foi por isso. Na verdade, na literatura de ficção, o romance de Nabokov é uma das representações que mais se aproximam do regime totalitário em que vivíamos. Vai muito além de 1984, de George Orwell, que se tornou um símbolo do autoritarismo. Mais do que expor a dor física e a tortura das ditaduras, Nabokov transmite em Lolita como é apavorante viver num estado de terror permanente. A tragédia maior da história não é o estupro de uma menina de 12 anos por um senhor, mas o confisco de uma vida individual por outra. Lolita é uma menina que não tem para onde ir. Ela depende de Humbert, o personagem que faz de tudo para possuí-la, tenta transformá-la em sua fantasia, em seu amor, mas a destrói. Ela satisfaz os desejos dele porque não há outra saída, porque sempre é levada a crer que será recompensada.

Ela é o tipo de pessoa que não pode articular a própria história. Assim é a vida numa sociedade totalitária. Um mundo de solidão, em que o Estado é o salvador e o carrasco.

Veja – Por que a senhora decidiu voltar ao Irã logo após a revolução dos aiatolás, depois de dezessete anos vivendo no exterior?

Azar – Assim como vários iranianos que viviam fora, eu estava feliz com as notícias de mudanças. Sob o regime do xá, que perdurou por mais de 25 anos, vivíamos sob uma ditadura política, e queríamos derrotá-la. Acreditávamos que a revolução para instaurar a teocracia seria um bom caminho. Queríamos mais direitos, e não menos. Tanto para quem estava fora como para quem vivia no Irã, a revolução foi bem-vinda. Levamos um choque quando soubemos de suas características, quando percebemos que a ditadura política avançou, minou a vida das pessoas, transformou-se numa forma de aniquilar a individualidade e os direitos dos cidadãos. Ninguém tinha a dimensão do pesadelo que estava por vir.

Veja– O que havia mudado na vida das mulheres iranianas à época de seu retorno ao país, em 1979?

Azar – A idade mínima para o casamento passou de 18 para 9 anos. O apedrejamento até a morte se tornou o castigo para o adultério e a prostituição. Nos ônibus, adotou-se a segregação. Destinaram-se às mulheres a porta traseira e os assentos no fundo do veículo. Até pouco tempo atrás, as ruas de Teerã e de outras cidades eram patrulhadas por milícias formadas por homens armados, chamados de Sangue de Deus. Eles tinham como obrigação assegurar o bom comportamento das mulheres. Um vestígio de maquiagem, uma mecha de cabelo para fora do véu e eles vinham, implacáveis. Prendiam-nos, arremessavam-nos para dentro de carros, deixavam-nos em prisões imundas, chicoteavam-nos. Por fim, jogavam-nos nas ruas. A situação era pior para as solteiras. Muitas de minhas alunas tiveram de passar por coisa pior, como o teste de virgindade. Não havia nada mais humilhante e nojento do que aquilo, feito em qualquer lugar, sem nenhuma assepsia, a qualquer hora. Quantas jovens não foram presas e chicoteadas só porque, sem querer, cruzaram o olhar com o de um guarda?

Veja – A situação das mulheres no Irã melhorou com a eleição do presidente Khatami?

Azar – Só na aparência. Desde que o reformista Khatami derrotou um aiatolá em 1997, o governo iniciou o que chamamos de abertura de fachada. Para acalmar a população, as autoridades fazem vista grossa a determinadas atitudes, evitam entrar em conflito. Hoje, nas ruas, as mulheres podem usar véu colorido e batom. Camelôs vendem CDs pirateados de cantores americanos. Mas nada disso mudou a concepção do governo. As leis continuam as mesmas. Ainda se apedrejam até a morte mulheres que caem na prostituição ou traem o marido. Os carros da Sangue de Deus, antes presentes em todos os lugares, são mais raros. O que não impede que patrulhas armadas abordem mulheres por achar que elas estão desrespeitando a religião. Na verdade, quem controla o país é o Conselho dos Guardiães, formado por aiatolás. Eles apenas se disfarçaram. Não se sabe por quanto tempo.

Veja – É possível democratizar o Islã?

Azar – O fundamentalismo islâmico é fraco. Quando a única arma de um Estado é a violência extrema, ele se debilita. A sociedade abaixa a cabeça por determinado tempo, mas não para sempre. Parece contraditório, mas esses regimes, ao ditar suas regras, ao impor um Islã que não é verdadeiro, aumentam o questionamento das pessoas sobre o que é certo ou não. É o que tem ocorrido em meu país. No Irã, a busca pela democratização é ainda maior por causa da nova geração, as chamadas crianças da revolução. Os jovens nunca desfrutaram a liberdade que tivemos. Eles a desejam mais do que qualquer coisa. Não concordam com tudo o que é ocidental, mas no fundo querem viver o sonho americano. Quando jovem, eu era muito mais crítica ao Ocidente. Para essa geração, tudo o que se relaciona com a América parece bom.

Veja – Qual a situação atual das universidades iranianas?

Azar – Ainda existe repressão, mas as universidades são os maiores pólos do movimento democrático. Principalmente porque lá estão esses jovens descontentes, que não vislumbram nenhum futuro. Eles têm muito menos a perder que seus pais. Outra coisa importante é que, por mais que haja controle no que se ensina a esses jovens, pela internet eles têm acesso a literatura, a ensaios. Eles podem ser proibidos de ler Nabokov, mas vão achar seus livros nos sites de busca.

Veja – A impressão que se tem é que essas manifestações pela democracia são fracas, desorganizadas, sem poder de fogo para competir com a força do Islã radical.

Azar – É um erro achar isso. O que ocorre é que as vozes da violência são muito mais ouvidas que as da razão. As pessoas que estão lutando contra o terror de forma coerente não saem gritando nem fazem gestos espetaculares. Até porque seriam reprimidas. Em todo o mundo islâmico há gente questionando a situação, achando que o radicalismo e a coerção não representam o melhor caminho. O problema é que as vozes dos homens-bomba repercutem de forma muito mais estrondosa. A impressão que se tem é que existem poucas vozes contrárias a esse tipo de coisa, mas são muitas. Vários de meus alunos que apoiavam a teocracia hoje estão presos porque defendem um estado secular.

Veja – Os aiatolás iranianos dizem que seu livro é uma conspiração sionista apoiada pelos americanos. Como a senhora avalia essas críticas?

Azar – Muitos amigos me contaram que o livro é sucesso no Irã, que as pessoas fazem cópias xerox para conseguir lê-lo. Os fanáticos, não importa o que eles defendem, estão sempre prontos para criticar, tanto aqui como lá. Quando viram as fotos que fiz para a campanha publicitária da Audi, os americanos que segregam os muçulmanos disseram: "Olha lá, ela ganhou milhões de dólares, e também ganha dinheiro com histórias melosas". No Irã é bem pior. A tática que o governo usa contra os intelectuais e escritores é difamá-los. Há um programa na televisão chamado Identidade. Nele, todos os intelectuais iranianos, tanto os que moram no país como os que vivem no exterior, são chamados de traidores, acusados de ter ligação com a CIA. Eu só os ignoro. O que mais posso fazer?

Depois do Cineasta, "Ex-muçulmana" Pode Ser o Próximo Alvo

Quinta-feira, 11 de Novembro de 2004

Ayaan Hirsi Ali, que escreveu o guião do último filme de van Gogh, "Submissão", está sob protecção policial por receio de que seja o próximo alvo dos extremistas islâmicos. Em 11 minutos, o filme denuncia a forma como a sociedade islâmica trata as mulheres, destacando o casamento forçado e a penalização de vítimas de violação por adultério. Entre as críticas à religião na qual foi educada, Ayaan já chamou a Maomé "tirano devasso" e ao islão "religião retrógrada". Somali de nascença, a agora deputada viveu em vários países muçulmanos antes de, fugindo de um casamento forçado, chegar à Holanda. Sem um tostão e sem falar holandês, trabalhou até concluir o curso de Ciência Política. No Parlamento a sua atitude directa incomoda por vezes os colegas, e os grupos muçulmanos moderados preferem que a sua comunidade seja capaz de, por si só, não interpretar o Corão à letra. "Não penso calar-me agora que posso dizer e fazer coisas que jamais me seriam permitidas [numa] nação muçulmana", diz Ayaan. topotopo

Fonte: http://jornal.publico.pt/2004/11/11/Mundo/I04CX01.html

Realizador holandês assassinado em Amesterdão

O realizador e argumentista holandês Theo van Gogh, autor de diversos filmes sobre temáticas polémicas -incluindo o último, sobre o Islão-, foi assassinado na terça-feira em Amesterdão. Foi detido um extremista islâmico com alegados laços a grupos terroristas.

Theo van Gogh, de 47 anos, realizador, argumentista, escritor e cronista holandês, foi várias vezes apunhalado quando andava de bicicleta numa rua da Amesterdão esta terça-feira, 2 de Novembro. O crime deixou a sociedade holandesa em estado de choque.

Theo van Gogh terá ainda suplicado misericórdia ao seu assassino, um extremista islâmico de 26 anos de nacionalidade holandesa e marroquina com alegados contactos a grupos terroristas, que foi detido hoje. Depois de esfaquear primeiro o realizador, que terá conseguido fugir, e o alvejar a tiro oito ou nove vezes, ter-se-á inclinado sobre a sua vítima para lhe cortar a garganta. Um polícia e um transeunte também ficaram ligeiramente feridos no confronto que se seguiu.

Realizador muito conhecido pela sua condenação da sociedade multicultural e pelos seus filmes, muitos deles polémicos (incluindo o último, sobre o Islão), Theo van Gogh, de 47 anos, tinha agora terminado o filme «06-05», sobre o assassinato do líder populista holandês Pim Fortuyn a 6 de Maio de 2002, que irá estrear na Internet a 12 de Dezembro. Van Gogh também já escrevera crónicas sobre o Islão que eram publicados no seu site e no jornal Metro.

A sua curta-metragem televisiva «Submission», que criticava o tratamento das mulheres no Islão, foi exibida na televisão holandesa em Agosto. Falado em inglês, o filme tinha argumento de uma política de direita, Ayaan Hirsi Ali, natural da Somália e agora uma advogada que tem assento no parlamento holandês, que anos antes renunciara à sua fé islâmica de nascença e que agora se intitula "ex-muçulmana".

A película contava a história ficcionada de uma mulher muçulmana forçada a um casamento violento, violada por um parente e brutalmente punida por adultério. Uma das cenas mostrava o corpo nu da actriz com inscrições de versículos do Corão e o filme enfureceu alguma da comunidade muçulmana da Holanda e grupos femininos, que consideraram o retrato do abuso das mulheres "insensível". O cineasta, bisneto do irmão de Vincent Van Gogh, terá recebido várias ameaças de morte, mas já no passado gozara com um proeminente judeu holandês ao referir-se a Jesus como o "peixe pobre de Nazareth" e chamara a um política radical muçulmano o "chulo de Alá".

Muitos holandeses que nem sequer partilhavam a arte do realizador, tem vindo a prestar homenagem no local onde este foi assassinado e uma manifestação de 20 mil pessoas protestou contra o ataque numa das praças centrais de Amesterdão, defendendo que a liberdade de expressão é um direito que lhes é querido e que deve ser preservado. Ayaan Hirsi Ali, que tem vindo repetidamente a enfurecer os muçulmanos ao criticar os costumes islâmicos e o facto das famílias muçulmanas não adoptarem costumes holandeses, mostrou-se muito chocada com o episódio, que trouxe à memória dos holandeses a morte de Pim Fortuyn.

Também o governo holandês levou a cabo reuniões de crise pela noite dentro e o ministro da imigração encontrou-se com grupos muçulmanos para discutir como evitar confrontos com a comunidade muçulmana. Esta, tal como a comunidade judaica, embora considerasse as opiniões do realizador ultrajantes, condenou o crime, dizendo que nada legitima a morte e apelou à reconciliação.

Este episódio volta a colocar na actualidade as questões dos imigrantes muçulmanos na sociedade holandesa, onde representam já 5% da população, quando os partidos da direita pressionam para a aprovação de leis de imigração mais restritivas. O assassinato de Van Gogh vem numa altura em que as tensões sociais aumentam, com muitos a culpar a minoria muçulmana pelos crimes violentos e estes a expressar o medo de represálias depois do assassinato do cineasta. Tanto mais que o suspeito alegadamente era amigo de Samir Azzouz, um muçulmano de 18 anos actualmente detido e a aguardar julgamento por acusações de planear um atentado terrorista contra um reactor nuclear e o aeroporto de Schiphol, em Amesterdão.

*****

* Foram entretanto detidos mais oito suspeitos (seis de origem marroquina, um de origem argelina e outro de nacionalidade esaponhola e marroquina), o que pode indicar tratar-se de uma conspiração. Ayaan Hirsi Ali, a argumentista do filme «Submission» foi alvo de uma ameaça de morte por mail esta quarta-feira, dizendo que é a próxima.

* Alguns dados mais concretos: a Holanda tem cerca de 16 milhões de habitantes, dos quais 20%, três milhões, são imigrantes de primeira ou segunda geração, o que ajuda a explicar os extremismos sociais referidos no artido em cima. 300 mil são nacionais de Marrocos.

* A Holanda já prendeu mais de 40 pessoas suspeitas de terrorismo desde os ataques de 11 de Setembro. Pensa-se que o país é um forte posto de recrutamento da grupos ligados à al-Qaida, além de contribuir para o seu financiamento.

03-11-2004

http://www.cinema2000.pt/ficha.php3?id=4396&area=noticias

Ayaan Hirsi Ali

Ayaan Hirsi Ali é uma deputada holandesa pelo Partido Liberal Holandês. Recentemente, promoveu a criação de um filme de 10 minutos, sobre a condição feminina no Islão, chamado de Submissão. (poderá ver excertos num documentário holandês, aqui).

O filme mostra mulheres com hijab's transparentes, bem como versos do Corão escritos no corpo das actrizes. O filme descreve vários assuntos tabu no mundo islâmico, como o habitual abuso sexual de mulheres por membros masculinos da família, o espancamento sistemático das esposas, a excisão genital feminina, os casamentos forçados, a impossibilidade sistemática de uma mulher ter uma vida própria e independente, etc. O filme foi considerado um escândalo e uma afronta por parte da comunidade islâmica holandesa. Ayann retorquiu que o simbolismo da nudez não se destina aos homens, mas sim às mulheres muçulmanas na Arábia Saudita, Somália, Quénia e outros países onde impera a sharia (não há restrições de nudez entre elementos do mesmo sexo no Islão, onde aliás, se preservou o hábito cultural romano dos banhos públicos).

Mas os problemas de Ayaan começaram antes deste filme. Num debate televisivo com elementos da comunidade islâmica, declarou que já não praticava nem se considerava muçulmana. Passou a ser ameaçada de morte a partir desse momento, porque no Corão, deixar a fé, é ser-se automaticamente condenado com a pena de morte. Assim neste momento, Ayann vive em casas seguras e protegida pela polícia.

Ayaan nasceu na Somália. Filha de um dissidente político somali, viveu no Quénia, Etiópia, Arábia Saudita durante os seus primeiros 20 anos de vida. Viveu profundamente a realidade diária de uma muçulmana, tendo inclusive sido excisada aos 5 anos. O seu pai, aos 15 anos, arranjou-lhe um casamento com um muçulmano canadiano, que queria que ela tivesse 6 filhos.

Foi assim que com 20 anos, Ayann se encontrou num aeroporto alemão, prestes a encontrar a sua «cara-metade», quando algo se moveu dentro de si. Fugiu, apanhando um comboio para a Holanda, onde pediu o estatuto de refugiada.

Durante os anos seguintes, Ayann subiu a pulso na vida. Trabalhando como empregada de limpeza, aprendeu o holandês, e fez a educação obrigatória holandesa em pouco tempo. Conseguiu entrar na universidade de Leiden, onde realizou estudos superiores em Ciências Políticas. Durante estes anos, Ayann conheceu o submundo holandês dos abrigos de mulheres, onde mulheres abusadas de origem muçulmana se refugiam e tentam reconstruir a sua vida.

Acabado o curso, Ayaan dedicou-se à política. Ideologicamente próxima da esquerda, Ayaan juntou-se ao Partido dos Trabalhadores Holandês (o equivalente ao nosso PS), onde lhe foi pedido que estudasse, porque é que tantos jovens muçulmanos nascidos na Holanda, estão em guerra com a sociedade que os viu nascer. A conclusão de Ayann foi brutal para o establishment holandês. O culpado, segundo o seu estudo, não era nada mais que o próprio multi-culturalismo holandês.

Na ânsia de agradar e cultivar a «tolerância», o estado holandês financiou centenas de clubes islâmicos, onde imâns radicais, aproveitando-se do dinheiro do estado holandês, construíram uma cultura à parte, pregando uma mensagem fundamentalista.

Ayann acabou por deixar o Partido dos Trabalhadores, porque este se aliou, cinicamente, com os conservadores muçulmanos fundamentalistas para alcançarem o poder. Revoltada, com tal exercício de hipocrisia política, Ayann foi encontrar no Partido Liberal Holandês uma nova casa.

O que, para Ayaan Hirsi Ali diferencia a Europa e em certa medida o mundo ocidental, do resto do mundo?

Nas suas próprias palavras:

« Eu queria compreender porque é que os países ocidentais estavam a desenvolver-se tão bem, quando o resto do mundo parecia estar em colapso. Eu estudei a história do pensamento político europeu, desde os gregos e os romanos até à Segunda grande Guerra.

Descobri que as pessoas no Ocidente valorizam o individuo autónomo. Elas compreendem a importância da ciência e do conhecimento. São capazes de se criticar a elas próprias e existe uma capacidade de registar a história, para evitar repetir os erros do passado. É exactamente, o oposto da Somália onde não há instituições que procedam a um registro histórico e as memórias da minha avó das guerras dos clãs irão morrer com ela.»

MULHER É CONDENADA A SER ESTUPRADA NO PAQUISTÃO - ISLAMISMO RADICAL PRATICA UM DOS MACHISMOS MAIS ATROZES DO MUNDO

The New York Times, 30 set de 2004 - Segundo a polícia, em junho de 2002 membros de uma tribo da elite local abusaram sexualmente de um dos irmãos de Mukhtaran e a seguir acobertaram o crime acusando-o falsamente de ter um caso com uma mulher da elite local. O conselho tribal da vila determinou que a punição recomendável para o suposto relacionamento indevido seria fazer com que uma das irmãs do garoto fosse estuprada por membros da elite do lugar.

Assim, o conselho condenou Mukhtaran a ser estuprada por um grupo de homens. Enquanto membros da tribo dançavam alegremente, quatro homens arrancaram a sua roupa e se revezaram em estuprá-la. Depois, eles a obrigaram a andar nua até a sua casa em frente a 300 moradores da aldeia.

Na sociedade muçulmana conservadora do Paquistão, o dever de Mukhtaran após esses acontecimentos era bem claro: ela deveria se suicidar.

"Assim como outras mulheres, a princípio pensei em me matar", conta Mukhtaran, que hoje tem 30 anos. O seu irmão mais velho, Hezoor Bux, explica: "Uma garota que foi estuprada não possui um lugar honroso na vila. Ninguém respeita tal garota ou os seus pais. Existe um estigma, e a única saída é o suicídio".

Uma moça de uma vila próxima foi estuprada nas mesmas circunstâncias uma semana após Mukhtaran, e escolheu a saída tradicional: tomou uma garrafa de pesticida e caiu morta.

Mas, ao invés de se matar, Mukhtaran depôs contra os seus algozes e propôs a idéia chocante de que a vergonha reside no estupro, e não no fato de ser estuprada.

Os estupradores aguardam agora a execução no corredor da morte, e o presidente Pervez Musharraf indenizou Mukhtaran com uma quantia equivalente a US$ 8.300 (não chega a R$ 25 mil) e ordenou que ela recebesse proteção policial 24 horas por dia.

Mukhtaran, que nunca freqüentou uma escola, usou o dinheiro para construir na vila uma escola para meninas e outra para meninos --já que, segundo ela, a educação é a melhor forma de se promover mudanças sociais.

Voltar