Publicado no Jornal Folha de São
Paulo em 28/04/00
Entre os marginalizados em geral e os
poderosos, a Igreja optou pelos segundos
'Ego sum pastor bonus. Bonus pastor
animam suam dat pro ovibus suis'
(João, 10, 11)
Quando se afirma que a Igreja é
culpada de boa parte do atraso que impera em nossas instituições
políticas, muitos bispos reclamam. Mas o fato é
que a hierarquia perde as oportunidades de negar essa acusação.
Durante a ditadura Vargas, ela se esmerou em compactuar com os
palácios. No governo militar, assinou documentos de apoio
aos ditadores (em 64 e 68) que envergonham todos os fiéis.
Hoje, silencia diante da repressão aos indígenas,
aos negros, aos sem direitos. Longe estamos das atitudes serenas
e belas de Hélder Câmara, Evaristo Arns, Pedro
Casaldáliga, todos dignos pastores. Mas, essa última
palavra, o que ela significa realmente?
O historiador Jean-Pierre Vernant afirma
que boa parte da diferença entre a liderança grega
e a chinesa encontra-se na imagem do governo. Os helenos, como
os judeus, usam a metáfora do pastor para definir o líder.
Os chineses preferem a figura do jardineiro. A primeira forma
enfatiza o traço volitivo do poderoso, enquanto a segunda
ressalta a paciência do príncipe diante das massas,
as quais devem ser corrigidas, podadas, dele receber o cultivo.
Os guardiães da república
platônica têm dupla face: a de cães atentos
para os cidadãos, a de lobos ferozes para os inimigos da
cidade. Não é casual o uso desse imaginário
por Thomas Hobbes, quando descreve a origem da comunidade política.
Antes do pacto, os indivíduos são lobos tirânicos
e vorazes. Depois dele, todos se submetem ao soberano, o único
que pode garantir a vida e quem aceitou viver em comum.
As imagens do pastor e do rebanho têm
um peso inimaginável enquanto símbolo político.
Na Igreja, elas assumiram estatuto divino. Ser pastor de povos é
tarefa arriscada. No Evangelho o próprio Cristo se
definiu desse modo. O termo de comparação sufoca
qualquer líder humano.
Os dirigentes eclesiásticos recebem
essa responsabilidade e por ela devem ser absolvidos ou
condenados diante da história e no juízo final.
Todos devem prestar contas das ovelhas.
O Messias compara o bom pastor e o mercenário.
O último vê o lobo, "abandona as ovelhas e
foge; então o lobo as arrebata e dispersa". Esse é
o mandato de Cristo a Pedro: "Tu me amas? Apascenta as
minhas ovelhas". O pior crime dos líderes religiosos
é abandonar seu rebanho, festejando os lobos.
Os bispos não podem eludir a
escolha entre o bem dos dirigidos e o diabo (Mateus, 4, 8-10).
Os dirigidos nada acrescentam ao poder civil dos vigias, mas os
donos da terra matam os pastores zelosos: "Por minha causa
sereis levados à presença de governadores e de
reis, para lhes servir de testemunho" (Mateus, 10, 16).
É devido a esse mandamento que
Pedro e Paulo permaneceram na arena com os leões, na
companhia dos que eram vistos como bandidos pelos romanos. Não
ficaram nas tribunas das autoridades. Sua opção
ocorreu no instante em que aceitaram o primado dos fiéis.
Não lhes cabia fugir do repto: esposar os senhores do
mundo ou permanecer entre os que iam ser mortos.
Dante Alighieri, mesmo arriscando uma
injustiça, bem definiu o papa Clemente 5º, que não
teria sido fiel à sua grei, amando mais o poder e o
dinheiro que as ovelhas: "Un pastor sanza legge" ("Inferno",
19, 82). Erasmo de Roterdã, numa invectiva violenta,
ironizou Júlio 2º, que representa a traição
máxima do pontificado ao se transformar em tirano e
guerreiro. Vale a pena reler seu profético "Júlio,
a quem se recusou a entrada nos céus" (1513).
Ao comemorar nossos 500 anos, a hierarquia
da Igreja, mais uma vez, trai a lei que dá significado à
sua existência. Entre os índios, negros,
marginalizados em geral e os poderosos, ela optou pelos
segundos. É certo que existem esforços de setores
católicos, como os do Conselho Indigenista Missionário.
Mas, na carta de João Paulo 2º ao nosso presidente,
nenhuma palavra foi dita sobre as ovelhas. Na missa rezada em
26/4, houve a censura a trechos considerados nocivos à
liturgia, por coincidência os que falam de injustiças.
As manifestações populares
durante o Te Deum foram proibidas, por "uma questão
de respeito", como afirmou o secretário-geral da
CNBB (Folha, 26/4, pág. 1-5). As palavras, neste Brasil
subvertido, estão trocadas. O governante laico diz que o
dirigente máximo da Funai deveria ser leal ao governo, não
aos índios. O bispo proclama que o respeito da cerimônia
deve prevalecer, contra o respeito pelos injustiçados.
Assistimos, na verdade, à missa
negra, onde tudo é lido ao revés. É assim,
de traição em traição ao rebanho,
que os dirigentes rumam para o apoio aos piores regimes de força,
inimigos de toda democracia. Do modo como as coisas seguem, logo
assistiremos, no Planalto, à assinatura de mais uma
concordata entre os dois "poderes", o religioso e o da
Presidência. E mais 500 anos de convivência serão
proclamados aos quatro ventos. Enquanto isso, as ovelhas buscarão
outros apriscos, como as seitas pentecostais, deixando os
templos católicos ainda mais vazios de povo e mais álgidos
que os corações de seus sacerdotes.
Roberto Romano, 54, filósofo, é
professor de ética e filosofia política na Unicamp
(Universidade Estadual de Campinas).