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Sobre lobos e pastores
Roberto Romano

Publicado no Jornal Folha de São Paulo em 28/04/00

Entre os marginalizados em geral e os poderosos, a Igreja optou pelos segundos

'Ego sum pastor bonus. Bonus pastor animam suam dat pro ovibus suis'

(João, 10, 11)

Quando se afirma que a Igreja é culpada de boa parte do atraso que impera em nossas instituições políticas, muitos bispos reclamam. Mas o fato é que a hierarquia perde as oportunidades de negar essa acusação. Durante a ditadura Vargas, ela se esmerou em compactuar com os palácios. No governo militar, assinou documentos de apoio aos ditadores (em 64 e 68) que envergonham todos os fiéis. Hoje, silencia diante da repressão aos indígenas, aos negros, aos sem direitos. Longe estamos das atitudes serenas e belas de Hélder Câmara, Evaristo Arns, Pedro Casaldáliga, todos dignos pastores. Mas, essa última palavra, o que ela significa realmente?

O historiador Jean-Pierre Vernant afirma que boa parte da diferença entre a liderança grega e a chinesa encontra-se na imagem do governo. Os helenos, como os judeus, usam a metáfora do pastor para definir o líder. Os chineses preferem a figura do jardineiro. A primeira forma enfatiza o traço volitivo do poderoso, enquanto a segunda ressalta a paciência do príncipe diante das massas, as quais devem ser corrigidas, podadas, dele receber o cultivo.

Os guardiães da república platônica têm dupla face: a de cães atentos para os cidadãos, a de lobos ferozes para os inimigos da cidade. Não é casual o uso desse imaginário por Thomas Hobbes, quando descreve a origem da comunidade política. Antes do pacto, os indivíduos são lobos tirânicos e vorazes. Depois dele, todos se submetem ao soberano, o único que pode garantir a vida e quem aceitou viver em comum.

As imagens do pastor e do rebanho têm um peso inimaginável enquanto símbolo político. Na Igreja, elas assumiram estatuto divino. Ser pastor de povos é tarefa arriscada. No Evangelho o próprio Cristo se definiu desse modo. O termo de comparação sufoca qualquer líder humano.

Os dirigentes eclesiásticos recebem essa responsabilidade e por ela devem ser absolvidos ou condenados diante da história e no juízo final. Todos devem prestar contas das ovelhas.

O Messias compara o bom pastor e o mercenário. O último vê o lobo, "abandona as ovelhas e foge; então o lobo as arrebata e dispersa". Esse é o mandato de Cristo a Pedro: "Tu me amas? Apascenta as minhas ovelhas". O pior crime dos líderes religiosos é abandonar seu rebanho, festejando os lobos.

Os bispos não podem eludir a escolha entre o bem dos dirigidos e o diabo (Mateus, 4, 8-10). Os dirigidos nada acrescentam ao poder civil dos vigias, mas os donos da terra matam os pastores zelosos: "Por minha causa sereis levados à presença de governadores e de reis, para lhes servir de testemunho" (Mateus, 10, 16).

É devido a esse mandamento que Pedro e Paulo permaneceram na arena com os leões, na companhia dos que eram vistos como bandidos pelos romanos. Não ficaram nas tribunas das autoridades. Sua opção ocorreu no instante em que aceitaram o primado dos fiéis. Não lhes cabia fugir do repto: esposar os senhores do mundo ou permanecer entre os que iam ser mortos.

Dante Alighieri, mesmo arriscando uma injustiça, bem definiu o papa Clemente 5º, que não teria sido fiel à sua grei, amando mais o poder e o dinheiro que as ovelhas: "Un pastor sanza legge" ("Inferno", 19, 82). Erasmo de Roterdã, numa invectiva violenta, ironizou Júlio 2º, que representa a traição máxima do pontificado ao se transformar em tirano e guerreiro. Vale a pena reler seu profético "Júlio, a quem se recusou a entrada nos céus" (1513).

Ao comemorar nossos 500 anos, a hierarquia da Igreja, mais uma vez, trai a lei que dá significado à sua existência. Entre os índios, negros, marginalizados em geral e os poderosos, ela optou pelos segundos. É certo que existem esforços de setores católicos, como os do Conselho Indigenista Missionário. Mas, na carta de João Paulo 2º ao nosso presidente, nenhuma palavra foi dita sobre as ovelhas. Na missa rezada em 26/4, houve a censura a trechos considerados nocivos à liturgia, por coincidência os que falam de injustiças.

As manifestações populares durante o Te Deum foram proibidas, por "uma questão de respeito", como afirmou o secretário-geral da CNBB (Folha, 26/4, pág. 1-5). As palavras, neste Brasil subvertido, estão trocadas. O governante laico diz que o dirigente máximo da Funai deveria ser leal ao governo, não aos índios. O bispo proclama que o respeito da cerimônia deve prevalecer, contra o respeito pelos injustiçados.

Assistimos, na verdade, à missa negra, onde tudo é lido ao revés. É assim, de traição em traição ao rebanho, que os dirigentes rumam para o apoio aos piores regimes de força, inimigos de toda democracia. Do modo como as coisas seguem, logo assistiremos, no Planalto, à assinatura de mais uma concordata entre os dois "poderes", o religioso e o da Presidência. E mais 500 anos de convivência serão proclamados aos quatro ventos. Enquanto isso, as ovelhas buscarão outros apriscos, como as seitas pentecostais, deixando os templos católicos ainda mais vazios de povo e mais álgidos que os corações de seus sacerdotes.

Roberto Romano, 54, filósofo, é professor de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

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