Publicado no Jornal Folha de São
Paulo em 17/04/94
João Batista Monteiro, 42, quer
abrir uma casa para abrigar religiosos doentes e portadores do vírus
HIV
Na semana passada, os bispos da 32ª
Assembléia Geral de Itaici discutiram o drama dos padres
com Aids. A sessão foi fechada. Em São Paulo, num
bar da av. São João, o padre João Batista
Monteiro, 42, contou sua vida como homossexual e portador do
HIV.
Pelas regras da Igreja, Monteiro está
"cometendo uma contravenção contra o
compromisso do celibato que assumiu".
"A Igreja vai propor a ele um retiro
para que reflita sobre suas atitudes", disse o monsenhor
Arnaldo Beltrame, porta-voz da Arquidiocese de São Paulo.
"Se não mudar, será
afastado do exercício do ministério". Pelas
leis da Igreja continuará padre.
"A Igreja não recrimina nem
pergunta como o padre se infectou", diz Júlio
Munaro, 64, padre coordenador da Pastoral da Saúde.
Léo Pessini, 38, capelão do
Hospital das Clínicas, diz que 27 padres morreram com
Aids em hospitais de São Paulo, de 87 a 93.
O número seria maior. Padre
Monteiro conhece vários que morreram sem informar a doença.
Há três semanas, morreu um pároco da zona
norte da capital.
"Conheço vários que
vivem escondidos e pelo menos um que vive oprimido pelos seus
superiores", diz Monteiro. Talvez por isso, ele queira
abrir em São Paulo uma casa que possa abrigar padres e
outros doentes de Aids.
"Faço um apelo a todos os
colegas, para que se libertem da coação de seus
superiores e venham morar nesta casa."
Monteiro nasceu no Rio Grande do Norte e
cursou o seminário em São Paulo, onde viveu de 76
a 82. Foi pároco do município de Cláudia,
no Mato Grosso.
Em 1990 descobriu que estava com Aids. Ele
é apenas portador do vírus e está bem de saúde.
Abaixo, a entrevista que concedeu.
FOLHA - O senhor diz que é
homossexual e que pegou o vírus em relações
sexuais. O senhor não usava preservativo?
Monteiro - Antes de saber que estava
infectado, nunca usei preservativo. Nunca gostei, me tirava do
natural. Depois que soube, uso para evitar que o outro se
contamine e que eu me recontamine.
Folha - Como o senhor vive sua
sexualidade?
Monteiro - Eu já estive em sauna,
mas não frequento pontos de encontro ou bares exclusivos.
Prefiro deixar acontecer.
Os padres raramente têm um caso com
outro padre. A maioria procura parceiros distantes da vida
eclesiástica. Como eu, eles preferem parceiros anônimos,
parceiros de passagem, que não se sabe o nome, nem para
onde vai.
Folha - O senhor nunca se apaixonou por um
parceiro?
Monteiro - Seria uma grande utopia um
homossexual querer encontrar o verdadeiro amor. Haverá
sempre infidelidade entre homens.
O homossexual é inseguro quando não
se aceita, e quando quer alguém só para ele. Homem
é assim, você está com ele e ele já
está olhando para outro. Não acredito que possa
haver felicidade entre dois homens que vivam juntos.
Folha - O senhor sempre foi homossexual?
Monteiro - Antes de ser padre tive
namoradas, cheguei a ser noivo. Hoje me sinto bem ao lado dos
homens, mas jamais dormi com um deles na mesma cama. Na minha
cabeça há uma resistência. São dois pólos
iguais, me sinto abafado. Depois da relação, cada
um vai dormir no seu quarto.
Folha - É mais fácil ser
homossexual dentro da Igreja?
Monteiro - O celibato acaba sendo uma
forma de proteger o homossexual. As pessoas sempre desconfiam de
um solteirão que não se casa, mas não
desconfiam de um padre.
Folha - O senhor não se sente
culpado?
Monteiro - Eu vivo o Evangelho dentro da
minha sexualidade. Quando estou no púlpito, me coloco
como pecador. Me sinto tranquilo, cumprindo uma missão
para a qual Deus me dá forças.
Os padres homossexuais vivem com
sentimentos de culpa diante do bispo e dos paroquianos.
Folha - Como é sua vida sexual
hoje?
Monteiro - É plena, livre, mas não
é desenfreada. Atualmente ando pelas ruas, conheço
os garotos de programa, eles me conhecem. Tento conversar,
convencê-los a se precaverem contra a Aids. Trato-os com
carinho, convido-os para jantar. Eles sabem que sou padre.
Folha - O senhor vai abandonar o sacerdócio?
Monteiro - Decidi renunciar às
atividades paroquiais eclesiásticas. Mas continuo
sacerdote, celebrando missa. Hoje prefiro compromissos com a
população das ruas, que não tem pastor próprio.
Folha - Como o senhor foi tratado depois
que revelou estar com Aids?
Monteiro Com muito carinho. Meu bispo em
Sinop, no Mato Grosso, d. Henrique Froehlich, esperou que eu
chorasse bastante. Depois me perguntou o que poderia fazer por
mim. Não quis saber como eu peguei o vírus.
Em São Paulo, d. Fernando Penteado
(bispo regional da Lapa), também me tratou muito bem.
Morei em sua casa. Há três semanas, quando viajou,
me ofereceu sua cama. Foi um gesto que me marcou.
Folha - E os padres, como tratam o senhor?
Monteiro - Eles não me ajudaram.
Folha - O senhor acredita que um dia a
Igreja mudará sua posição?
Monteiro - Ela jamais vai permitir que um
padre viva sua sexualidade, muito menos sua homossexualidade.
Alguns bispos, raras exceções, podem chegar a
discutir essa questão com seus padres, inclusive para
alertá-los sobre os riscos da Aids. Mas quando falam em
nome da Igreja, negam tudo isso. Os bispos não mantêm
uma relação plena com seu clero.