Questionário

Internacional Situacionista



Questionário paródico publicado no # 9 de Internacional Situacionista (9-VIII-64). Publicado no # 8 do fanzine Amano (Agosto-97) em espanhol. Publicado na internet pelo Archivo Situacionista Hispano. Traduzido de espanhol para o português pelos editores desta página. *


1. O que quer dizer a palavra "situacionista"?

Define uma atividade que pretende fazer as situações, não as examina em função de uma valor explicativo ou qualquer outro. Isto em todos os níveis da prática social e da história individual. Nós substituímos a passividade existencial pela construção dos momentos da vida, a dúvida pela afirmação lúdica. Até o presente os filósofos e os artistas não fizeram mais que interpretar as situações; trata-se agora de transformá-las. Posto que o homem é o produto das situações que atravessa, convém criar situações humanas. Mesmo que o indivíduo esteja definido pela situação, tem o poder de criar as situações dignas de seu desejo. Desta perspectiva devem fundir-se e realizar-se a poesia (a comunicação como realização de uma linguagem em situação), a apropriação da natureza, a libertação social completa. Nossos tempos substituirão a fronteira fixa das situações-limite, que a fenomenologia se contentou em descrever, pela criação prática das situações; deslocarão permanentemente esta fronteira com o movimento histórico de nossa realização. Nós queremos uma fenomenopráxis. Não duvidamos que este será o motivo fundamental do movimento de libertação possível em nosso tempo. O que se deve por em situação? Em diferentes níveis, pode-se tratar deste planeta, ou da época (uma civilização, no sentido de Buckhardt, por exemplo), ou um momento da vida individual. Allez, a música! Os valores da cultura passada, as esperanças de realizar a razão na história, não tem uma continuação possível. Só lhes fica a decomposição. O termo situacionista, no sentido da Internacional Situacionista, é exatamente o contrário do que se chama agora em português um «situacionista», isto é, um partidário da situação existente, por conseguinte, em Portugal, do salazarismo.



2. A internacional situacionista é um movimento político?


As palavras «movimento político» escondem hoje a atividade especializada de chefes de grupos e partidos, que se baseiam sobre a passividade organizada de seus militantes, a força opressiva de seu futuro poder. A I.S. não tem nada a ver com o poder hierárquico, sob qualquer forma que se apresente, não é por conseguinte nem um movimento político, nem uma sociologia da mistificação política. A I.S. se propõe ser a mais alta expressão da consciência revolucionária internacional, esforçando-se em elucidar e coordenar os gestos de negação e os sinais de criatividade que definem os novos contornos do proletariado, a vontade irredutível de emancipação. Encarnada na espontaneidade das massas uma atividade tal é incontestavelmente política, a menos que se questione a qualidade dos agitadores mesmos. Do mesmo modo que as correntes radicais aparecidas no Japão (a ala extremista do movimento Zengakuren), no Congo, na clandestinidade espanhola, a I.S. contribui com um apoio crítico e por conseguinte procura ajudar praticamente. Mas contra todos os «programas transitórios» da política especializada, a I.S. se remete a uma revolução permanente da vida quotidiana.


3. A internacional situacionista é um movimento artístico?


Uma grande parte da crítica situacionista da sociedade de consumo consiste em mostrar até que ponto os artistas contemporâneos, ao abandonarem a riqueza do excesso contido para explorá-la, durante o período de 1920-25, se condenaram em sua maior parte a fazer uma arte autoreferencial. Os movimentos artísticos não são, depois de então, nada mais que ecos imaginários de uma explosão que nunca ocorreu, que ameaçou e ameaça ainda as estruturas da sociedade. A consciência de tal abandono e de suas implicações contraditórias (a vida e a vontade de um retorno a violência inicial) fez da I.S. o único movimento que pode, englobando a sobrevivência da arte na arte de viver, responder ao projeto do artista autêntico. Somos artistas só porque já não somos mais artistas: vimos realizar a arte.


4. A internacional situacionista é uma manifestação niilista?


A I.S. nega o papel, que é tudo o que se está disposto a ser concedido a ela, no espetáculo da decomposição. A superação do niilismo passa pela decomposição do espetáculo; a I.S. trata de agir neste sentido. Tudo o que se elabora e se constrói fora de tal perspectiva não tem necessidade da I.S. para destruir a si mesmo; mas também é certo que, na sociedade de consumo, os terrenos vazios do solapamento espontâneo oferecem aos novos valores um campo de experimentação onde a I.S. não pode introduzir-se. Não podemos construir a não ser sobre as ruínas do espetáculo. Em todos os lugares a previsão, perfeitamente fundada, de uma destruição total, obriga a não construir nada sobre a luz da totalidade.


5. As posições situacionistas são utópicas?


A realidade rebaixa a utopia. Entre a riqueza das possibilidades técnicas atuais e a pobreza de seu uso pelos dirigentes da ordem global não pode haver nada mais que uma ponte imaginária. Queremos por a organização material a disposição da criatividade de todos, como as massas se tratam de fazer por todos os lugares no momento da revolução. É um problema de coordenação ou de tática, como se quiser. Tudo o que nós propomos é realizável: seja imediatamente, seja a curto prazo, desde o momento em que se comecem a por em prática nossos métodos de investigação, de atividade.


6. Vocês julgam necessário se chamarem assim, «situacionistas»?


Na ordem existente, onde as coisas ocupam o lugar dos homens, todo nome está comprometido. Sem dúvida, este que escolhemos leva em si mesmo sua própria crítica, enquanto se opõe àquele outro de «situacionismo» que outros nos aplicaram, que desaparecerá no momento em que cada um de nós seja situacionista em todos os lugares e não haja mais proletários lutando pelo fim do proletariado. Num sentido imediato se trata também de um nome irônico, que tem o mérito de abrir uma brecha entre a antiga incoerência e a nova exigência. O que mantém a inteligência extraviada desde faz alguns anos é precisamente essa brecha.


7. Qual é a originalidade dos situacionistas, como grupo delimitado?


Nos parece que existem três pontos principais que justificam a importância que nos atribuímos como grupo organizado de teóricos e experimentadores. Em primeiro lugar, nós fazemos, pela primeira vez, uma nova crítica, coerente, da sociedade que se desenvolve atualmente, do ponto de vista revolucionário; esta crítica está profundamente ancorada na cultura e na arte deste tempo quanto a sua elucidação (evidentemente, este trabalho está longe de estar completo). Em segundo lugar, praticamos a ruptura completa e definitiva com tudo aquilo que nos abriga e acorrenta. Isto é preciso em uma época em que as diversas espécies de resignação estão sutilmente imbricadas e são solidárias. Em terceiro lugar, inauguramos um novo estilo de relações com nossos «partidários»; nós negamos absolutamente o discipulado, nada nos interessa a não ser a participação mais plena; e em lutar em um mundo de pessoas autônomas.


8. Por que vocês não falam sobre o passado da I.S.?


Se falou bastante freqüentemente, por parte dos possuidores especializados do pensamento moderno, em liquidação sobre isso, mas foi escrito muito pouco. Num sentido mais geral, é devido a nós negarmos o termo «situacionismo», que seria a única categoria suscetível de nos introduzir no espetáculo reinante, de nos integrar sob a forma de doutrina coagulada contra nós mesmos, sob a forma de ideologia no sentido de Marx. É normal que o espetáculo que nós negamos nos negue. Se fala com gosto dos situacionistas como indivíduos, para tentar separá-los da contestação do conjunto, sem a qual por outro lado não seriam uns indivíduos tão «interessantes». Fala-se dos situacionistas na medida em que deixam de sê-lo (as variedades rivais de «nashismo», em vários países, tem unicamente em comum o pretender manter uma relação qualquer com a I.S.). Os cães de quintal do espetáculo retomam sem especificá-los fragmentos da teoria situacionista para lança-los contra nós. Eles se inspiram, como é normal, na luta pela sobrevivência do espetáculo. Necessitam então ocultar a fonte, ou seja, a coerência de tais idéias e não só por vaidade de plagiário. Ademais os intelectuais vacilantes não ousam falar abertamente da I.S. porque o falar implica uma tomada de partido mínima: dizer claramente o que se nega em contrapartida do que se defende. Muitos crêem bem injustamente que aparentar se manter na ignorância poderá libertá-los de sua responsabilidade para mais tarde.


9. O que vocês contribuem para o movimento revolucionário?


Por desgraça não existe tal movimento. A sociedade contêm certamente as contradições, e muda. O que retorna, de uma forma sempre nova, faz possível e necessária uma atividade revolucionária que atualmente não existe, em nenhum lugar ainda, sob a forma de movimento organizado. Por conseguinte não se pode «apoiar» um movimento tal, a não ser construi-lo: defini-lo e ao mesmo tempo experimentá-lo. Dizer que não existe um movimento revolucionário é o primeiro gesto, indispensável, em favor de tal movimento. O resto é reexplorar o desejo do passado.


10. Vocês são marxistas?


Bem entendido que Marx disse: «eu não sou marxista».


11. Existe alguma relação entre as teorias de vocês e suas vidas reais?


Nossas teorias não são outra coisa que a teoria de nossa vida real e da possível experimentação ou estimativa dentro dela. Por parcelar que sejam, com relação a nova ordem, os campos de atividade disponíveis. Não nos orientamos pelo medo. tratamos o inimigo como inimigo, este é o primeiro passo que recomendamos a todo o mundo, como aprendizagem acelerada do pensamento. Em todos os lugares sustentamos incondicionalmente todas as formas de liberdade dos costumes, tudo o que a canalha burguesa ou burocrática chama libertinagem. Está evidentemente excluído que nós preparamos a revolução da vida quotidiana mediante o ascetismo.


12. O situacionistas são a vanguarda da sociedade dos ociosos?


A sociedade dos ociosos é uma aparência que recobre um certo tipo de produção-consumo do espaço-tempo social. Se o tempo de trabalho produtivo propriamente dito se reduz, o exército de reserva da vida industrial trabalhará no consumo. Todo o mundo é sucessivamente operário e matéria-prima na indústria das férias, dos prazeres, do espetáculo. O trabalho existente é o alfa e o ômega da vida existente. A organização do consumo, junto a organização dos prazeres, deve equilibrar exatamente a organização do trabalho. O «tempo livre» é uma medida irônica no esquema de um tempo pré-fabricado.
Rigorosamente, este trabalho não poderá dar mais que esse ócio tanto para a elite ociosa -- de fato, cada vez mais, semiociosa -- como para as massas que ascendem aos prazeres momentâneos. Nenhuma barreira de chumbo pode isolar, por pouco que seja o tempo, nem o tempo completo de um fragmento da sociedade, da radioatividade que difunde o trabalho alienado; é o que determina que a forma da totalidade dos produtos e da vida social seja esta e não outro.


13. Quem financia vocês?


Não tivemos nunca outra finança, e de uma forma extremamente precária, que nosso próprio emprego na economia cultural da época. Este emprego está submetido a uma contradição. Temos suficientes capacidades criativas para ter um «sucesso» quase seguro; mas temos uma exigência tão rigorosa de independência e de perfeita coerência entre nosso projeto e cada uma de nossas realizações presentes (por exemplo, nossa definição de uma produção artística intisituacionista) que somos quase totalmente inaceitáveis para a organização dominante da cultura, inclusive em suas manifestações mais secundárias. O estado de nossos recursos parte deste componente. Ver, a este propósito, o que escrevemos no nº 8 da revista «Internacional Situacionista» (1964) sobre «os capitais que não faltaram jamais às empresas nazistas» e a nossas condições inversas (última imagem desta revista).


14. Quantos vocês são?


Um pouco mais que o núcleo inicial de guerrilha em Sierra Maestra mas com menos armas. Um pouco menos que os delegados que estiveram em Londres em 1864 para fundar a Associação Internacional dos Trabalhadores, mas com um programa mais coerente. Tão firmes como os gregos da Termópilas mas com um porvir mais belo.


15. Que valor vocês atribuem a um questionário como este?


O questionário se manifesta como uma forma de diálogo fáctico que converge hoje obsessivamente todas as psicotécnicas do espetáculo (a passividade regozijadamente assumida sob um disfarce grosseiro de «participação», de atividade). Mas nós podemos sustentar, a partir de uma interrogação incoerente, reificada, as posições exatas. De fato estas posições não são respostas, no sentido de que elas não revertem sobre as perguntas, mas no sentido de que as subvertem. São respostas tais que conseguem transformar as questões de tal modo que o verdadeiro diálogo poderia começar após estas respostas. No presente questionário, todas as perguntas estão falseadas -- e entretanto nossas respostas são verdadeiras.

Internacional Situacionista, 1964



* Extraído da Biblioteca Virtual Revolucionária em

http://www.oocities.org/autonomiabvr/princpl.html

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