CAPÍTULO X


A CONTEMPORANEIDADE DOS PROFETAS


À primeira vista, pode parecer surpreendente que apenas parte do primeiro capítulo e o capítulo final deste volume sejam dedicados ao assunto de seu título. O arranjo é deliberado, e as razões para isso podem ser rapidamente expostas. Em primeiro lugar, declarar que os pofetas são ou não relevantes para o mundo moderno é uma pretensão, até que se tenha um entendimento razoavelmente claro do movimento profético e de sua literatura, como um fenômeno em si mesmo. Devemos conhecer os profetas, para podermos dizer que eles têm uma mensagem para nós e qual é essa mensagem. E, ainda, são os próprios profetas que têm relevância, mais do que suas intuições e predições particulares, e a substância total de seu ensino. Eles falam, não de nossa época mas a ela, porque a palavra de Deus está em sua boca. Por meio do resíduo literário preservado no Velho Testamento, tomamos contacto com homens vivos, homens profundos e poderosos, observadores, compreensivos e terrivelmente sérios. Eles. compreendem a natureza humana e a condição humana. Sentem o urgente significado da História, como esfera das decisões morais do homem e da distintiva ação de Deus. Conhecem a Deus, como a fonte de significado no contexto da vida diária; e percebem a realidade de sua presença no mundo íntimo de seu próprio espírito. Tais homens devem de ser importantes para a religião, em todas as épocas.

Mas o significado e o imperativo moral da religião, para cada pessoa, só ela os pode reconhecer, e não podem ser determinados por nenhuma outra. A, aplicação à vida daquilo que aprendemos dos profetas exige decisões sempre

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novas, visto que as condições se modificam e a experiência cresce. Não podemos simplesmente resumir e catalogar suas intuições, e considerarnos livres deles, quando sua relevância para uma série de circunstâncias tiver sido sugerida. A dinâmica da mensagem deles não se exaure tão facilmente, nem sua autoridade intrínseca pode ser pretendida para tudo que pareça seguir-se da tentativa de aplicá-la a um ponto particular. O que realmente importa é um conhecimento, em primeira mão, dos registros proféticos, o reconhecimento de sua influência formativa em nossa tradição religiosa, e seu vigoroso poder espiritual sôbre a mente dos homens hoje. Necessitamos, finalmente, da capacidade de discernir, constantemente, de novo, sua relevância para a condição humana desta e de todas as épocas.

A notável contemporaneidade desses antigos porta-vozes da religião e o frescor perene de sua mensagem, brotam de seu poder de penetrar por detrás da tessitura da aparência, até aos fatos humanos e religiosos subjacentes, declarados em termos universais, mas com notável concretude: «Pois os egípcios são homens, não deus; os seus cavalos carne, e não espírito. Quando o Senhor estender a sua mão, cairão por terra tanto o auxiliador, como o ajudado» (1). No meio da confusão moral, eles eram capazes de definir a justiça essencial. Em contraste com o tradicionalismo religioso, as influências pagãs e seculares, e o obstinado descaminho do homem, eram capazes de definir a religião essencial. Avaliavam as situações econômicas e sociais, por seu efeito sôbre o ser essencial do homem, em suas relações pessoais com outros homens e com Deus. Sabiam que o homem foi feito para compartilhar da vida de comunidade. Sua apreensão intuitiva da verdade ainda produz convicção na mente religiosa, pois, como Jesus Cristo, falavam com autoridade, e não como os escribas.

As sugestões, nas páginas seguintes, de áreas da vida e pensamento em que os profetas de Israel têm relevância hoje, não devem, portanto, ser consideradas como uma tentativa de palavra final. Pelas premissas já estabelecidas, tal palavra final não pode ser pronunciada, pois, em última análise, cada homem deve tomar sua própria decisão em respos-

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ta à Palavra profética. Mas não deixa de ser verdade que os profetas falam, em grande parte, à mente coletiva da sociedade e dos grupos sociais, e cada indivíduo participa da responsabilidade coletiva de ouvir e responder. O autor só pode dizer que nesta ou naquela passagem, deste ou daquele livro, os profetas parecem falar ao nosso tempo e às nossas circunstâncias.


A Natureza e o Significado da Religião

No capítulo IX foi feita a tentativa de demonstrar como os elementos essenciais da verdadeira religião foram iluminados e definidos por meio da obra dos profetas. A religião foi definida, primeiro, negativamente. Ela não pode ser indiferente à moral, nem pode ser equacionada com os atos formais de culto, que se destinam a dar-lhe expressão. Além disso, seu fim e objetivo não é a simples satisfação do adorador, mas o estabelecimento de uma estrutura de vida e de relações corretas entre os membros de uma comunidade, entre os quais está Javé. Do lado positivo, a religião é a resposta apropriada do homem, em sua vida pessoal e social, em confiança e leal obediência, à realidade ética única e universal de Deus.

O que aprendemos a respeito de Deus e a respeito da religião por meio dos profetas não se torna obsoleto (embora seja iluminado) pela revelação de Deus em Jesus Cristo.

É, antes, elemento integrante e essencial do entendimento cristão total de Deus e dos seus caminhos. A Bíblia toda é uma só obra de literatura, e ficamos sabendo mais a respeito do Deus da fé cristã do que o que se encontra nas páginas do novo Testamento, quando, como os evangelistas e apóstolos, lemos os escritos proféticos com os olhos abertos por Jesus Cristo. A relação entre os Testamentos não é de simples sucessão e desenvolvimento, mas de inter-relação e continuidade vital.

Há, portanto, muita razão para sentir-se que os elementos intemporais nas declarações dos profetas sôbre religião conservam sua importância urgente para os cristãos. O que dizem sôbre as exigências éticas para um serviço aceitá-

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vel da parte do homem a um Deus, cujo caráter e ação morais são os próprios elementos constitutivos de sua divindade, é, por certo, enfatizado em o novo Testamento. Mas em nenhuma outra parte esse fato simples e primário da religião é mais energicamente proclamado do que pelos profetas do Velho Testamento. Em nenhuma época é mais necessário do que hoje o reconhecimento disso. A Igreja tem detrás dela o impulso de dezenove séculos, e muitas vezes seus membros se contentam em subsistir, mental e moralmente, do que lhes é transmitido, sem qualquer desejo de ouvir e responder à voz do Espírito Santo nas modulações do seu próprio tempo. Muitos são cristãos mais por acaso, pelo nascimento, do que por qualquer escolha moral e aspiração espiritual conscientes, que afetam a qualidade e direção do seu modo de viver. Outros não distinguem entre coisas indiferentes para a religião e «as questões mais importantes da lei». Outros, ainda, colocam ênfase, primeiro, na crença correta e nos deveres religiosos formais, mais do que na conduta reta dentro do círculo total de relações humanas. E aqueles que invertem a ênfase estão, muitas vezes, longe de possuir qualquer sentimento profundo de que sua conduta deve ser uma resposta religiosa à grandeza e bondade de Deus. Os profetas tornam claro que religião e comportamento ético devem formar uma unidade vital.

Sua enunciação ainda mais clara da responsabilidade social do homem diante de Deus -- uma responsabilidade não só para com o vizinho que vive porta a porta, mas para com todos os homens -- é particularmente importante para a vida do homem moderno, nos imensos grupos e atividades coletivas de que participa. Visto que o grupo é agora tão amplo que sua relação para com o indivíduo se torna impessoal, o homem tende a restringir seu reconhecimento de obrigação moral só para com outros indivíduos com quem entra em contacto direto. Mas seu dever para com seu povo, isto é, para com todos, e para com o bem-estar comum, é inescapável. O reconhecimento disso dará novo sentido ao patriotismo e galvanizará a democracia. E, ainda mais, o reconhecimento da responsabilidade coletiva diante de Deus pelo comportamento coletivo para com outros povos e toda a fa-

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mília humana, é requisito primordial para o término da velha maldição da guerra, e dos conflitos econômicos e culturais que a provocam.

Tratando, agora, de outro aspecto da religião, a saber, de suas formas de culto e de vida institucional corporativa, vemos que os profetas tornaram certas coisas absolutamente claras. A primeira é que a religião não pode ser confundida com seu mecanismo operativo e com a estrutura estabelecida com uma formulação particular de sua teologia ou de seu código moral, nem ainda com a cultura histórica com que ela veio a estar associada. A segunda é que tudo isso está sob o julgamento dela. A terceira é que a religião, não obstante isso, exige alguma forma de expressão corporativa no culto, agradável a Deus por servir genuinamente aos fins da religião na vida social. A quarta é que é, finalmente, inevitável o conflito entre as instituições religiosas e os espíritos proféticos, que estão apercebidos das exigências da religião para um presente que é sempre novo. Pois as instituições religiosas tendem, como as outras, a desenvolver interesse em sua própria sobrevivência, e isso pode opor-se ao propósito mesmo ao qual se destinavam a servir como instrumentos. Outro aspecto disso é que a vida da comunidade religiosas pode esfriar-se pelo profissionalismo, e corromper-se pela lassidão moral de seus porta-vozes oficiais: -- «como é o povo, assim é o sacerdote» (2) «Tendo Jeremias acabado de falar tudo quanto o Senhor lhe havia ordenado que dissesse a todo o povo, lançaram mão dele os sacerdotes, os profetas e todo o povo, dizendo: Serás morto» (3).

A aplicação do que acaba de ser dito à vida organiza da da Igreja, como a conhecemos, é tão direta, que exige pouco comentário. Adesão leal à Igreja é uma é uma boa coisa que pode, inconscientemente, transformar-se numa armadilha. Aquilo que se destina a ser o instrumento e a oportunidade da religião torna-se seu substituto, e a atenção desvia-se do objetivo supremo da fé para fins menores e mais imediatos. O apêgo emocional a algum venerável sistema de teologia torna os homens cegos ao fato de que nenhuma tentativa de formular a verdade tem a validez permanente da propria verdade. Uma reação emocional semelhante pode impedi-los

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de reconhecer que as obrigações, da ética cristã devem ser constantemente reexaminadas, à luz das mutáveis condições da vida pessoal e social.

As mais profundas de todas as emoções encontram sua expressão no culto, quando este é verdadeiro culto. Os proetas clássicos (4) não estabelecem exigências nenhumas quanto a formas de culto ou à ausência delas. Eles preocupam-se com as finalidades do culto, e com a eficiência com que qualquer culto particular sirva a essas finalidades. Quem é nosso Deus, e que tipo de serviço e de louvor deseja, sendo
Ele o que é? Essa é a pergunta que devemos fazer-nos a nós mesmos com seriedade e com a maior objetividade possível, quando estivermos realizando nossos exercícios religiosos costumeiros. Que diriam seus profetas, se entrassem em nossas igrejas tendo-se movido entre as pessoas, onde elas vivem, e ouvido seu clamor mudo por justiça e liberdade, e por Deus? Quais são as finalidades que nossos serviços religiosos se destinam a realizar? Podem as verdadeiras finalidades do culto estar sempre diante de nossos olhos, quando a repetição cria a rotina e a ordem das palavras e dos gestos se torna acostumada e, por fim, mecânica? Quanto êxito conseguimos ao tentar guardar-nos da suprema hipocrisia de pronunciar diante de Deus palavras que perderam seu significado imediato e urgente; de professar uma fé e um propósito que não estão seriamente relacionados com o nosso estilo de vida? A oferenda que Deus exige é uma vida justa, misericórdiosa e humilde diante dele. O culto, para ser aceito, deve ser o penhor e a oportunidade de tal oferenda.

Temos que agradecer aos profetas a grande percepção de que religião não é uma atividade especializada da vida humana, mas uma qualidade e atitude em todas as atividades, um modo de vida governado pela orientação do espírito humano para Deus. Essa resposta total exige, em verdade, as atividades especializadas da oração e do culto, mas não deve ser identificada com elas, e ainda menos com suas formas convencionais. A relação do homem para com Deus deve ser uma realidade de sua vida atual e consciente, no presente, embora, ao mesmo tempo, esteja em continuidade com sua herança espiritual. Isso significa que os termos éticos

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de sua resposta ao Deus vivo deve corresponder às condições diferentes de sua vida social, quando comparada com a de seus pais. Significa, além disso, que o grupo religioso que apenas conserva o ímpeto, em fé e prática, de uma época que já passou, e que não tornou seu próprio o pacto de seus pais, perceberá que o pacto não é mais válido, e o Deus vivo passou adiante, procurando um novo povo para si: «Farei também a esta casa, que se chama pelo meu nome, na qual confias... como fiz a Silo». «Põe-lhe o nome de Não-meu-povo; porque vós não sois meu povo, nem eu serei vosso Deus». (5).

A relevância dos profetas hebreus para a religião, em seu aspecto pessoal, como distinto do seu aspecto corporativo, encontra-se no que eles foram, mais do que no que disseram. Na estrutura de pensamento que haviam herdado, religião era a relação operante, por meio de funcionários, entre um povo e seu deus. Os profetas tentaram transformar essa religião corporativa, antes que conduzir os homens a uma aproximação de Deus radicalmente diferente e individual. Só Jeremias, talvez entre eles, caminhou longe bastante nessa nova rota para aperceber-se de que sua própria experiência pessoal era um prodígio. Mas a experiência religiosa de todos os grandes profetas possuía duas características salientes da religião pessoal: o senso de vocação para servir a Deus numa vida inteira de testemunho, e o sentimento de separação espiritual daqueles a quem se está ligado por muitos vínculos humanos, mas que não compartilham das mesmas profundas convicções.

Não há mais eficiente estimulante da religião pessoal do que o testemunho autobiográfico dos santos autênticos. O profeta hebreu tem uma palavra para nossa vida religiosa corporativa, que não podemos evitar de ouvir. Tem também isto para dizer, na carta viva de sua vida, se não de viva voz: «O Criador dos confins da Terra, o Senhor da vida e da História, falou-me uma palavra que não falara a nenhum outro. Ele atendeu à minha necessidade e tomou o meu lado, dizendo: Não temas por causa deles, pois eu estou contigo para te livrar. Ele me conhece, me vê e sonda meu coração. É mais forte do que eu, e prevaleceu» (6).

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Por mais que mudem nossos estilos de religião, como devem mudar, e por mais energicamente que enfatizemos o aspecto e as conseqüências sociais da religião, como os profetas ensinam que devemos enfatizar -- não podemos abrir mão do testemunho dessas vidas dedicadas, nem esquecer o encontro que cada alma tem com o seu Criador.


O Tema Principal da Teologia

Não pode ser julgada estranha a afirmação de que os oráculos desses embaixadores da Palavra, de quase oitocentos anos antes de Cristo, têm importância imediata para o pensamento teológico cristão do século vinte, embora, como já enfantizamos, esses homens não fôssem teólogos. A importância é dupla. Primeiro, porque o pensamento dos profetas, tanto quanto seu desenvolvimento no judaísmo pré-cristão, é necessário para compreensão de certos termos centrais da teologia do Novo Testamento. E, segundo, porque a intensidade especial de sua apreensão dos caminhos de Deus exige a atenção direta do teólogo moderno.

Para começar, a experiência desses homens deve ser levada em conta quando se toma a sério a concepção de Deus como um Ser pessoal. O Deus deles não é a divindade remota, impassível e abstrata, que se torna um dado de discussão intelectual. O Deus com que nos defrontamos nas páginas de Amós, Isaías e Jeremias só pode ser descrito como uma personalidade vigorosa e vívida, majestosa de fato, e divinamente «diferente» do homem; e, mesmo assim, vindo ao encontro dele, no intercâmbio de intelecto com intelecto, e de vontade com vontade. Sua santidade, isto é, sua realidade divina, é, não menos, porém mais enfatizada, ainda, pela percepção de sua presença ética dominante nos assuntos humanos, de seu propósito absoluto e potente, e das exigências peremptórias e inescapáveis de seu domínio moral sôbre os homens. Sua bondade e misericórdia, sua justiça e ira, não são dogmas recebidos por imposição de autoridade, nem deduções feitas a partir de uma doutrina central. Não são nem mesmo inferências feitas a partir da experiência imediata. São, antes, elementos da própria experiência. Deus é conhe-

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cido como um homem conhece o outro, com a diferença indescritível de que, neste caso, o «outro» é Deus.

É absurdo sugerir que o homem criou Deus à sua imagem, porque, para falar de Deus e a Deus em termos pessoais, ele depende, inevitavelmente, da analogia das relações humanas. Se Deus pode ser conhecido pelo homem deve sê-lo em termos da vida que vivemos, como pessoas. Talvez não cheguemos a ser demasiado atrevidos ao falar de Deus como a Pessoa Suprema, presente diante de outras pessoas -- embora nele vivamos e existamos, -- confrontando com sua vontade a nossa vontade, seu desígnio e propósito sendo nosso contexto espiritual. O paralelismo dos dois maiores mandamentos, e mesmo toda a vida e ensino de Jesus Cristo, declaram que a relação do homem com Deus é pessoal, à semelhanca de sua relação com o próximo, e que Deus pode ser conhecido mais diretamente quando em termos pessoais.

Um segundo ponto de relevância é a doutrina da revelação. É axiomático que o Deus do cristianismo falou «outrora, aos pais, nos profetas». E esse fato ainda não é tudo: o que ele falou tornou-se parte do depósito da revelação. Não obstante, a substância primeira da revelação do Velho Testamento, como de seu correspondente cristão, não é conhecimento a respeito de Deus mas conhecimento de Deus. Ela denota sua automanifestação como uma Presença poderosa e santa, no coração de homens dedicados, e no palco da História. Ele torna-se conhecido como a Razão última, que se expressa, não em mistérios, mas numa palavra, articulação inteligível da realidade. Ele é a vontade suprema, que dá significado à vida presente do homem, e importância à liberdade do homem para tomar decisões morais, condição de sua existência espiritual. Tal revelação é condicionada pela capacidade humana de compreender e prontidão em responder. É verdade pertinente, que deriva sua significação imediata do momento e circunstância de sua declaração, e da correspondente e correta resposta que exige dos homens. Não só revela Deus ao homem, mas também revela o homem a si mesmo. De tais momentos de revelação permanecem depósitos, até onde esses foram preservados, para serem acres-

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centados à soma total do conhecimento de Deus e do homem. Essa última é revelação em sua forma objetiva, mas secundária e derivada.

O entendimento mais profundo, no pensamento profético, do que constitui pecado é outro ponto de importância atual (7). Ainda hoje o pecado é demasiado geralmente considerado como transgressão de certos tabus arbitrários, estabelecidos pelo costume religioso. Mas atos ou fracassos particulares são pecados por causa de sua origem na alienação do espírito humano de Deus, e por causa de suas conseqüências, o dano feito a personalidades humanas e à vida espiritual comunitária. Pecado é o mal na alma que rejeita a bondade de Deus e sua misericórdia. No seu isolamento orgulhoso, ela recusa entregar-se à vida em comunidade. O pecado introduz um elemento de caos na ordem de vida divinamente estabelecida. Onde a religião afirma e une, o pecado nega e divide. Seu poder tremendo e terrível responsabilidade são medidos pela bondade divina, que ele frustra, e pela beleza divina, que ele desfigura.

O mundo está preparado para a proclamação, uma vez mais, da tremenda realidade do mal humano. O mito do progresso inevitável e perpétuo estourou, pelo impacto da Segunda Guerra Mundial, com a demonstração de que o homem autônomo não pode resolver os imensos problemas do bem-estar econômico e da ordem política. Ele é esmagado pelos seus próprios mecanismos e pelas torrentes sociais desencadeadas por sua indisposição de afirmar sua solidariedade com seus semelhantes. Os juízos de Deus estão manifestos no mundo de hoje. Chegou a hora de fazer os homens compreenderem que eles são justos juízos sôbre o pecado humano; que os homens sofrem essas conseqüências, inevitavelmente, porque são sêres moralmente responsáveis, que negaram sua própria natureza, ao recusarem responsabilidade pelo próximo. E isso se dá, embora eles tenham observado a ética aceita de sua sociedade; devemos, agora, «condenar como pecado muito do que, até aqui, temos louvado como sucesso». Pois a realidade do pecado está presente onde quer que a um espírito humano seja negado seu direito à liberdade, na vida de plena comunhão com Deus e o homem. Toda forma de ordem

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social deve ser julgada por suas conseqüências espirituais, e, de acôrdo com om esse juízo, ficará de pé ou cairá. A religião deve preocupar-se com a solução dos gritantes problemas políticos e econômicos de hoje, à luz de suas conseqüências humanas. Deve examinar, à luz de padrões éticos finais, os princípios e objetivos da ordem social; e afirmar a responsabilidade daqueles que detêm o poder, diante de Deus e de toda a sociedade. E deve salientar sempre a tremenda destrutividade do pecado, que renega essa responsabilidade, para o qual nenhum contrôle humanamente engenhado pode ser totalmente eficaz, e para o qual o único remédio é a aceitação franca dos retos caminhos de Deus.

A teologia teve sempre consciência da natureza fundamentalmente histórica da revelação cristã e, nos anos recentes, voltou a interessar-se pelo significado da História mesma. Nessa área do pensamento, é indispensável a contribuição dos profetas hebreus. Foram eles os primeiros a discernir, claramente, sentido moral, coerência e movimento na História, em função de um fim que transcendia o presente vivido. Conheciam o presente, não como simples conseqüência predeterminada do passado, mas como um momento significativo, que continha em si mesmo algo do passado e do futuro; e vibrante, pela presença nele do Deus vivo. Para eles o tempo tornava-se algo mais do que simples duração, e adquiria profundidade e significado pelos eventos que denotavam a presença e a atividade de Deus. A consciência histórica emergiu no reconhecido intercurso de uma vontade divina com as decisões moralmente responsáveis dos homens, e da correlação de um propósito divino com o destino humano.

Tinham assim os profetas um padrão de referências, moralmente adequado e constantemente relevante, pelo qual os complexos acontecimentos da experiência podiam ser coordenados, e os que fôssem importantes e determinantes, selecionados. Os homens, não mais precisavam de ser escravos da fatalidade, frustradas suas mentes pela ausência de significado ou aterrorizados seus espíritos pela tirania do mal.

O homem tem responsabilidade e liberdade para -- se quiser -- colocar-se ao lado do propósito divino para sua

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própria vida e para a vida de seu povo. Na interação de vontades, na disposição favorável ou recusa do homem à iniciativa do Criador e Senhor da História, é que se cria sua própria história.

Os profetas tinham em seu pequeno mundo, tanta razão, quanta nós temos, de atemorizar-se diante dos vagalhões das grandes convulsões sociais, diante do incontrolável poder do mal e do insolúvel e interminável problema do sofrimento e miséria humana. Também eles enfrentaram conflito social, tribulação econômica e guerra. Isto podem eles mostrarnos: a maneira de preservar nossa sanidade é reconhecer a realidade de Deus, e, desse modo, encontrar na experiência ordem e significado. Podem dar-nos uma nova fé para vivermos aliando-nos ao propósito criador de Deus de, por meio do longo processo histórico, tirar do caos a ordem e do mal o bem. Podem livrar-nos do cinismo e da impotência moral, dando valor à nossa vida presente, como esfera de escolhas significativas, que implicam na dignidade da responsabilidade moral e da liberdade pessoal.

A chave para o sentido de nossa experiência histórica é a verdade apreendida pelos profetas de Israel a respeito da natureza de Deus, de sua presença real na História e de seu propósito para a vida do homem. No meio das paixões e da confusão moral da guerra, só esta chave nos capacitará a ver as coisas realmente importantes na verdadeira proporção e, a buscada e defendida a qualquer preço. Podemos ver no terror e desolação da própria guerra não só uma revelação do juízo de Deus sôbre as escolhas erradas e os maus propósitos dos homens,
mas também apelos de Deus ao arrependimento, e encontrar vida em perdendo-a na devoção ao propósito criador, que é o sentido da vida. Ao invés de ser apenas um tumulto infindável, nossa história presente e toda a História humana tornam-se personalizadas. Isto é, a História adquire significado e ordem, para pessoas que fazem entre o bem e o mal escolhas reais, de conseqüências históricas, e que podem distinguir moralmente os acontecimentos momentosos, podem alcançar liberdade espiritual e viver na confiança de que a História não
desmentirá sua fé.

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Um último ponto de relevância dos profetas hebreus para a teologia cristã é sua escatologia. Por razões óbvias, seus oráculos têm pouca relação com a escatologia do indivíduo e da Igreja, os dois aspectos desse assunto aos quais a teologia cristã tem dado mais atenção. Sua importância vem do fato de eles introduzirem padrões éticos e religião na convicção do destino social. A escatologia social é hoje a racionalização da vontade de poder de uma nação, pelo mito de um Herrenvolk, ou é o menos vicioso, mas igualmente falaz, mito liberal do progresso perpétuo, ou a imagem mental do triunfo inevitável do proletariado, na luta de classes. Em nenhuma dessas há o reconhecimento, indispensável para a religião, de que o juízo deve preceder a salvação. Pois uma escatologia religiosa afirma que os valôres reais da História devem emergir, por fim, das relatividades e ambigüidades da História. Visto que a História tem sentido moral, ela move-se em direção a um fim, em que o juízo, a justiça e o amor de Deus terão sua plena e final realização. Num mundo como este, o Dia do Senhor será de trevas antes de vir a ser de luz. A verdade da escatologia, como a verdade da História, é a verdade a respeito de Deus e a respeito da estrutura espiritual da realidade. Essa verdade deve inevitavelmente demonstrar-se na história social. Deve realizar-se na justiça através do juízo, e para além do juízo, na vitória da bondade de Deus e de seu amor, na vida humana.

Isso significa que a comunidade, por meio de seus membros deve aceitar responsabilidade moral diante de Deus pela orientação e objetivo de sua vida comunitária. Pois é a comunidade permanente, mais do que o indivíduo, o portador da História e fiador do destino. O indivíduo tende a rejeitar sua parte nessa responsabilidade comum, por ter o sentimento de que a comunidade era antes dele e continuará a ser depois dele. Mas a consciência histórica viva, necessária a cada comunidade vital e cônscia de si mesma, só pode existir pela percepção comum de propósito social e fins significativos, tanto quanto de começos significativos e experiência histórica. Existe a necessidade de uma escatologia religiosa da comunidade, para colocar-se lado a lado com sua história.

Nessa escatologia, os princípios e valôres que dirigem e motivam a vida social se tornarão claros e vívidos. Mas --

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como os profetas insistem ainda -- eles não devem ser relegados a um futuro remoto, pelo qual a responsabilidade possa ser lançada aos ombros de uma geração por vir. Eles não podem ser reais, se não forem reais agora. O juízo da eternidade não pode ser proposto para o fim do mundo, concebido como o fim de uma estrada além do horizonte. Vivemos e experimentamos a realidade sempre no tempo presente, um presente eterno em que os princípios morais que devem emergir no FIM são já de suma importância. Daí porque devemos tirar a escatologia do ar, como fêz Amós, e aplicá-la às crises sócio-históricas particulares da experiência. Devemos reconhecer que a colheita começou enquanto o trigo e o joio ainda crescem juntos no campo. E assim, enquanto a justiça e a misericórdia do eterno se realizam na experiência, cada dia se torna o Dia do juízo.


A Obra do Pregador

Foi enfatizado anteriormente neste livro que os profetas eram algo mais do que pregadores. Não obstante, sua exposição de seus próprios oráculos primários tinha muita coisa em comum com a pregação autêntica, sendo esta a exposição séria da verdade cristã. A relevância deles para o pregador, em primeiro lugar, é essa atitude responsável para com a mensagem. Ela contrasta penosamente com a trivialidade ou indiferença apática, o exibicionismo ou a eloqüência fácil, que falsifica a clara e urgente proclamacão de uma palavra de Deus: «O meu povo está sendo destruído, porque lhe falta o conhecimento» (isto é, o verdadeiro conhecimento de Deus; Os 4.6). Oséias e os mensageiros seus colegas não buscavam proeminência ou aplauso; não adulavam os homens ricos e de posição, nem acomodavam sua mensagem ao que o povo queria que dissesse. Eram porta-vozes, que não se importavam consigo mesmos, de uma palavra que os possuía e não podia ser retida, e estavam conscientes da sublimidade dela.

Com respeito ao tema central da pregação, voltamo-nos para as escrituras proféticas em busca de muitas mensagens iluminadoras e comoventes, principalmente de mensagens sôbre justiça social, responsabilidade nacional, a interpretação religiosa dos acontecimentos históricos de nossa época, e sôbre

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evangelização. Amós e Isaías, para não mencionar outros, são vozes que clamam, exigindo para os pobres e deserdados a justiça e a compaixão que lhes eram negadas. Suas palavras não pertencem exclusivamente ao seu tempo. O Deus deles e nosso derrubará de seus tronos os poderosos e exaltará os de classe baixa. Mas o homem que proclame isso do púlpito deve fazê-lo no desempenho de um papel não menor do que o de porta-voz do eterno. Deve ser o mesmo, quando o pregador moderno usa um texto profético sôbre a responsabilidade nacional diante de Deus, pelas decisões políticas de grave importância e pelos princípios e motivos operantes em nossa sociedade. Podemos encontrar nos escritos dos profetas não só mensagens relevantes para hoje como também entendimento e sabedoria para a apresentação delas. E eles indicam o caminho para uma teologia da História que nos pode dar aquela visão do propósito de Deus para o mundo, sem a qual pode perecer qualquer civilização digna desse nome.

Hoje, como em todas as épocas, a mensagem do evangelista deve começar com um apelo ao arrependimento. Dos profetas aprendemos que deve haver arrependimento do pecado social e dos defeitos da moralidade aceita, assim como deve haver arrependimento pessoal. Devemos retroceder da delinquência moral para as causas ambientais que a promovem, sem, contudo, ignorar a responsabilidade parcial do delinqüente. Na verdade, devemos retroceder até aos mores convencionais e aos princípios plasmadores da própria sociedade... a luta egoísta e intestina por bens materiais e pela gratificação dos desejos, por posição e poder e, e o e o materialismo e o ateísmo pratico que predominam em tantos aspectos de nossa vida moderna. Esta é a palavra do Senhor a Zorobabel, por intermédio de Zacarias: «Não por fôrça, mas pelo meu espírito» (11), literalmente: «não pelo poder material nem pela fôrça física», que são as colunas gêmeas do templo deste mundo.

Junto com o apêlo ao arrependimento de um modo de vida errado, vem a exortação para crer e viver no caminho de Deus, e a garantia de que o que Deus fêz e fará possibilita tal coisa ao homem. Esse caminho corresponde à realidade moral e espiritual com que o homem tem de aviar-se, acima de

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tudo, num universo cujo Criador não é Baal nem Marduque, Mamon nem Marte, mas o Deus de Moisés e dos profetas, o Deus e Pai de Jesus Cristo. Há um remédio divino e uma suficiência divina para a corrupção da vida do homem e a impotência de seu espírito: «O eterno Deus, o Senhor, o Criador dos fins da Terra, não se cansa nem se fatiga. Não se pode esquadrinhar o seu entendimento» (12). Do ponto de vista do materialismo e do orgulho egocêntrico do homem, a religião dos profetas (e o cristianismo) é absurda. Os profetas apelam-nos para que creiamos, com sua mesma certeza apaixonada, que é o caminho do mundo o absurdo, porque esse não é o caminho da Justiça Eterna e da Misericórdia Eterna. «Poderão correr cavalos na rocha? E lavrar-se o mar com um boi?... No entanto haveis tornado o juízo em veneno, e o fruto da justiça em alosna» (13).

Oséias, particularmente, introduz o amor redentor na mensagem profética e a voz do Segundo Isaías vibra de exultação com a «boa nova» de Deus. Se vamos pregar o Evangelho, devemos amar as pessoas por si mesmas, com um pouco de amor de Deus por elas: «Como te deixaria, ó Efraim? Como te entregaria, ó Israel? Meu coração está comovido dentro de mim, as minhas compaixões uma a uma se acendem» (14). E devemos comovernos diante da maravilha do poder emancipador e renovador de Deus: «Tu que anuncias boas novas... ergue a tua voz fortemente; levanta-a, não temas, e dize às cidades de Judá: Eis aí está o vosso Deus» (15).


A Crise Cultural

Foi enfatizado acima que os males sociais denunciados pelos profetas eram vistos por eles como exemplos concretos do estado de espírito dominante em sua sociedade, espírito que ia de encontro à natureza essencial do homem e ignorava a presença dominadora de Deus. Esse espírito e a cultura que ele produziu eram frutos da religião da natureza, por meio da qual os homens tentavam, então, tornar os poderes invisíveis servos de seu interesse egoísta. A magnitude do que os profetas realizaram pode ser percebida pelo fato de que sua religião produziu, para substituir aquilo, a cultura espiritual do judaísmo, uma estrutura de idéias coerente e

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apaixonadamente sustentada, que se tornou normativa para a vida social, e diretiva na História.

Dizer que esses homens são relevantes para a crise cultural de hoje é, portanto, em primeiro lugar, reconhecer sua importância suprema numa das mais notáveis tradições espirituais da humanidade. É estar, também, em harmonia com o reconhecimento crescente de que a cosmovisão espiritual, como o cristianismo oferece, é indispensável ao homem moderno. Pois só no meio de um povo que compartilha profundas convicções éticas e religiosas pode existir uma cultura viva e formativa. Falamos freqüentemente das realizações da civilização como se compreendessem primariamente os edifícios, as máquinas e os mecanismos que os homens fazem e usam, em vez da qualidade humana desenvolvida daqueles que os usam, e de seus acrescidos recursos intelectuais, morais e espirituais. Mas os homens mesmos é que são ou não civilizados. Sua cultura, as realizações e as posses não materiais de sua mente e espírito, seu bom êxito em encontrarem um
modo de viver juntos, de acôrdo com o que de melhor exista neles... isso é o que realmente importa. Todos os homens que pensam sabem que há aqui um atraso, que se pode tornar fatal. O homem estendeu seu contrôle sôbre o meio ambiente, mas não aprendeu a controlar-se a si mesmo; tomou nas mãos podêres terríveis, antes de ter atingido a estatura espiritual que garantiria o uso deles para fins úteis. Como disse alguém: «A vida moderna é um girar constante ao redor de um vácuo
central».

Nesta área da vida, o valor e eficiência da religião na vida social é da mais alta importância. O ateísmo, materialismo, irracionalidade, confusão moral e tensão social básicos da vida de hoje, no mundo ocidental, são mais do que suficientes para explicar nossa pobreza e impotência cultural. Entre a vasta maioria de nosso povo há pouca preocupação com as questões realmente importantes, que deveriam determinar nossa política social, e ainda menos acôrdo a respeito delas; para que vivemos, e quais são as satisfações permanentes da
vida; a prioridade e valôres; a fôrça motivadora correta da atividade econômica; a base moral dos direitos e deveres civís; a liberdade individual ; a extensão e os limites do poder

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estatal, essenciais no passado e para o futuro da democracia (15a). As pessoas se preocupam mais em ganhar a vida bem, e quase forçosamente, dadas as presentes condições. Numa grande guerra, somos tão envolvidos com a preocupação de organizar e conseguir a vitória, que pouco meditamos sôbre o que faremos com esta vitória, que seja de valor correspondente ao custo de consegui-Ia.

De um modo ou de outro, os filósofos morais e políticos, os artistas e poetas, os escritores e pregadores, que são os arquitetos reais da civilização, devem encontrar e proclamar um entendimento espiritual da vida. Este deve ser adequado à nova situação criada para a sociedade humana pela industrialização, os meios mundiais de comunicação e as guerras modernas. Os meios devem subordinar-se aos fins corretos da
vida. Devemos reconhecer que os problemas mais políticos e econômicos são fundamentalmente problemas humanos e exigem uma solução humana. Devemos perceber que o destino fundamental de um sistema econômico, que mantém tantos na pobreza e na insegurança é sua negação dos valores morais e da fraternidade humana. Essa negação cria também a anarquia (15b) internacional que torna inevitável
a guerra de tempos em tempos. O objetivo social deve ser esclarecido; é o estabelecimento dos direitos e deveres de todos os homens, numa estrutura de relações sociais, apropriadas para expressar o fato de que todos foram criados por Deus para viverem como irmãos. O principal impulso da atividade econômica não pode ser, corretamente, o interesse egoísta, se os mandamentos supremos exigem que o homem ame a Deus com todo o seu ser, e ao próximo como a si mesmo.

O que os profetas de Israel disseram, há muito tempo, quando condenaram a maneira deste mundo e apontaram aos homens a cidade de Deus, é direta e profundamente relevante para nós. Eles preocupavam-se com os problemas políticos e econômicos, por causa de suas conseqüências humanas. Desnudavam os fatos morais envolvidos à luz da vontade de Javé, como o fato supremo com que o homem tem de avir-se nesta vida. Atribuíam as crises da sociedade à ordem inversa das coisas materiais e espirituais, ao interesse egoísta e à vangloria do homem diante de Deus, e à renegação de sua própria natureza ao negar o parentesco humano.

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O papel dos profetas era mais do que mera denúncia. O fruto da religião que eles afirmavam é igualmente significativo para a nossa situação. Ela oferecia uma rocha de segurança para o espírito dos homens, e um coerente significado e orientação para a vida. Oferecia um motivo moral no sentido de uma obrigação absoluta, por causa de Deus, de realizar na sua justiça verdade e amor; e uma fé criadora em que o propósito de Deus para o futuro do homem era bom. Essas coisas, mais uma vez, pode a religião contribuir para a cultura. O homem anseia pois a segurança contra a penúria e o medo, porque sem confiança ele não pode simplesmente viver, nem manter sua sanidade. Deve ter algo que seja firme para apoiar-se, algum escudo contra a morte. Eis por que ele busca proteger-se com salvaguardas e bens. Mas, como Jesus disse ao homem que pensava ter encontrado segurança nos celeiros maiores, a vida não tem nenhuma segurança final, à parte de Deus. Disse Jeremias: «Bendito o homem que confia no Senhor» -- fundamento da vida, seu eixo, sua integração (17). Eis o que falta ao homem moderno e do que necessita, talvez, acima de tudo.

Além disso, o cristianismo oferece ao homem ocidental, em lhe relembrando sua herança, uma interpretação do valor e do significado da vida pela qual possa encontrar de novo o propósito que sabe ter perdido. Pode dar-lhe, como deu a seus pais, o supremo poder motivador de uma convicção de obrigação absoluta para com o que é direito, porque Deus é Deus. E na bondade e no propósito histórico do Deus dos profetas e de Jesus Cristo, o homem pode encontrar, de novo, a fé em que a bondade é real e deve ser realizada na terra; e de que ela pode suplantar o mal poderoso e violento de que o homem é a vítima, parcialmente voluntária e parcialmente rebelde. Só homens que crêem na bondade de Deus podem discernir seu propósito e construir para um futuro invisível, criando de novo a vida cultural de seu povo.


A Luta Democrática

A democracia, como sistema de governo, tem assumido muitas formas, e vários mecanismos têm sido inventados, na

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tentativa de traduzir em realidade a idéia democrática. Em nenhuma época foi a idéia democrática completamente realizada, desde o tempo da democracia ateniense, que descansava nos ombros de escravos, até aos estados modernos, em que os direitos políticos universais são, em grande parte, anulados pelas desigualdades economicas. Falamos da luta democrática, porque a luta do homem por uma vida mais plena
é sempre uma luta pela verdadeira liberdade pessoal, na vida
espontânea de uma comunidade real. Hoje há uma guerra visível entre os defensores e os inimigos da liberdade humana.

Que é a idéia democrática? É a convicção de que a liberdade pessoal é compatível com a vida ordenada da sociedade e, na verdade, só nela pode ser encontrada; de que a ordem social é boa ou má, segundo permita ou não oportunidade de verdadeira liberdade para todos os cidadãos. Ela sustenta que o melhor governo é o governo de si próprio, que a autoridade política é recebida por delegação da comunidade.
Afirma que a igualdade intrínseca de todos os cidadãos, como
sêres humanos, é mais importante do que suas diferenças em
capacidade, e é o fundamento correto da ordem política. A democracia sustenta que o Estado foi feito para o homem e não o homem para o Estado, e que, portanto o Estado usa sua autoridade corretamente só quando age no interesse de todas as pessoas, e do povo como um todo (17a). Afirma que os homens podem e devem viver juntos como companheiros, que podem trabalhar juntos para um objetivo comum, e podem reconciliar suas diferenças dentro dos limites estabelecidos
pela ética comum, sem recorrer à violência. Declara que o único limite próprio da liberdade pessoal é o que interfere com os direitos iguais dos outros, e que todos os direitos trazem correspondentes deveres para com os outros, e para com o bem social.

É uma simples questão de testemunho da História dizer que o cristianismo tem contribuído muito para o desenvolvimento da idéia democrática e de suas instituições. Suas doutrinas da igualdade de todos os homens diante de Deus, da fraternidade humana, do poder libertador do Evangelho, da subordinação de todas as autoridades terrenas a Deus e à sua justiça, e da propriedade como mordomia, têm dado impulsos

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sempre novos ao movimento democrático. Muito disso entrou no cristianismo vindo dos profetas hebreus, cujo espírito o cristianismo levou a um novo cumprimento, e cujas palavras conservou em suas Sagradas Escrituras. Esta é a primeira razão por que os profetas são relevantes para a democracia moderna: eles pertencem à sua genealogia espiritual, graças à confluência das tradições hebraico-cristã e clássica.

A sociedade israelita na época dos reinos, não era, por certo, uma democracia; a não ser de maneira muito limitada, no fato de que o rei se aconselhava com os anciãos e, ocasionalmente, se defrontava com uma assembléia do povo. Mas os profetas contribuíram com o conceito de uma sociedade em que todos os cidadãos sejam, em essência, de uma só família, em que cada homem tenha igual direito à justiça, e em que a autoridade social esteja sujeita a uma lei divina de retidão, o propósito da qual seja o bem-estar ou «salvação» de todos. Como já vimos antes, eles idealizavam a sociedade tribal mais simples do passado, com sua liberdade, seu senso de parentesco, seu sistema de de propriedade coletiva e sua e sua administração representativa das praxes e do direito. E, ainda, foram os campeões do povo contra o despotismo e a opressão. Não pediam compaixão, exigiam justiça, em nome de Deus. Além disso, proclamavam a sociedade pactual, em que o propósito de Javé seria realizado numa comunidade de companheiros, em que o coração do rei não se exaltaria acima de seus irmãos; em que, ao contrário, ele governaria de acôrdo com os estatutos divinos que tinham sido dados à comunidade (18). E, em suas visões do propósito de Javé para o futuro deles, os profetas colocavam diante dos olhos dos homens a esperança de um tempo, mais nobre e mais belo, quando a vitória da fé de Israel entre as nações libertaria todos os homens da penúria, do mêdo e da guerra (19).

Dois outros pontos podem ser acrescentados. A ativa apreensão, pelo sentimento, da participação do indivíduo na vida corporativa é algo que os profetas ajudaram a reviver, embora tivesse sido sua herança em Israel. Nosso individualismo excessivo nos privou disto. Mas é essencial para a vitalidade cultural e para o patriotismo que os cidadãos de uma democracia sejam capazes, como o são aparentemente muitos

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dos cidadãos dos estados totalitários, de compreender com sentimento profundo sua vinculacão ao corpo político, e de encontrar, assim, unidade nacional de espírito.

E, ainda, a coisa essencial na liberdade do indivíduo é a consciência moral responsável de um homem ou mulher, como pessoa. Foi por meio da experiência de homens como Oséias e Jeremias que entrou em nossa tradição o conhecimento da liberdade interior do espírito, que cria a exigência das liberdades civil e religiosa. A História registra que a luta pela liberdade de consciência e de culto é parte e parcela da luta secular pela plena liberdade democrática, e com ela sobrevive ou desaparece.

Esses impulsos, que entraram em nossa tradição democrática liberal, vieram dos profetas de Israel, por meio do cristianismo. Mas é mais fácil ver que os profetas são relevantes, de modo geral, para os nossos modernos problemas sociais, do que de modo mais específico. Algumas sugestões, porém, podem ser feitas. Podemos aprender, por um lado, que «slogans» da democracia não são suficientes. Se nos preocupamos realmente com liberdade e justiça, devemos julgar o valor e eficiência de nossas instituições atuais por seus resultados concretos, em termos humanos, para todo o povo. Temos ainda entre nós os deserdados e subnutridos, embora nossa economia possa produzir o suficiente para todos. A diferença entre eles e os prósperos não é, em geral, devida à superioridade moral, nem mesmo à maior capacidade mental destes. É devida à aceitação de condições e à operação de fatôres que uma democracia ativada pode alterar.

A justiça divina exige que sejam alteradas. Hoje, como no oitavo século antes de Cristo, o sistema econômico, existente divide o povo em grupos com interêsses conflitantes. Distribui seus benefícios não de acordo com as necessidades nem com os méritos dos homens. Dá a indivíduos poder social sem responsabilidade social, e fixa o coração dos homens em objetivos materialistas. Nossa democracia Política é anulada em grande parte, pela ausencia de uma correspondente democracia econômica. Um homem não é livre, a menos que tenha direito aos meios de subsistencia, e participe no governo de sua vida econômica, tanto quanto na escolha daqueles que fazem e administram as leis. Ler os livros proféticos é sentir o que só podem ignorar aqueles cujos interesses são garantidos dêsse modo: que a justiça social e econômica é a preocupação da religião, e cada homem é guarda de seu irmão. Nesta época moderna, isso só pode significar que os dirigentes das imensas e impessoais empresas industriais, financeiras e comerciais, devem ser, primariamente, responsáveis perante a comunidade como um todo, de servir ao bem-estar comum (19a).

Finalmente, podemos receber dos profetas aquela profundidade de seriedade moral que pode revestir a idéia democrática com a convicção da justiça eterna. Deus está operando na História para criar para si um povo, em cujo coração estejam suas leis. Formas particulares de sociedades e governo prosperarão ou perecerão segundo encarnem a justiça e o direito, sustentem a dignidade pessoal e promovam a verdadeira comunidade entre os homens. Deus não está fora da luta democrática mas dentro dela. Só se lutar para encarnar cada vez mais plenamente os caminhos do Reino de Deus, poderá a democracia cumprir suas promessas e sobreviver.


CAPITULO X

(1) Is 31.3.
(2) Os 4.9.
(3) Jr 26.8.
(4) Ver acima, cap, lX, pp 198-200. O fato de «Exequiel» fazer isso é um traço da diferença entre esse livro e as dos profetas «clássicos».
(5) Os 1.9.
(6) Cf. Jr 4.8; 11.20ss; 20.7ss.
(7) Cf. cap. VI, pp 126-130.
(8) John Line, em «Towards the Christian Revolution», editado por Scott e VIastos, p 47.
(9) Cf. escritores recentes, como Berdyaev, Tillich, Dodd, Mac- murray, Reinhold Niebuhr.
(10) Os4.6.
(11) Zc 4.6.
(12) Is 40.28.
(13) Am 6.12.
(14) Os 11.8.
(15) Is 40.9.
(15a). Um povo que não se preocupa com as questões realmente importantes e que determinam política social, e que confia a tomada de decisão, que deveria ser sua, a supostos representantes, políticos profissionais ou ao Estado, sufoca a democracia, e abre o flanco à corrupção. O Estado não precisa da democracia para existir, aliás, se opõe a ela, na medida em que usurpa dos cidadãos o direito alienável de decidir diretamente nos assuntos que lhes dizem respeito. A democracia, por sua vez, só é plenamente exercida na ausência do poder coercitivo do Estado. [Nota do Editor da Edição Eletrônica.]
(15b) Aqui, como nas demais ocasiões nesse livro, a palavra anarquia sempre é óbvia e exclusivamente utilizada no sentido de desorganização ou bagunça, nunca como acracia, ou seja: ausência de governo, que é o sentido etimologicamente correto. Saiba mais sobre anarquia significando acracia aqui. [Nota do Editor da Edição Eletrônica.]
(16) Nos caps. VI e VIII.
(17) Jr 17.7.
(17a) Como isso NUNCA acontece, elimine-se o Estado! [Nota do Editor da Edição Eletrônica.]
(18) Cf. a formulação do ensino profético, em Dt 17.14-20.
(19) Cf. Mq 4.1-5.
(19a) O vaticínio sobre essas pessoas já foi dado por Deus em Amós 4:1-3 e em Jeremias 22:18-19. [Nota do Editor da Edição Eletrônica.]


Fim da quinta parte e do livro «Profetas de Israel: Comunais, Acratas e Anticlericais».


Primeira parte: http://www.oocities.org/projetoperiferia5/profetas1.htm
Segunda parte: http://www.oocities.org/projetoperiferia5/profetas2.htm
Terceira parte: http://www.oocities.org/projetoperiferia5/profetas3.htm
Quarta parte: http://www.oocities.org/projetoperiferia5/profetas4.htm
Quinta parte: http://www.oocities.org/projetoperiferia5/profetas5.htm


 

Edição Eletrônica pelo Coletivo Periferia
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