PROFETAS DE ISRAEL COMUNAIS, ACRATAS E ANTICLERICAIS

por R.B.Y.Scoot




título original em inglês: The Relevance of the Prophets
título da edição impressa: Os Profetas de Israel -- Nossos Contemporâneos

Tradução de Joaquim Beato


Edição Eletrônica: Projeto Periferia
http://www.oocities.org/projetoperiferia5/profetas1.htm





PREFÁCIO DO AUTOR


Escrever eu esta obra foi resultado da sugestão de meu amigo, Professor Gregory VIastos, de que estava havendo necessidade de um livro sôbre os profetas hebreus, que demonstrasse sua importância atual para a religião, especialmente para a responsabilidade da religião na luta pela justiça, liberdade e solidariedade humana. Já em agôsto de 1937, havia eu pronunciado uma série de preleções sob o título dêste volume, para o Instituto de Verão para Clérigos, no MacDonald College, de Quebec, e este volume segue o esbôço e até certo ponto incorpora a substância dessas preleções. O livro pode, de fato, apresentar sinais de ter sido composto a intervalos, por um considerável período de tempo de uma vida atarefada.

Esta interpretação da religião profética e de sua relação com nossos problemas é destinada aos ministros e leigos que não temem o sério estudo crítico da Bíblia, mas não estão particularmente interessados nas discussões mais técnicas, que levam os especialistas do estudo da Bíblia a suas conclusões. O resultado do estudo crítico não é destruir, mas tornar claro o valor espiritual e a autoridade moral das Escrituras. O autor tentou expor em termos positivos o significado e o valor dos escritos proféticos hebraicos, e indicar sua profunda importância como uma parte que são de nossa herança religiosa, parte essa que tem o constante frescor de uma fonte perene.

Se houver algo no que aqui vai que seja nôvo para os especialistas e professôres de Velho Testamento, será muito pouco. O autor tem, no entanto, a esperança de que a estruturação e a exposição do material sejam suficientemente distintivas para garantir sua inclusão entre os livros a respeito de profecia referidos nas salas de aulas e consultados nas bibliotecas dos seminários.

Desejo registrar meu reconhecimento pelo interêsse e ajuda da parte de meus colegas, o Reitor G. G. D. Kilpatrik

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e o Sr. Robert George, que leram o manuscrito inteiro; e também de meu colega, Professor Gerald Cragg e de meus antigos professôres, Dr. Richard Davidson e Professor W. A. Irwin, que me concederam o benefício da crítica de alguns capítulos salteados. Sem a constante ajuda e encorajamento de minha espôsa, este livro nunca teria sido completado.

R.B.Y.SCOTT


PREFÁCIO DO TRADUTOR


Nestes dez anos de contacto com a literatura especializada a respeito dos profetas de Israel, não encontrei nada que superasse a presente obra como exposição da religião profética, tanto em sua radicação no solo fecundo do mosaísmo e de suas reinterpretações confessionais e teológicas mais antigas, quanto em sua significação para os nossos dias, tão turbulentos, tão revolucionários, tão sob o persistente impacto da secularização, distantes dos dias de Amós, Oséias, Isaías e Miquéias, mas igualmente necessitados de uma nova e relevante reinterpretação teológica de nossa herança cristã, que fundamente uma nova visão da História, uma nova e dinâmica ética social, e torne poderosamente atuantes e abertas à transformação as formas e estruturas estabelecidas de nossa-religião.

O título em português, embora chame a atenção para o objetivo mais imediato do livro, não nos deve levar a esquecer, que a contemporaneidade dos profetas de Israel é demonstrada pelo autor com base num trabalho sólido de história e exegese, em que transparece a segurança de quem está perfeitamente em dia com o que de melhor se tem feito no âmbito de sua especialidade. O leitor sério não poderá deixar de lado os cinco capítulos iniciais, em que são versados com clareza e economia os aspectos mais técnicos do estudo dos profetas. Eles constituem uma introdução preciosa e necessária ao debate construtivo e iluminador que, neste campo, devemos aos métodos da crônica histórica e literária, da história das religiões, da história da tradicão e da história e crítica da forma. Resumem, realmente, de maneira competente e segura, para comodidade do leitor, uma verdadeira biblioteca especializada.

Se, por influência desta obra, o leitor «descobrir» os profetas e for tomado do desejo de aprofundar os aspectos mais técnicos de seu conhecimento deles, poderá consegui-lo

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lendo, além de Skinner(*), já traduzido pela ASTE (1), as obras de, por exemplo, T. H. Robinson (2), Guillaume (3), Neher (4), Heschel (5) e Lindblom (6). Se sentir necessidade de pôr-se ao corrente dos problemas específicos de «introdução» poderá ler, com proveito, Bentzen (7), Robert & Feuillet (8) e Weiser (9).

Quero consignar aqui meus agradecimentos públicos aos
Revs. Júlio Andrade Ferreira e Aharon Sapsezian, ex-presidente e secretário executivo da ASTE, durante o longo tempo que
me custou concluir esta tradução, pela paciência, compreensão e companheirismo que sempre me demonstraram. Ao
Professor Dr. Ziba Alves de Assis agradeço os retoques que
garantiram o teor de vernaculidade que se pode notar nos
capítulos 1-5, trabalho que lhe demandou tempo e boa vontade, sem nenhuma compensação. Sou grato aos seis jovens
datilógrafos que, sucessivamente, me ofereceram, menos pela
remuneração que por dedicação, o serviço de sua especialidade. Finalmente, é de justiça agradecer ao Seminário Presbiteriano do Centenário a liberdade de realizar, dentro do conceito de dedicação exclusiva ao ensino teológico, este trabalho de tradução que tanto me enriqueceu, como cristão e como professor, e espero seja de alguma valia para o enriquecimento não só do ensino em nossos seminários, como também de toda a Igreja no Brasil.
Vitória, novembro de 1966.
Joaquim Beato

As notas e citações bíblicas aparecem em ordem no fim do livro.

NB. As citações da Bíblia são tiradas da edição revista e atualizada, da Sociedade Bíblica do Brasil, à qual conconsignamos nossos agradecimentos. Os pouquíssimos casos em que isso não se dá são indicados ao leitor.

As abreviaturas usadas são tão óbvias que dispensam explicação.



CAPITULO 1


QUE É PROFECIA?


Para os objetivos dêste estudo, o termo «profecia» é tomado no sentido de «a obra dos profetas hebreus», cujos registros literários se encontram nas páginas do Velho Testamento. A profecia hebraica não foi nem é inteiramente única, mas continua incomparável em sua qualidade espiritual e valor permanente para a religião. «Os profetas», por excelência, são os profetas de Israel e suas palavras são o padrão da profecia, embora cheguem a nós na linguagem de um mundo remoto e antigo. De fato, só por um grande esfôrço de imaginação, e assim mesmo imperfeitamente, podemos recapturar o sentimento do instante em que, pela primeira vez, um profeta falou a seus contemporâneos a palavra que Deus lhe dera para falar.

Um dos resultados dos estudos bíblicos intensivos do último século, simultâneo com o tirar do esquecimento notáveis remanescentes das civilizações que circundaram e antedataram Israel, é esse reconhecimento de que os profetas são primariamente figuras do passado. Sua mensagem -- ou o que dela sobrevive -- foi dirigida a homens de seu próprio tempo nas condições e circunstâncias em que viviam, e em linguagem que só os homens de sua própria nação e época poderiam compreender plenamente. É farta de figuras de linguagem e de alusões contemporâneas obscuras para nós; não, como alguns imaginam, porque profecia seja uma língua de mistério esotérico, mas principalmente porque nosso conhecimento dêsse tempo antigo está longe de completo.

Os profetas eram homens de Israel e porta-vozes do Deus de Israel à nação de que eram membros. Teriam fica-

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do espantados ao saber que suas palavras seriam preservadas em forma escrita por muitos séculos, e seriam lidas em lugares de culto, neste inimaginável mundo moderno -- em novas línguas, de fato, mas com o contexto local e temporal inalterado. Sentir-se-iam descoroçoados ao ouvir que alguns, em nossos dias, seriam incapazes de distinguir a Palavra viva de seu contexto incidental; que em vez de reconhecerem, nas profecias deles, a mensagem intemporal de Deus à mente e consciência, as usariam como um manual de adivinho para predizer o futuro. Pois a relevância da mensagem dos profetas, para nós, está em algo diferente de predição e adivinhação que os profetas mesmos denunciavam tão severamente: «Desamparastes o teu povo, a casa de Jacó, porque os seus se encheram da corrupção do Oriente e são agoureiros como os filisteus» (Isaías 2.6).


Profecia e Predição não são Idênticas


No uso corrente hoje o termo «profecia» é mais ou menos sinônimo de «predição do futuro». Esse é, de fato, um dos sentidos que os dicionários dão à palavra. Alguns cristãos crêem ardentemente, e muitos outros, vagamente, que a Bíblia prediz o curso dos acontecimentos presentes e futuros, de modo que um intérprete hábil pode aprender de suas páginas os segrêdos da história não escrita ainda. Os mestres que pretendem ter essa habilidade encontram seguidores prontos entre os incautos, que são levados, por uma curiosidade natural e pela fascinação do misterioso, a imaginar que podem cruzar a entrada proibida e penetrar nos desígnios do Altíssimo. Há muitos entre esses, na verdade, cujas virtudes cristãs compensam de algum modo suas idéias bizarras e superstição inconsciente. Mas tal uso das escrituras proféticas não passa de uma revivescência da antiga prática pagã de adivinhar o futuro, sem atenção ao aviso: «Não vos compete conhecer tempos ou épocas que o Pai reservou para sua exclusiva autoridade» (At 1.7). Uma percepção da natureza crítica dos tempos em que vivem leva os homens a considerarem sua própria época como o comêço do Fim, a meta final de tôda a História. Mas as guerras e rumores de guerras, a multiplicação da ciência, a apostasia e o mundanismo, que eles apontam como sinais do Fim poderiam com igual ou melhor razão ser apontados aos homens de muitos períodos anteriores.

A História testifica que isso, realmente, já tem acontecido. A especulação milenial tem aparecido, de tempos em tempos, dentro da comunidade cristã desde seus dias mais antigos, pela própria razão de que ela é sugerida por certas passagens escatológicas e apocalípticas das Escrituras. Inácio, Policarpo, Justino e Irineu, no segundo século a.D., criam que estavam vivendo nos últimos tempos. No terceiro século, Hipólito declarou que o fim viria quinhentos anos depois do nascimento de Cristo. No quarto século, Lactâncio ensinava que o Juízo estava próximo, como Oto de Freising o faria oitocentos anos mais tarde. O fim do primeiro milênio da era cristã era esperado por alguns como o fim do mundo. Pouco antes de 1260 a. D., Joaquim de Flora, em «O Evangelho Eterno», estabeleceu aquêle ano para a inauguração da nova «Era do Espírito». Militz de Kromeriz fixou igualmente os anos de 1365 a 1367 e, no período da Reforma, Hoffman, o anabatista, estabeleceu a data de 1533. Em tempos mais recentes, mas com igual futilidade, Guiness, em «Light for the Last Days» («Luz para os últimos Dias», 1886), designou o ano de 1930; Russell, em «Millenial Dawn» («Alvorada Milenial», 1907), ano de 1914; e Bell Dawson, em «The Time Is At Hand» («O Tempo Está Próximo», 1926), o ano de 1934 (3).

Se as passagens bíblicas em que esses escritores basearam suas predições forem examinadas, ver-se-á que são tomadas principalmente de Daniel e Apocalipse, juntamente com secções dos três primeiros evangelhos e das epístolas, onde linguagem e idéias semelhantes são encontradas. Por outro lado, quase não fazem qualquer referência, exceto no caso de breves passagens messiânicas, à coleção de livros proféticos que forma a segunda das três divisões da Bíblia hebraica, que é nosso Velho Testamento. É essa divisão, contudo, que contém os livros dos três profetas «maiores», Isaías, Jeremias e Ezequiel, tanto quanto o «Livro dos Doze,» isto é, os Doze Livros proféticos «menores» ou mais curtos. O livro de Daniel não é, na Bíblia hebraica, incluído na coleção inti-

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tulada «Os Profetas»; está na terceira divisão conhecida como «Os Escritos», uma coleção mais variada.


A Profecia Deve ser Distinguido da Literatura Apocalíptica


A verdade é que Daniel e Apocalipse não são, absolutamente, no sentido original, escritos proféticos. Pertencem, juntamente com os outros escritos semelhantes, mencionados acima, a um tipo distinto, conhecido como literatura «apocalíptica», que começou a ser escrita pelos judeus, quando a voz da profecia própria fraquejou e caiu no silêncio. A «apocalíptica» tem alguns traços em comum com a profecia. Deriva, em grande parte, do material profético mais antigo, e pode, na verdade, ser considerada uma forma tardia e especializada de profecia escrita, tratando, de modo nôvo, de um único tema profético -- a consumação da história. Mas não pode ser simplesmente equacionada com profecia, especificamente, e usada à custa da exclusão dos livros proféticos mais antigos e mais importantes. Ela é um fenômeno distinto.

O que chama a atenção imediatamente, ao se compararem esses escritos apocalípticos com livros proféticos, como Isaías e Jeremias, é o uso constante naqueles do simbolismo visionário, bêstas de formas fantásticas, chifres e taças e trombetas; sinais nos céus, uma mulher vestida de sol e coroada de estrêlas, um homem cavalgando as nuvens, o «Ancião de Dias» sentado num trono, circundado por uma multidão celestial. Como tais coisas não poderiam ser visíveis aos olhos da carne, diz-se que foram manifestadas num sonho ou visão. Usualmente se introduz um ser angélico que interpreta para o vidente o espetáculo e os sons da visão.

Os livros apocalípticos têm sido chamados «Tratados para o Tempo de Angústia», porque parece terem sido escritos para fornecer ao povo que sofre adversidade e peseguição, o consôlo de uma grande esperança no Deus que opera por detrás das cenas da História. Na sua maior parte, são dominados pela convicção de que o mal está aumentando e está aproximando-se de um clímax que produzirá a inter-

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venção catastrófica de Deus e o fim do mundo. A intromissão do sobrenatural na ordem natural mostra o dualismo que caracteriza o escrito apocalíptico, e que é expresso explicitamente em IV Esdras 7.50: «O Altíssimo não fêz um mundo (ou século) mas dois». O vidente recebe na visão a possibilidade de olhar o que está acontecendo naquele mundo celestial o correspondente do que acontece neste mundo; o aparecimento sucessivo de criaturas terríveis e as batalhas dos campeões angélicos determinam a história dos reinos terrestres, que eles representam (4). Os acontecimentos são, aqui e ali, inter-relacionados e, na base da visão, o escritor apocalíptico passa a predizer o curso futuro dos eventos.

A apocalíptica é, em certo sentido, mitologia -- uma representação pictórica e narrativa de uma realidade que está além da experiência dos sentidos. É uma mitologia, não das origens de tôdas as coisas (como Gn 1-3), mas do Fim. Os acontecimentos do presente são vistos como avançando rápido para um clímax, em que os enigmas morais da vida serão resolvidos por meio da intervenção direta do próprio Deus.

Outra característica dêste tipo de literatura, diferenciando-o da profecia propriamente, é sua atribuição, comumente, à autoria de algum antigo sábio ou profeta. Em Ezequiel 14.14, Daniel é citado, com Noé e Jó, como um homem considerado justo pela tradição, embora, de acôrdo com a data atribuída pelos conservadores aos livros que trazem seus nomes, ele e Ezequiel teriam sido contemporâneos. A Bíblia nada sabe das noções modernas de propriedade literária ou de plágio. De fato, literaturas desenvolvidas como a Lei, os Salmos e Provérbios, são atribuídas a autores associados, pela tradição, exclusivamente com seus começos. De igual modo, no caso da literatura apocaliptica, era um processo literário aceito atribuir o livro a algum antigo herói. Esta literatura começou a ser escrita depois do tempo de Esdras, quando se sustentava que o período da inspiração tinha terminado, e um nôvo escritor, a fim de conseguir audiência, tinha de assumir o papel de um profeta ou patriarca do tempo antigo. A fraude era mais aparente do que real.

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Outra conseqüência do ensino dos escribas de que o período da inspiração tinha-se encerrado foi um nôvo interêsse nas predições contidas na profecia já existente. Se não tinham sido, e aparentemente não poderiam ser, literalmente cumpridas, deviam, então, ser explicadas simbolicamente. Os «setenta anos» de escravidão babilônica em Jr 25.11, 12, torna-se, em Dn 9.2, 24, «setenta semanas de anos», a fim de trazer o «fim das assolações de Jerusalém» até aproximadamente o período dos Macabeus, para o qual o autor estava escrevendo. Começou assim o cálculo dos tempos e épocas, e com ele um esquema da história futura predeterminada.

A apocalítica é, então, uma dualista «mitologia do Fim», que sucedeu à profecia falada e escrita, no judaísmo pré-cristão. Não é a mesma coisa que profecia. Mas é, histórica e religiosamente, importante por seus próprios méritos, porque afirmava convicções profundas quanto ao sentido das crises sucessivas em relação ao Fim transcendente da História. A distincão é muitíssimo necessária, por causa da confusão entre as duas por parte daqueles que tomam a apocalíptica como representante da profecia, resultando disso a negligência de livros como Amós, Oséias e Jeremias.


Predição e Adivinhação


Embora o elemento de vaticínio seja na apocalíptica muito maior de que na verdadeira profecia, nas palavras dos grandes profetas podem encontrar-se também numerosas predições. O exemplo dado acima, tirado de Jeremias, é um dos mais explícitos. Dizer que profecia e predição não são idênticas não é negar a existência e importância de um elemento de vaticínio naquela. Como, então, se pode dizer que os prognosticadores modernos estão seguindo fogos-fátuos, quando calculam, com base nas Escrituras, as datas dos acontecimentos futuros? A resposta é, primeiro, que estão tomando equivocadamente apocalíptica por profecia; e, segundo, que estão usando a Bíblia (até certo ponto) como um manual de adivinho e como instrumento de adivinhação.

A adivinhação, diz o Professor Herbert Rose (5), é uma prática que resulta não só da curiosidade quanto ao futuro, mas também da incapacidade da mente não desenvolvida

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de compreender um argumento negativo que exclua definidamente o que parecia possível. Nela está envolvida também uma vaga idéia da uniformidade da natureza. A adivinhação é praticada quase universalmente por povos em níveis inferiores de cultura, e se tornou uma arte especializada entre as nações do mundo antigo, inclusive Israel. Coisas estranhas, como uma ave agindo peculiarmente, ou ocasionais ações humanas involuntárias, como espirrar, eram tomadas como sinais de calamidade porque em alguma ocasião tinham sido seguidas por calamidades. Portentos naturais como eclipses e terremotos eram ao mesmo tempo extraordinários, e aterradores. Sonhos e pressentimentos vinham à mente de modo aparentemente espontâneo. Que poderiam significar? O sonhador podia sonhar de nôvo (como normalmente acontece) e então ganharia reputação de vidente. Outro que pretendesse discernir o sentido de uma mensagem escrita nos céus estrelados, poderia ganhar a atenção dos incautos. As marcas curiosas do fígado de um animal sacrificado poderiam ser lidas como se fôsse a escrita secreta de algum deus. Os homens inventavam ordálios e jogos de azar, o resultado dos quais, não sendo humanamente determinável, era atribuído a um agente sobrenatural e interpretado dentro dêsse modo de ver. As pessoas em estados mentais anormais eram tidas como possuídas de espíritos, e seus gritos estranhos eram tomados como uma mensagem divina para ser traduzida por homens habilitados (como em Delfos).

Havia muito destas coisas no antigo Israel. Diz-se que José tinha uma taça pela qual «adivinhava», observando as formas assumidas pelos sedimentos do vinho ou pelo óleo derramado na água (6). Gedeão pediu e exigiu o sinal do novêlo sêco no chão úmido e do novêlo úmido no chão sêco (7). Davi ouviu o estrondo da marcha de um exército invisível pelas copas das amoreiras (8). O éfode e as sortes sagradas, Urim e Tumim, eram instrumentos de adivinhação oficialmente usados pelo sacerdócio, e foi somente quando Javé (9) não respondeu a Saul «nem por sonho, nem por Urim, nem por profetas», que o rei recorreu à necromante de Endor (10). Acaz, rei judaíta posterior, separou um altar especial para «inquirir» por ele (11).

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Esses exemplos mostam que tais práticas eram familiares em Israel até no período profético. Mas eram expressamente repudiadas pelos próprios profetas como estranhas ao gênio e espírito de sua religião. Isto é feito enfaticamente no Deuteronômio, recodificação das leis antigas sob a influência profética: «Não se achará entre ti... nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro, nem feiticeiro, nem encantador, nem necromante, nem mágico, nem quem consulte os mortos (isto é, médium espírita); pois todo aquêle que faz tal coisa é abominação ao Senhor ... (mas) suscitar-lhes-ei um profeta do maior de seus irmãos, semelhante a ti (isto é, Moisés); em cuja bôca porei as minhas palavras» (12). Nada podia deixar mais claro do que isso que profecia na tradição e maneira de Moisés é algo inteiramente diferente desses vários métodos de devassar o futuro, denunciados como práticas pagãs, arrogantes e erradas. O profeta não tem tal saber secreto e habilidade divinatória. Ele só pode falar quando Deus lhe dá uma palavra, e então não pode deixar de falar: «Falou o Senhor Deus, que não profetizará?» (13).


O Elemento de Vaticínio na Profecia


O que acabamos de dizer refere-se principalmente ao período clássico da profecia que se iniciou cêrca da metade do oitavo século antes de Cristo. As etapas anteriores da profecia hebraica, como se verá no próximo capítulo, foram mais intimamente associadas com adivinhação e possessão de espíritos. Os grandes profetas alijaram quase todos os traços dessas associações primitivas, mas permanece em sua profecia um elemento de predição que é importante distinguir dos agoureiros e adivinhos.

Tomemos como exemplos Amós e Isaías, ambos os quais fizeram predições que foram cumpridas. Com terrível insistência em côres lúridas, Amós descreveu a iminente subversão, pelo terremoto e a conquista, de uma sociedade corroída pela injustiça. Em dois anos (14), seguiu-se um dos mais memoráveis terremotos da Palestina e menos de uma geração mais tarde a invasão dos assírios colocou um ponto final na existência política do reino do Norte, Israel. Isaías, na crise sírio-efraimita, em 735-734 a. C., garantiu a Acaz,

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rei de Judá, que antes que uma criança, a nascer em breve, saísse da infância, a ameaça a Judá se teria desvanecido; antes que outro infante fôsse capaz de dizer «mamãe» e «papai», os adversários aliados de Judá teriam sido despojados pelos assírios (15). Essas predições foram cumpridas, aparentemente dentro de um ano. De nôvo, quando Jerusalém estava ameaçada pelas fôrças de Senaqueribe em 701-700 a. C., Isaías garantiu ao rei Ezequias que a cidade não seria tomada. Uma vez mais seu vaticínio foi justificado pelos acontecimentos (16).

Esses exemplos são típicos, e deve-se notar de que tipo eles são. Os profetas predisseram desgraça num caso e livramento no outro -- degraça ou livramento que estão para sobrevir ao povo a que o profeta se dirige. Mais importante, esses advirão como conseqüência imediata de sua condição moral e espiritual, no momento em que o profeta fala. As margens do tempo presente (por assim dizer) são estendidas para incluir um futuro próximo, que está vital e moralmente relacionado com esse presente. Essas predições não são vislumbres de um futuro predeterminado que deve passar através do momento presente para o passado, como um filme animado passando pelas lentes do projetor. O futuro não é tão mecânícamente determinado. O que está para acontecer é a conseqüência necessária de uma situação moral; e será, ao mesmo tempo, a realização concreta da «Palavra» profética, que expressa em relação à situação dada a vontade justa de Javé. Quando Deus está para agir, torna conhecido seu propósito: «Certamente o Senhor Deus não fará coisa alguma, sem primeiro revelar o seu segrêdo aos seus servos, os profetas» (17). Essas predições estão integralmente relacionadas com a situação espiritual daqueles que as ouvem; além disso, são moralmente condicionadas por esse fato: «Contudo não vos convertestes a mim, disse o Senhor... portanto, assim te farei, ó Israel!» (18) . «Acautela-te e aquieta-te, não temas. Se o não crerdes, certamente não permanecereis» (19).

Esse condicionamento moral e essa referência imediata explicam como um vaticínio profético, longe de ser inevitavelmente cumprido com exatidão literal, pode ser modi-

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ficado ou revogado inteiramente. Isaías declara categoricamente que Ezequias está para morrer, mas traz-lhe mais tarde a palavra de clemência. Javé mostra a Amós visões de uma praga de gafanhotos e de um grande incêndio próximos, mas atende ao pedido do profeta: «E o Senhor se arrependeu disso. Também não acontecerá, disse o Senhor» (20). Deus retém a plena liberdade de uma vontade ativa; não pode ser peado por qualquer anúncio antecipado dos acontecimentos ou esquema de datas. Mas sua liberdade não é caprichosa ou arbitrária. Suas limitações são as imposições da própria natureza dele -- justiça, misericórdia e verdade: «Ele pemanece fiel, pois não pode ser infiel a si mesmo» (21).

Em conseqüência do que acabamos de dizer, podemos ver como algumas predições proféticas poderiam permanecer sem cumprimento, enquanto outras foram cumpridas em essência mas não literalmente. Por exemplo, embora Isaías 17.1 declare que Damasco se tornará um montão de ruínas, esta continua uma cidade populosa até hoje. Em Ez 26.7-14 lemos que Javé fará de Tiro «uma penha descalvada», pela mão de Nabucodonosor, enquanto num capítulo posterior (29.17-20) se reconhece que o cêrco de Nabucodonosor contra Tiro tinha fracassado, e se diz que Javé lhe dará a terra do Egito em compensacão. Mais interessante ainda é a declaração de Miquéias: «Sião será lavrada como um campo, e Jerusalém se tornará em montões de ruínas», quando tomada junto com a explicação dada um século mais tarde na própria Jerusalém de que a contrição de Ezequias tinha levado Javé a mudar de propósito (22).

O
utro ponto a ser lembrado é que essas predições são usualmente revestidas de linguagem poética, imagens e hipérboles, que só um literalista muitíssimo prosaico insistiria em tomá-las como uma descrição exata. Tomemos a conhecida passagem: «Nos últimos dias acontecerá que o monte da casa do Senhor será estabelecido no cume dos montes» (23). Quão distante de tal literalismo rígido era a compreensão, por parte de Jesus, do modo como as antigas profecias deviam ter cumprimento, evidencia-se em seu comentário sobre João Batista: «E, se vos importais de crê-lo, ele

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é o Elias, que estava para vir» (24). Muitos judeus esperavam, com base na predição de Malaquias 4.5, 6, a volta real de Elias à terra. Seria difícil pretender que Jesus ensinasse a reencarnação. Para ele o cumprimento da predição estava num nível de significado mais pofundo, como quando ele disse, em outra ocasião, que Moisés tinha escrito a respeito dele (25).

Não obstante duas passagens na lei deuteronômica referem-se ao cumprimento da profecia como um critério de sua genuinidade. Dt 18.22 diz: «Quando um profeta falar em nome do Senhor, e a palavra não se cumprir nem suceder, como profetizou, esta é palavra que o Senhor não disse; com soberba falou o tal profeta». Em Dt 13.1-3, o teste é levado mais longe: «Quando profeta ou sonhador se levantar no meio de ti, e te anunciar um sinal ou prodígio, e suceder o tal sinal ou prodígio de que te houver falado, e disser: Vamos após outros deuses... não ouvirás as palavras dêsse profeta... porquanto o Senhor vosso Deus vos prova para saber se amais o Senhor vosso Deus de todo o vosso coração». Em outras palavras, o fracasso de uma predição pode ser usado como teste negativo, mas o cumprimento dela não é garantia de genuinidade, se a substância da mensagem do profeta se afastar dos princípios básicos do javismo. Isso patenteia mais do que tudo que a essência da profecia é, não a predição, mas a declaração da verdade religiosa.


Porta-vozes da Crise


Os profetas de Israel não eram, portanto, meros prognosticadores; eram porta-vozes de uma palavra viva de Deus. Suas freqüentes referências ao futuro, e especialmente ao futuro imediato, resultam de seu senso da importância espiritual e da urgência moral do presente. Êles tinham certeza do que Javé estava prestes a fazer por causa daquela situação espiritual presente, situação que incluía não só a atitude dos homens, mas o fato da presença de Deus. Falavam numa atmosfera de momentos que eram críticos para os homeus porque a vontade justa de Javé estava presente, e suas exigências eram irresistíveis. Nesta conexão, o profeta deve ser distinguido do sacerdote, por

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um lado e do «sábio» por outro (26). O sacerdote ministrava em termos do eterno e imutável ao que na vida do homem era constante ou repetido. O «sábio» destilava em seu ensino a essência da longa experiência de todos. A mensagem do profeta era relacionada ao contexto temporal da vida de maneira diferente. O tempo, como o homem o conhece, tem dois aspectos: avança caminhando em movimento incessante; as gerações vêm e vão. Mas alguns momentos presentes se destacam de todos os outros. A hora soa; chega o momento de decisão e de suprema experiência. Nesse momento há algo mais do que um vislumbre instantâneo de uma gota de tempo, quando a corrente do tempo passa pela borda da catarata. Pode tratar-se de um grande momento, prenhe de conseqüências eternas na determinação do destino. Ali e então o eterno se revela, exigindo e desafiando. O profeta, não o sacerdote ou o mestre, é a voz de Deus, nesse momento. Ele é o porta-voz que pode dar expressão ao sentido de uma ordem eterna e de uma realidade divina. Ele torna manifesta a crise moral de que os homens não se apercebem. Declara qual é o caminho da vida e qual o caminho da morte.

Uma ilustração disso pode ser encontrada nos capítulos 7 e 26 do livro de Jeremias, onde temos dois relatos da mensagem desse profeta numa ocasião particular. O cenário é a porta do templo de Jerusalém, onde as multidões estão reunidas para um festival religioso. O profeta é resistido pelos sacerdotes e pelo povo, quando declara que essa casa será destruída como o antigo santuário em Silo, porque Israel identifica a religião essencial com o turno de serviços de acôrdo com o calendário litúrgico, antes que com as sempre novas respostas às exigências éticas de Deus.

Os profetas eram, primariamente, muito mais pregadores, no mais alto sentido do termo, do que mestres ou prognosticadores. O epigrama que os descreve como «pregadores antes que preditores» faz uma distinção útil ainda que não completamente exata. Eles fizeram predições, mas essas eram apenas acidentais em sua mensagem. Sua relevância hoje não se deve, portanto, a que eles predisseram o curso dos acontecimentos do mundo moderno. Mas, embora não falem de nosso tempo falam a ele, porque nosso tempo é

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também de crise e os problemas em jôgo são espirituais e morais. Se conseguirmos deixar de lado o contexto local e temporal da Palavra deles, como falada aos homens daquele inundo antigo, veremos que ela é dirigida também a nós.


A Relevância dos Profetas


Usar a palavra «crise» com a leviandade com que comumente a usam, torna-a menos percuciente. Aos homens que necessariamente não podem ver sua situação em perspectiva histórica, pode parecer tolice falar dela como carregada de conseqüências inusualmente graves. Mas de fato tôda época é crítica para os homens que vivem nela, pois nela são chamados a julgar, decidir e agir. Sua crise pessoal é a única que são chamados a confrontar. Os profetas de Israel podem tornar manifesta a realidade e natureza de nossa crise, mesmo quando falam da sua própria. Eles nos confrontam com a responsabilidade de decidir em resposta a Deus. Suas profecias expressam sua certeza moral e compreensão espiritual do que será por causa do que é, porque Javé e não outro deus é Senhor.

A mensagem dos profetas é, portanto, relevante hoje num sentido mais profundo e verdadeiro do que se tivessem predito nossa história como cigana a ler-nos a sorte. Eles são contemporâneos de cada geração, porque a verdade que declaram é permanentemente válida. O que dizem tem a qualidade intemporal e o poder constrangedor da afirmação espiritual autêntica. Quanto mais lemos suas palavras, mais nos impressiona seu desprendimento e destemor, sua rica humanidade e gênio poético, sua penetração e autoridade espirituais. Nada há no mundo pré-cristão que se compare à grande sucessão dos profetas hebreus. Não é suficiente nenhuma explicação deles que não reconheça que por meio deles o Deus eterno estava executando seu propósito para a criação e redenção da humanidade.

Ser-nos-á útil hoje descobrir quais foram as causas da espantosa vitalidade espiritual do movimento profético. Os profetas eram homens que se tinham entregue com abnegação completa ao serviço de Deus, que conheciam em sua pró-

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pria vida e por meio da experiência religiosa do seu povo. De seu chamado para o ministério, disse Amós simplesmente: «O Senhor me tirou de após o gado» (27). A resposta pronta de Isaías à solicitação de Javé, que buscava alguém para levar sua mensagem foi: «Eis-me aqui, envia-me a mim» (28). Por seu devotamento, de todo o coração, ao Deus dos pais vinha-lhes um entendimento mais profundo do significado para o tempo presente daquilo que era essencial na fé dos antepassados. Por meio da obediência moral ao Deus conhecido, vinha-lhes um nôvo conhecimento dele, e no reconhecimento de sua presença, uma revelação nova e mais plena de sua natureza e de seu propósito. Esses homens não eram inovadores conscientes. Se algo de nôvo emergiu neles se deve a Javé, não a eles.

Além disso, os grandes profetas, sem exceção, eram tremendamente preocupados com as condições sociais e as questões públicas, como evidências de uma crise espiritual. Não falam de pecado e arrependimento meramente em termos gerais. São específicos e perturbadores em suas denúncias.

A estrutura eclesiástica era para eles um entrave e seus ofícios uma ofença a Deus, se ao mesmo tempo a situação humana real e os problemas morais urgentes fossem ignorados: «Quando estendeis as vossas mãos, escondo de vós os meus olhos; sim, quando multiplicais as vossas orações, não as ouço, porque as vossas mãos estão cheias de sangue» (29). Isto era o que Javé dizia enquanto prosseguiam os serviços no templo; mas só Isaías, entre tôda a multidão de adoradores, o ouvia.

Outro fator que contribuía para o poder espiritual dos profetas era sua vívida percepção da presença e atividade do Deus que adoravam no santuário, influindo no tumulto da vida social cotidiana dos homens. Seu testemunho supremo era de que o Deus que escolhera os pais e falara a Moisés, estava presente e falava no seu tempo de modo igualmente real. Ele não era um deus só dos começos mitológicos nem um deus como Baal Mercarte, que podia estar «meditando,... de viagem ou a dormir». Era, antes, um Deus que estava para «fazer uma coisa em Israel, a qual todo o que a ouvir lhe tinirão ambos os ouvidos» (29). Os profetas reconhe-

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ciam que Deus estava operando no seu mundo contemporâneo, porque não pensavam nêle somente em termos tradicionais e convencionais.

E, ainda, podemos aprender dos profetas algo quanto à maneira como a religião pode tornar-se a dinâmica, e sua ética a diretiva da transformação social. A religião vital que eles proclamavam e os padrões morais que estabeleceram tão firmemente tiveram por fim uma profunda influência no espírito e «ethos» da comunidade, e até mesmo em suas formas de culto e leis sociais. Uma nova compreensão da religião e de suas exigências éticas totais se estabeleceu em resultado de sua missão, embora, por certo, o povo comum estivesse longe da plena compreensão e ainda mais longe de suas implicações para a conduta. Não obstante, a religião de Israel e sua cultura foram recriadas por meio da missão dos profetas, como se pode ver do fato de sua influência dominante, mais tarde, na composição e compilação da Bíblia hebraica. A completa transformação da superstição e da religião da natureza, do comêço da monarquia, com suas concomitantes convenções sociais (31), na florescência do judaísmo, no que ele tem de melhor, é a expressão do que, abaixo de Deus, os profetas do VIII ao VI século a. C. realizaram.

Finalmente, podemos aprender desses antigos porta-vozes da verdade eterna que, como o Deus deles não estava prêso dentro da tradição das eras passadas de Moisés e Davi, assim nosso Deus não está prêso dentro da tradição da era deles ou do primeiro século a.D. Ele é o Deus vivo, operando não só nas almas dos indivíduos hoje, mas presente como o árbitro final nas lutas e confusão de nossa vida social. Onde as fôrças cruéis dêste mundo moderno dobram e esmagam os espíritos de homens e mulheres, ai está Deus presente em poder, o vindicador daqueles para quem as desvantagens são demasiado grandes. Para homens e povos que tenham visão e fé e seriedade moral, Deus mantém sua porta aberta -- para uma vida pessoal e comunitária que seja nobre e livre. Se, em nosso orgulho e auto-suficiência, não dermos ouvidos à sua palavra e exigências dela, veremos que hoje também seus juízos caem sôbre a terra.


NOTAS E CITAÇÕES BÍBLICAS

CAPITULO 1

(1) Is 2.6.
(2) At 1. 7.
(3) Sôbre esta secção, ver Case, «The Millenial Hope», de que são tirados alguns dos exemplos acima.
(4) Cf. Dn 7 e 10. 13-21.
(5) «Encyclopedia of Religion and Ethics», ed. Hastings, artigo: «Divination».
(6) Gn 44.5.
(7) Jz 6.36ss.
(8) II Sm 5.24.
(9) «Javé» é, provavelmente, a forma original do nome «Jeová». Esta não é palavra hebraica, mas forma híbrida, na qual se combinam as consoantes de «Yahweh» ou «Javé» com as vogais de «Adonai», palavra que significa «Senhor». As vogais desta sob as consoantes daquela indicavam que, na leitura:«Adonai» devia ser pronunciado, em vez de «Javé». A forma «Jeová» entrou em uso somente na Idade Média, devido à incapacidade de reconhecerem como tal palavra viera a aparecer no texto hebraico do Velho Testamento.
(10) I Sm 28.6.
(11) II Rs 16. 15.
(12) Dt 12.10-12, 18.
(13) Am 3.8.
(14) Essa é a razão do acusativo de duração, em Am 1.1: «durante dois anos antes do terremoto»; cf. nota de autoria de Meek, no «Journal of the American Oriental Society», vol. 61, pp 62-63. (Ver também RSV, margem, in loco. Trad.). Há outra
referência ao mesmo terremoto, em Zc 14.5.
(15) Is 7.10-16; 8.3, 4.
(16) Is 37.33ss.
(17) Am 3.7.
(18) Am 4.10, 12.
(19) Is 7.4, 7.
(20) Is 38.1-6; Am 7.1-6.
(21) II Tm 2.13, na tradução de Moffatt.
(22) Cf. Mq 3.9-12 e Jr 26.17-19.
(23) Is 2.2.
(24) Mt 11.14, na tradução de Moffatt.
(25) Jo 5.46.
(26) Sôbre êsses três grupos de guias espirituais reconhecidos pela comunidade, ver Jr 18.18.
(27) Am 7.15.
(28) Is 6.8.

(29) Is 1.15.
(30) I Rs 18.27; 1
Sm 3. 11.
(31) Ver adiante, pp 181-188; 165-171.

 


CAPITULO II


O MUNDO DOS PROFETAS


O mundo em que a profecia floresceu, no VIII século a. C., era ponto de convergência de três diferentes estilos de vida: a vida do criador de gado, a vida do agricultor e a vida do citadino. As tribos israelitas, antes da conquista de Canaã e de seu estabelecimento ali, tinham sido nômades ou seminômades; uma sociedade patriarcal simples, que tirava sua subsistência dos rebanhos e do gado, suplementando-a com cereais cultivados em estações temporárias de pouso. A conquista foi um processo vagaroso, no curso do qual os israelitas se firmaram como a classe dominante no que era e continuava realmente uma sociedade canaanita. Adotaram a língua canaanita (que agora chamamos «hebraico»), fundiram a cultura canaanita com suas próprias tradições e se tornaram um povo sedentário, com seu território próprio. Sua vida econômica era agora sustentada principalmente pelos produtos agrícolas: a viticultura e a cultura da oliveira; ficando os rebanhos e o gado em segundo plano. Cidades e vilas tornaram-se os centros fixos das tribos e dos clãs, e certo regionalismo fortalecia (embora pudesse ser também seu rival) a velha lealdade do parentesco.

Com o advento da monarquia, e especialmente com o reinado de Salomão, o modo de vida urbano e comercial se desenvolveu grandemente, em parte com prejuízo da comunidade pastoril e agrícola mais antiga. A estrutura social tornou-se agora mais centralizada e autocrática, e apareceu o Estado como uma nova entidade dentro da sociedade israelita. A côrte, os oficiais do rei e o exército permanente eram não-produtores, e só podiam em parte ser sustentados com os

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impostos que pesavam sôbre o comércio em trânsito pela Palestina e com o tributo dos povos dominados. Pesados impostos e trabalho gratuito obrigatório para o Estado começaram a drenar a moderna riqueza da comunidade.

Tansformações de tal amplitude nas condições sociais econômicas não poderiam deixar de afetar profundamente as condições e crenças religiosas do povo. Pois quaisquer que sejam a origem e importância última de uma religião, esta deve ser relevante para as condições concretas em que o povo vive. Seus padrões de fé e de conduta refletem necessariamente a estrutura social e econômica em que ela seja fator operante, como, por sua vez, essa estrutura é afastada pelos padrões e ideais de vida sustentados pela religião.

As tensões sociais e econômicas, resultantes dos choques culturais dentro da sociedade israelita, sob a monarquia, produziram em conseqüência tensões e reações religiosas de importância permanente. O elemento nômade, pastoril, tribal na tradição e sociedade israelitas, continuou, até o fim, como o ideal clássico, predominante e normativo da religião de Israel. As figuras dos patriarcas, no Gênesis, idealizam o tipo nômade de vida. A obra de Moisés é transformada no eixo da teologia histórica posterior de Israel, e a tradição afirma que Moisés tirou Israel do Egito «civilizado» e o introduziu no deserto, e que ele terminou sua obra fora do território sedentário. Profetas e salmistas voltam-se para esse período anterior à Conquista como supremamente importante (1). Eles dão aos eventos do Êxodo e da Peregrinação o mesmo valor que os teólogos cristãos têm dado aos acontecimentos da vida de Cristo, especialmente à Cruz. Alguns profetas erguem o grito de «volta a Moisés» (2) como pregadores modernos têm levantado movimentos de «volta a Cristo». Não faltavam « fundamentalistas», como os recabitas, que tomavam isso literalmente, e se recusavam a construir casas, a cultivar a terra ou a tomar vinho, porque estes eram os modos de Canaã na época moderna (3).

De modo que o tribalismo nômade das tradições patriarcais e mosaicas afetou permanentemente o curso futuro do desenvolvimento religioso. Isso não quer dizer que os li-

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deres religiosos posteriores (exceto reacionários como os recabitas) desejassem retornar de fato às condicões de vida do deserto. Queriam, antes, reverter às idéias e valores característicos, que se tornaram explícitos pela primeira vez no período criador das origens religiosas, e que continuaram válidos, embora tivessem de ser reinterpretados constantemente de acôrdo com as necessidades e peculiaridades de cada época. Para podermos compreender o mundo dos profetas, devemos ver como se superpuseram a essa cultura religiosa tribal e pastoril as culturas sucessivas agrária e urbana de Canaã. Cada estilo de vida tinha suas diferentes características sociais, econômicas e religiosas, de modo que a situação era complexa e o conflito, inevitável.


As Características da Sociedade Pastoril


O homem primitivo vivia principalmente da caça. Quando aprendeu a domesticar animais, sua provisão de alimentos se tornou mais garantida e, em conseqüência, sua vida era mais longa e a família se tornou um grupo social estável. À medidaque os rebanhos cresciam, as famílias se desenvolviam em clãs e finalmente em tribos, movendo-se com os rebanhos e o gado à procura de pastagens.

Pelo fato de ser o interior da Arábia um deserto, os habitantes dessa região têm continuado na sua quase totalidade povos de pastôres nômades, até o presente. De tempos em tempos fizeram incursões nas terras mais férteis para o norte e o oeste: Mesopotâmía, Síria, Palestina e Baixo Egito. Nessas regiões as tribos nômades se fixaram entre os habitantes anteriores, para estabelecerem sociedades mais estáveis, tornadas possíveis pelo cultivo dos produtos do solo. Os antepassados de Israel pertenciam ao norte do deserto arábico, e à parte do «crescente fértil» que ficava do outro lado do curso superior do Eufrates. Invadiram Canaã como tribos nômades e, séculos mais tarde, sua estrutura social e ideológica trazia ainda as marcas da herança nômade, pastoril.

O fato fundamental a respeito da sociedade nômade semítica é o laço do parentesco consangüíneo. Essa «consciência de família» permeia o pensamento e governa a maior parte das atividades do grupo social. A pergunta de Caim: «Acaso sou eu tutor do meu irmão?», só poderia produzir consternação. A família não era só a unidade social primária, mas também a unidade econômica e religiosa primária. Nas histórias patriarcais, como, por exemplo, no prólogo de Jó, a riqueza do pai dá subsistência à família patriarcal e o patriarca oferece sacrifício em favor dela. A importância do parentesco e o orgulho da família aparecem nas genealogias abundantes no Velho Testamento e fazem soar a nota hebraica típica nas histórias do nascimento de Jesus, em Mateus e Lucas (4). A veneração do túmulo de um antepassado (5), o desejo de ter um filho para perpetuar a família (6), são outras tantas ilustrações da importância que se dava aos laços de sangue. A maneira usual de contar a descendência era através do pai, mas subsistem traços de um sistema matriarcal que pode ter sido mais antigo (ou peculiar a certas tribos). Exemplos disso são o dar a mãe nome ao filho no nascimento (7) e a forma de casamento chamada «beená», em que a espôsa continuava na casa de seu pai e os filhos pertenciam à família dêste (8).

Esse senso vivido de consangüinidade subjaz, também, à mais característica das instituições do deserto, a «vendeta». Quando se matava um homem, causava-se, também, um dano à sua família. O sangue da família tinha sido derramado e devia ser vingado da família cujo representante tivesse cometido o assassínio e trazido essa culpa sôbre sua parentela (9). Quando a comunidade se tornou mais civilizada fêz-se uma distinção clara entre o homicídio premeditado e o acidental, e foi tomada providência para que um acusado encontrasse abrigo contra os enfurecidos parentes, até que as circunstâncias do caso fôssem apuradas (10). A culpa e a punição foram restringidas ao indivíduo, pela primeira vez, na lei pós-profética de Deuteronômio 24.16.

A sociedade era uma família de famílias. O que mais se aproxima de nossa palavra «família» é a palavra traduzida como «casa», que significa, neste particular, uma família concreta ou um grupo único de três ou quatro gerações descendentes de um antepassado masculino vivo (11). O clã compreendia um grupo dessas «casas paternas» que sentiam uma unidade psíquica por descenderem tôdas de um ante-

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passado mais remoto comum. Essa unidade expressava-se especialmente numa emergência, como quando Gideão tocou a rebate e os abiezritas (o clã de seu pai Joaz) se ajuntaram após ele (12). A tribo, também, era idealmente uma família, e as «doze tribos» de Israel afirmavam tôdas sua descendência remota de um dos filhos de Jacó. Mas que a tribo era algumas vêzes simplesmente uma família artificial nós o sabemos, em vista da composição da tribo de Judá, que se formou aliança «por pacto» de clãs distintos (13), do mesmo modo como a «supertribo» de Israel foi formada por federacão de aliados que afirmavam, contudo, ser Jacó o antepassado comum. A tribo pode ser definida como um grupo de clãs que se declaram descendentes de um antepassado remoto comum, os quais partilham de uma religião comum e reconhecem uma autoridade comum.

A formacão ou ampliação de uma tribo pela federacão numa família artificial maior punha em operação a instituição do «pacto», que pertence ao mesmo círculo das idéias de parentesco. Um pacto era mais do que uma aliança: era a intermistura e identificação de uma vida com outra. A frase hebraica «cortar um pacto» pode referir-se a uma prática original de beber um do outro o sangue de incisões feitas na ocasião, ou, como no Velho Testamento (14), à morte de uma vítima sacrificial, para que sua vida formasse um elo entre as partes, quando seu corpo fôsse consumido na festa do pacto. A divindade tornava-se participe do pacto pelo derramamento do sangue sôbre o altar diante do qual a cerimônia era realizada (15). O «sangue do pacto» tornava os homens «irmãos de sangue», e criava entre eles uma comunidade de almas, como quando «a alma de Jonas se ligou com a de Davi» (16).

Certas conseqüências dessa organização famílio-tribal da sociedade podem ser citadas. A primeira é que a riqueza econômica da comunidade era, de fato, riqueza da comunidade; embora investida no cabeça da família ou clã, tratava-se de um depósito para todos. A propriedade pessoal confinava-se a artigos pessoais, como ornamentos, vestes e armas, e não havia propriedade privada, em regra, nos rebanhos e gado de que a comunidade, como um todo, dependesse para

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sua existência. Assim, embora por consentimento comum alguns tivessem privilégios apropriados à sua posição de chefes e guias, não havia rico nem pobre no clã, a não ser na medida em que o clã todo fôsse rico ou pobre. Mesmo os escravos eram membros da casa (17).

A sede da autoridade eram os cabeças de famílias, e, na agregação maior, a tribo, um conselho de anciãos. Êstes julgavam as questões de acôrdo com padrões aceitos de moral e com os costumes da tribo (18). Não tinham, porém, poder despótico. A liberdade do deserto e sua vida indômita e nômade, somadas ao forte sentimento de fraternidade do clã, produziam um forte e duradouro amor da libedade e da justiça igualitária.

Em questões de religião, devemos estabelecer diferença entre dois elementos distintos na herança que Israel recebeu de seu passado nômade. Havia, primeiro, o que ele tinha em comum com outros nômades semitas: crença em espíritos e demônios e numa divindade que mantinha para com a tribo um «pacto de sangue». É possível que tenha havido a crença num deus do céu, supremo, «EI», reconhecido como o poder por trás de todos os fenômenos; numa divindade lunar e numa deusa da fertilidade, originalmente associada com os oásis. A essa herança nômade deviam ser atribuídas certas características do culto hebraico posterior, como o sacrifício do primogênito do rebanho, e os festivais da divindade lunar que guiava os peregrinos no deserto, através da frescura da noite, «Pesach» (ou Páscoa) e Lua Nova (19).

O segundo elemento da herança religiosa de Israel, recebido da época do deserto, distinguia-o dos outros povos semíticos -- o culto do deus Javé, em que Moisés o havia iniciado (20). Javé era um deus cujo poder se manifestava na tempestade, no vulcão e no terremoto, e cujas características pessoais de justiça e misericórdia faziam exigências correspondentes da parte daqueles que estavam dentro de seu pacto. Ele era pessoalmente interessado e ativo nos acontecimentos históricos que tinham sucedido ao seu povo. O pacto com Javé estabelecera uma comunidade com as características de uma grande família, com um interêsse comum, uma vida comum e uma vontade comum. Israel tornou-se

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idealmente um «povo», no sentido da palavra hebraica «am», que significa aquêles que juntos formam uma entidade, um todo, e cujos membros são unidos pela solidariedade como irmãos e camaradas. O funcionamento harmonioso do pacto era a «paz», e produzia bem-estar, ou «bênção». Sob os termos do pacto, Javé prometia «salvação» (isto é, prosperidade ou vitória) com a condição de Israel ser leal aos padrões morais e religiosos estabelecidos por ele, e de fidelidade, responsividade e obediência a ele. As tradições quanto às obrigações particulares dêsse «pacto de obediência» variam como se pode ver, por exemplo, comparando as várias formas do Decálogo encontradas em Êx 20, Dt 5, Êx 34, Lv 19 e Dt 27. Mas elas são unânimes em que o direito de cultuar e servir a Javé dependia da obediência ética. Como os profetas e salmistas posteriores o afirmam: «Que é isso? Furtais e matais, cometeis adultério e jurais falsamente, queimais incenso a Baal e andais após outros deuses que não conhecestes, e depois vindes e vos pondes diante de mim nesta casa?» «Quem subirá ao monte do Senhor? Quem há de permanecer no seu santo lugar? O que é limpo de mãos e puro de coração» (21).


A Sociedade Agrícola Sedentária


A conquista de Canaã por Israel foi um processo que se estendeu por várias gerações, e foi realizada provavelmente tanto por penetração pacífica como por fogo e espada (22). Com algumas exceções, como Jericó e Hazor no norte, as tribos não podiam tomar as cidades muradas, mas estabeleciam-se entre os canaanitas agrícolas e urbanos, e com o tempo os dominavam e absorviam. Como no caso dos árabes modernos da Transjordânia (23), os clãs e tribos vizinhos estariam ao mesmo tempo em vários estágios entre o nomadismo pastoril e a vida agrícola sedentária. Até o fim, especialmente na parte menos fértil, ao sul do país, manadas de ovelhas e bodes continuaram a ser um importante fator econômico.

No tempo de Davi, o cultivo da cevada, do linho e do trigo, junto com as vinhas e plantações de oliveiras, tinha aberto uma nova e mais rica vida econômica à massa dos israelitas, Os métodos de plantio eram bastante primitivos.

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epois de o solo pedregoso ter sido suficientemente limpo, era arado, com auxílio de bois, e semeado por homens «andando e chorando» levando a preciosa semente (24). A colheita era um tempo de festas, quando os homens metiam a foice no cereal e o atavam em molhos. Na eira, o grão era batido com um mangual, ou pisado sob um pesado trilho cortante; era então jogado na corrente do vento com uma «pá» ou trôlha chata, para separar a palha. O grão era comido tostado, ou era moído e transformado em farinha. As uvas eram cultivadas em vinhas cuidadosamente tratadas (25), e eram pisadas num lugar escavado na rocha ou postas a secar para serem usadas como passas. As azeitonas eram pisadas para extração do azeite, usado na cozinha e para unção das pessoas. Figos, romãs, tâmaras e mel acrescentavam variedade ao cardápio.

O cultivo dos cereais, das árvores e das vinhas era uma arte que teve de ser aprendida com os canaanitas. Os israelitas aprendiam ao mesmo tempo com eles a reverenciar os «baalins» locais, espíritos da fertilidade cujo favor era necessário para a garantia de uma boa colheita. Isso não era uma deslealdade óbvia a Javé, pois esses baalins não eram divindades propriamente, mas espíritos menores e locais, semelhantes àqueles em que acreditavam os povos do deserto. O culto de baal, em Canaã, incluía esse animismo popular junto com o culto do grande deus da tempestade, Baal ou Hadade. Javé era o deus da federação e povo de Israel, o único deus da sociedade política. Os baalins, gênios menores dos campos e das vinhas, eram considerados como operantes numa esfera completamente distinta. Foi só quando, ao tempo de Acabe e Elias, a manifestação local de Baal, o deus da tempestade e deus da cidade de Tiro, se tornou rival de Javé, na esfera política, que se produziu o conflito irreconciliável. A condenacão familiar pelo editor pós-profético de Reis: «Edificaram altos, estátuas, colunas e postes-ídolos no alto de todos os elevados outeiros e debaixo de tôdas as árvores verdes» (26) supõe as condições e julga pelos padrões do século VII. Pois, do próprio Jacó se diz que erigiu um desses pilares sagrados em Betel, e Samuel tinha sacrificado num «lugar alto» local (27). A extensão em que as formas israelitas de culto foram influenciadas pelos precedentes ca-

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naanitas foi ponderável. Os três grandes festivais anuais do calendário sagrado eram festivais de colheita: «Pães ázimos» (com que a Páscoa veio a ser associada), no comêço da colheita da cevada; «Semana ou colheita», sete semanas depois, na conclusão da colheita do trigo (28); «Tabernáculos», o festival da vindima, no outono. Essas festas já eram celebradas, em Canaã, muito antes da entrada dos israelitas, e, mesmo no ritual judaico posterior, podem ser discernidos traços de um fundo religioso canaanita. Além disso, as conhecidas variedades de sacrifício no Velho Testamento, tais como ofertas pacíficas, oferta pelo pecado, oferta de manjares e holocaustos, eram características do culto canaanita (29). Essas coisas foram assimiladas pelo javismo primitivo porque não entravam em conflito óbvio com seu culto simples, mas percebeu-se que eram suplementos necessários às novas condições de vida agrária.

Os perigos morais do culto de baal, porém, estavam presentes desde o princípio. Seu objetivo principal era garantir a fertilidade do homem, dos animais e da terra, o que levava à associação da prostituição «sagrada», tanto de mulheres como de homens, com os santuários. Isso, junto com a desbragada orgia e bebedeira que acompanhavam certos festivais, tendia para a determinacão de um povo que tinha vivido sob o código moral do deserto, mais austero. A própria multiplicidade de santuários de baal e sua associação com a preocupação diária de ganhar a vida, antes que com emergências ocasionais, como a guerra e a peste, mantinham os baalins, em vez de Javé, constantemente no centro da atenção. De fato, o próprio Javé veio a ser referido como um baal, cujo campo de ação particular era fazer que seu povo prosperasse, se multiplicasse e enchesse a terra. Nomes próprios compostos de «Javé» («Jo» ou «Ias») e «Baal» eram dados a crianças israelitas: o segundo nome de Gideão era Jerubaal; um dos filhos de Saul era chamado Isbaal; e um dos guerreiros de Davi era Bealias, que significa «Javé é meu baal» (30).

«Baal» significa, literalmente, «proprietário», «senhor», ou (num uso derivado) «marido», visto que a mulher era propriedade do marido e era ele o responsável por sua fertilidade. A palavra é usada com referência a donos de

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propriedade, como em Jz 19.22, 23: «O senhor da casa»; e a conhecida passagem de Is 1.3: «o boi conhece o seu possuidor, e o jumento a manjedoura de seu dono.» Jó 31.38, 39, fala dos donos de terras como «os baals», e as leis de Ex 24.14 e Dt 15.2 usam o mesmo termo a respeito de homens capazes de promover processos e emprestar dinheiro. Com o culto dos baalins, «proprietários» dos campos e vinhas, estava associado um sistema de propriedade particular individual e uma atitude para com os bens, bastante alheios à tradição nômade.

Deve ser lembrado que Israel própriamente era uma minoria na população total, uma minoria que se estabelecera como classe dominante, adotando embora, em grande parte, o estilo de vida, havia muito, estabelecido na terra. Como conseqüência, testemunhamos uma radical convulsão social e cultural, dentro da própria comunidade israelita. Tribos nômades, cuja divindade tinha sido deus da tribo e cuja base econômica -- ovinos e bovinos -- era propriedade comum, tornavam-se agora um povo agrícola sedentário, adorando não só a Javé, mas também aos deuses da terra, da qual tiravam agora sua principal subsistência. Javé era ainda o Deus que mantinha o clã: os baalins, com seus santuários locais, corporalizavam o espírito de localidade e propriedade. A multiplicidade dessas divindades locais era, óbviamente, uma fôrça divisória, em constraste com a influência unificadora do Deus único da federação tribal, o poder do qual se manifestou de maneira característica no episódio comemorado no cântico de Débora (31). Mas, com o passar do tempo, diminuiu a ênfase do clã, e cresceu a ênfase da localidade. A vila tornou-se nôvo centro de lealdade, ao lado do clã, embora na maioria das vêzes os dois coincidissem, no comêço do processo.

Com isso apareceu nôvo conceito de propriedade de terra, estável e permanente, em comparacão com a propriedade de rebanhos que podia ser tomada da noite para o dia, por salteadores. Israel afirmava seu direito a Canaã com base numa tradição religiosa de que Yahweh tinha prometido a terra aos patriarcas e a Moisés. Canaã tornou-se a «terra dos pais»; marcada com uma relação mística de sangue e solo; a fonte da existência da comunidade, dando «semente ao que semeia e pão ao que come».

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Como a terra de Israel era relacionada com a totalidade psíquica do povo, assim a terra da família era ligada à alma da família. Nabote, cidadão plebeu, rejeitou, com indignação, a sugestão do rei no sentido de ele trocar ou vender sua propriedade ancestral: «Guarde-me o Senhor de que eu dê a herança de meus pais» (32). As leis de propriedade real no Velho Testamento objetivam manter a terra no domínio da família, e facilitar sua recuperação, se perdida. A lei que estabelece o resgate pelo parente mais próximo (Lv 25.25), a lei que ordenava o cancelamento periódico dos débitos (Dt 15.1-3) e a chamada lei do Jubilei (33) anulando tôdas as transferências de terra no fim de cinqüenta anos (mesmo que esta última pareça nunca ter realmente estado em vigor), tôdas objetivavam manter a ligação sagrada da família com seu próprio solo. O proprietário mantinha a terra como representante de sua família; tinha só o usufruto, não o direito de dispor. O princípio envolvido era fundamental do ponto de vista religioso: «A terra não se venderá em perpetuidade, porque a terra é minha; vós sois para mim estrangeiros e pereginos» Lev 25:23 (34).


A Sociedade Comercial Urbana


O terceiro estilo de vida que aumentava as complexidades e tensões da sociedade israelita anterior ao período profético, era o da cultura urbana e comercial em que o espíríto de Canaã encontrou sua expressão mais desenvolvida e característica (Note-se que a palavra «canaanita» é usada como sinônima de «mercador», em Pv 31.24). Esse estilo de vida começou a produzir considerável impacto sôbre os israelitas no reinado de Davi, quando três fatores operaram simultaneamente para esse fim. O primeiro foi a conquista das restantes cidades canaanitas e sua assimilação por Israel, junto com seus costumes estabelecidos. O segundo foi o estabelecimento por Davi de uma capital que não podia ser sustentada, com sua côrte e fôrças militares, com o produto do campo da vizinhança imediata, mas devia depender do «superavit» econômico da terra tôda. O terceiro foi o início,

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no reinado de Davi, de relações comerciais em grande escala com os fenícios, ou canaanitas do Norte.

Os frutos dêsse comêço foram colhidos no reinado de Salomão, que efetuou uma revolução social econômica cultural e religiosa ainda maior do que Israel tinha experimentado, quando se tornara povo sedentário antes que nômade. Pois, com Salomão, a sociedade livre, com base no clã, caiu sob um despotismo real que era, ao mesmo tempo, uma forma opressora de capitalismo estatal. Por sua política de impostos pesados e exação de trabalho forçado, o rei transformou a massa de seus súditos em escravos, e a propriedade deles tornou-se propriedade dele. Só ele (e seus favoritos da côrte) tirava proveito da nova amplitude do comércio estrangeiro da exportação de cobre de Edom (35), e provavelmente também de israelitas para servirem como soldados mercenários no Egito (36). O aviso solene, pôsto na bôca de Samuel, no documento antimonárquico e teocrático de I Sm, dá-nos um retrato ao vivo da política de Salomão: «Ele tomará vossos filhos, e os empregará no serviço dos seus cargos, e como seus cavaleiros,... e para capitães de cinqüenta; outros para lavrarem os seus campos e ceifarem as suas messes; e outros para fabricarem suas armas de guerra, ... tomará o melhor das vossas lavouras e das vossas vinhas ... e o dará aos seus servidores; dizimará o vosso rebanho, e vós lhe sereis por servos» (37).

Embora as tribos do Norte se revoltassem contra essa opressão, depois da morte de Salomão, e tentassem estabelecer uma monarquia sua própria e mais democrática não demorou muito que, ali, também, a côrte se tornasse centro de ostentação de riqueza e poder. Nenhum acôrdo entre o absolutismo e a democracia fraternal podia ser levado a efeito com facilidade na atmosfera de Canaã, onde, o exemplo do direito divino fôra estabelecido pela tradição local e pela prática nas nações circunvizinhas. A fraternidade tribal foi rompida permanentemente, dividindo-se os homens em poderosos e oprimidos, ricos ou pobres. Uma vez que o povo perca sua relação orgânica com seu meio de subsistência, sejam os rebanhos do nômade, ou lavouras e vinhas do agricul-

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tor; uma vez que a riqueza e o poder do indivíduo se tornam o objetivo sancionado do esforço dentro da comunidade -- a pobreza, a injustiça e a luta social estabelecem-se definitivamente.

N
o período nômade, como já vimos, a produção e distribuição de bens eram ambas numa base familiar de serviço mútuo e vantagem comum, e qualquer «superavit» econômico fazia crescer a riqueza do clã como um todo. O processo econômico era tão natural, que chegava a ser em grande parte inconsciente. Com a transição para a agricultura, a propriedade imóvel da família e o aparecimento das vilas, a família e seus dependentes tinham a seu dispor provisão abundante. Ainda aqui, qualquer sobra era imediatamente distribuída aumentando as possessões e amenidades da família. (As trocas eram feitas por escambo, no mercado, ou a peso de prata. O ouro era usado principalmente como ornamento, e era raro antes do tempo de Salomão. Moedas cunhadas não entraram em uso senão no período persa).

Mas, com o estabelecimento da côrte e a determinação de Salomão de arremedar a glória mundana dos estados vizinhos, começou uma concentração de riqueza a drenar o «superavit» econômico da comunidade e a deixar a massa do povo pobre ou miserável. Vastas quantidades de alimento, bens e serviços eram agora exigidos para a mantença da côrte real e do exército, ao passo que o trabalho forçado, que construía as cidades para os destacamentos de carros de guerra e embelezava Jerusalém, deixava as lavouras e os rebanhos desamparados. A importação de grandes novas quantidades de ouro e prata forçou a subida dos preços numa súbita inflação. Os homens eram forçados a hipotecar suas terras, suas pessoas ou seus filhos para pagar os impostos exigidos. Os juros eram de usura, e muitos israelitas livres perderam suas terras e se tornaram escravos, enquanto aquêles que tinham uma vantagem inicial e alargavam suas terras, amontoavam dinheiro. O resultado humano da operação de tal sistema está resumido, com exatidão, nas palavras de Jesus: «Porque a todo o que tem se lhe dará, e terá em

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abundância; mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado». (38).

Como o culto tribal de Javé tinha sido a religião no período nômade, e como uma mistura do culto de baal e de javismo tinha predominado no período inicial do estabelecimento na terra, assim os desenvolvimentos urbanos e comerciais também tiveram seus paralelos religiosos. Esses apareceram, em primeiro lugar, como resultado da função exercida no culto de tôdas as monarquias correntes pelo rei semidivino e, em segundo lugar, do reconhecimento mútuo das divindades nacionais, o qual acompanhava as alianças comerciais e políticas. Deuses babilônicos, sírios e egípcios vinham tendo, desde muito, seus santuários entre a população mista de Canaã. Agora eram honrados em Jerusalém e talvez mesmo no templo de Javé, o qual, afinal de contas, era naquele tempo uma capela real mais do que a catedral da nação. O culto cerimonial de Javé no templo de Salomão seguia o padrão do antigo e difundido culto das monarquias no mundo contemporâneo, o mito e ritual do deus como criador e rei, e do rei humano como o filho divino e símbolo da vida do povo. Assim Javé veio a ser adorado com pompa e esplendor, enquanto as características sociais e as exigências éticas da tradição do pacto mosaico eram deixadas em segundo lugar. O caráter peculiar do próprio Javé e, com isso, seu particular direito ao serviço de seu povo, tendiam a perder-se de vista, quando ele se tornou apenas um dos muitos deuses nacionais no vasto mundo.


Israel Entre as Nações


O mundo dos profetas tinha horizontes mais vastos do que o reino de Davi em sua máxima extensão ideal. A estrada real nas nações, na paz e na guerra, atravessava o corredor palestiniano. Sucessivas ondas de invasão do deserto, das planícies mesopotâmicas e das montanhas do Norte acrescentavam sua quota ao sangue e cultura dos canaanitas. No décimo quinto século a. C., a Palestina tinha-se tornado uma parte do império egípcio e, embora a efetividade do

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contrôle egípcio variasse, a influência cultural egípcia tornou-se da máxima importância. Os filisteus que se estabeleceram na extremidade sul da planície marítima, cêrca de 1200 a.C., e cuja luta com Israel pelo contrôle da Palestina levou à consolidação das tribos em um reino, foram também eventualmente absorvidos na comunidade israelita. As íntimas relações comerciais e culturais mantidas com os fenícios são ilustradas por episódios bem conhecidos nos reinados de Davi, de Salomão e de Acabe (39).

O estabelecimento da monarquia só foi possível porque o Egito estava fraco e incapaz de controlar seu antigo domínio na Palestina. Depois da morte de Salomão, o faraó Sesonc invadiu o país e pilhou Jerusalém, numa aparente tentativa de abalar o poder crescente de Roboão; mas não foi feita nenhuma tentativa de ocupação permanente. Outra invasão dêsse tipo foi vencida pelo neto de Roboão, Asa. Depois disso, durante dois séculos não há registro do aparecimento de exércitos egípcios na Palestina, até que em 700 a. C. Sabaca (chamado Sô, em II Re 17.4) veio em socorro de Judá durante o cêrco de Jerusalém por Senaqueribe, da Assíria.

A maior potência do mundo então era a Assíria, chamada com razão «cruel Assíria», por causa dos novos métodos de brutalidade na guerra estabelecidos pelo agressivo Assurnasirpal, no IX século. O primeiro movimento da Assíria em direção ao poder tinha sido feito dois séculos antes, quando ela acabou com os impérios hitita e egípcio. Agora foi feito nôvo avanço em direção do Mediterrâneo, e em 853 a. C. Acabe, de Israel, foi um dos doze aliados que lutaram e detiveram o grande Salmanasar III em Karkar, no vale do Orontes; embora pouco mais tarde Jeú, sucessor de Acabe, fôsse forçado a pagar-lhe tributo. Ainda no século VIII, depois de um intervalo de tumulto interno, os assírios moveram-se para o ocidente, e nôvo alarme se espalhou através da Síria e Palestina. Em 734 a. C. o reino do Norte de Israel foi desmembrado e muitos de seus cidadãos deportados; em 722, Samaria foi capturada e a existência política do reino

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do Norte terminou. Judá tornara-se tributário, como medida de precaução, em 734, e continuou a ser estado vassalo até que o império assírio caiu, mais de um século depois. Apenas uma vez aderiu Judá às revoltas periódicas dos povos submetidos, em 701, tendo como conseqüência seu território devastado por Senaqueribe, e muitos de seu povo levados embora como cativos. O cêrco de Jerusalém tornou-se memorável pela ação do profeta Isaías, e seu livramento foi atribuido a um milagre.

Para o fim do VII século, esgotada por 200 anos de guerra e enfraquecida ainda mais por atacantes bárbaros do Norte, a Assíria caiu, pelos ataques conjugados dos medos e caldeus. Este povo, que tinha estabelecido a sede do seu poder em Babilônia, empenhava-se agora numa luta mortal contra o Egito pela herança do império assírio mundial. Nesse meio tempo, Josias de Judá declara sua independência em 621, depurando do culto de Javé todos os traços de influências assírias e de outras procedências. Em 608, Josias foi morto pelos egípcios, e um preposto do faraó foi colocado no trono de Judá, três anos mais tarde, as ambições egípcias foram finalmente frustradas no campo de batalha de Carquemis, Judá se tornou um estado satélite vassalo de Babilônia. Mas sua fidelidade vacilava. Um partido pró Egito agia ativamente na política interna, e a segunda de duas revoltas resultou na destruição de Jerusalém por Nabucodonosor, em 586 a. C., e na deportação de seus cidadãos principais e o fim da monarquia davídica.


História Política dos Reinos Gêmeos


De Davi até à queda de Jerusalém uma linhagem ininterrupta de reis governou em Judá, enquanto, em sua história separada de cêrca de 212 anos, o reino de Israel ao norte foi governado sucessivamente por reis de dez diferentes famílias. É verdade que a linha judaica dependeu uma vez do tênue fio da vida de uma criança quando, no século IX, a torrente de revolução característica do reino do Norte transbordou para Judá. Mas o fio sustentou-se, e os descendentes de Davi sentaram-se em seu trono por dezoito gerações.

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Roboão de Judá, cuja loucura tinha dividido em dois o reino de Davi, continuou a considerar os israelitas como rebeldes, e iniciou as hostilidades, que continuaram esporadicamente por cinqüenta anos. O apêlo a Damasco por parte de seu neto Asa, pedindo ajuda contra o reino do Norte, começou uma longa série de guerras entre os sírios e Israel, das quais Judá derivava pouco benefício. Pois o rei judaíta seguinte, Josafá, embora na aparência um aliado, figura na humilhante posição de receber ordens do rei de Israel para arriscar a vida, a fim de proteger a do outro no campo de batalha (40). O filho e o neto de Josafá casaram na família real do Norte, e foi uma rainha israelita que herdou o trono de Judá, quando os reis do Norte e do Sul foram simultâneamente assassinados por Jeú (41).

A história do reino israelita, ao norte, é uma seqüência de assassínios. Somente Omri e Jeil fundaram dinastias que duraram mais de duas gerações, e nada menos de sete reis tomaram o trono assassinando seu ocupante O grande Omri foi o sobrevivente de uma luta sanguinária entre três pretendentes ao trono, já manchado de sangue.

Omri pode ser chamado «o Davi do Norte», pois lançou os fundamentos do poder do reino do Norte. O livro de Reis dedica-lhe apenas um versículo, em adição às fórmulas estereotipadas dos anais (42); porque os historiadores religiosos judeus não estavam interessados nas realizações de seus rivais. Mas de fontes extrabíblicas, tanto quanto do que é incidentalmente registrado no Velho Testamento, podemos medir a grandeza de Omri. Ele é o primeiro rei israelita ou judaíta a ser mencionado por nome em inscrições estrangeiras, e Israel era ainda conhecido como «a terra de Omri» no reinado de Jeú, que tomara o trono do neto de Omri. Como Davi, Omri demonstrou astúcia e capacidade estratégica quando fundou uma nova capital, Samaria, num local independente de associações tribais, de grande fortaleza natural, perto das grandes rotas comerciais, isolado, contudo, entre as colinas. Como Davi ainda, Omri fortificou e embelezou sua capital, estendeu seu poder por meio de conquistas estrangeiras, estabeleceu intimas relações com Tiro e pôs ponto

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final na luta intestina com o outro povo de Yahweh. No profeta do VIII século, Miquéias (6:16), há uma referência curiosa a respeito dos «estatutos de Omri», aparentemente um código de comercialismo individualista, que estava tomando o lugar da antiga economia comunitária do passado de Israel.

O filho de Omri, Acabe, não foi como Salomão para com seu pai Davi. Foi um rei mais capaz do que Salomão, e um sucessor à altura de Omri. O livro de Reis consagra seis capítulos ao seu reinado, porque foi também o período do profeta Elias (43). Israel agora está debaixo da sombra da ameaça assíria. Duas notáveis batalhas de Acabe contra Damasco (44), resultaram provavelmente de uma tentativa da parte de Damasco para forçá-lo a aderir à aliança anti-Assíria. Eventualmente Acabe fêz isso, e contribuiu com o maior contingente de carros de guerra para as fôrças aliadas, que enfrentaram Salmanasar III em Karkar. Internamente, em tempo de paz, Acabe dedicava-se à construção de cidades e de uma casa, ou palácio, «de marfim», que se tornou famosa, e dos remanescentes da qual têm sido recuperados entalhes de marfim, em tempos modernos (45).

O fim de seu reinado encontra Acabe, de nôvo, em guerra com Damasco. I Reis 22 dá um relato circunstanciado da batalha para recuperar Ramote-Gileade, e do estratagema com o qual Acabe esperava que o rei judaíta atraísse o fogo do inimigo, enquanto ele mesmo lutaria despercebido nas fileiras. Mas enquanto o homem propõe, Deus dispõe, e o historiador não pode deixar de estender-se com amarga satisfação sôbre o fim do marido de Jezabel e inimigo de Elias (46).

O conflito religioso entre Acabe e Elias girara em torno da crescente influência do culto de Melearte, o Baal de Tiro. Esse culto tinha sido introduzido por Jezabel, espôsa de Acabe, e filha do rei-sacerdote de Tiro, com escândalo para aquêles que prezavam a tradição javista que fizera de Israel uma nação. Não foi um conflito inteiramente doutrinário,
pois o javismo sancionava um estilo de vida que era antagônico ao nôvo comercialismo, ao absolutismo dos reis e à

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divisão da sociedade em classes. O assassínio judicial de Nabote por Jezabel, a fim de que o rei pudesse possuir sua vinha, feriu as próprias raizes de apêgo do israelita à terra de sua família. A velha ordem da tradição tribal ainda persistia, e os costumes religiosos e econômicos eram tão entrelaçados que a revolta contra as novas fôrças, ameaçadoras do estilo tradicional, veio sob a égide de um tipo de javismo puritano. E «puritano» nem sempre é sinônimo de manso e gentil.

Elias começou assim uma revolução em nome da «religião dos velhos tempos» revolução que terminaria numa orgia de sangue em Jizreel e Jerusalém. A igreja convocou o braço secular para expurgar o Estado, quando Elias providenciou a unção de Jeú ben Ninsi como rei de Israel (47). Se violência, batalha, assassínio e morte repentina fizessem a obra de Javé, Jeú seria o homem. A história de sua selvagem corrida a Jizreel e da matança de dois reis e uma rainha é uma das mais vívidas da Bíblia (48). Isso foi somente o comêço dos horrores. Todos os príncipes reais de ambas as dinastias, que Jeú pôde encontrar, foram mortos, e os adoradores de Baal tírio chacinados quando estavam indefesos no seu templo. Jeú escusava essa orgia de sangue invocando o nome de Deus; encontrando-se com o chefe da seita puritana dos recabitas convidou-o alegremente a testemunhar seu «zêlo para com Javé» (49). Foi assim que a dinastia de Omri teve um terrível fim.

O rei de Judá também pereceu nas mãos de Jeú. Mas em Jerusalém Jeú foi igualado por alguém tão rápido e brutal como ele mesmo, Atalia, a rainha-mãe, filha de Acabe. Vendo que seu filho, o rei, estava morto, ela matou a família real judaica até o último (conforme pensava), e se estabeleceu no trono. Mas seu neto infante foi salvo e escondido, até que seis anos mais tarde, foi colocado no trono pelo sacerdócio de Jerusalém e pela guarda do Templo. A própria Atalia foi morta, então, e sua morte foi o sinal para o término, em Judá, da revolta contra as pretensões de Baal no domínio de Javé.

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O sangue derramado nessa guerra de religiões enfraqueceu tanto Israel quanto Judá, por uma geração. Mas com a quase contemporânea subida de Jeroboão II ao trono, no Norte, e de Azarias ou Uzias, no Sul (788-786 a. C.), começaram dois longos reinados marcados pela prosperidade e expansão. O livro de Reis é mais uma vez cheio de má vontade em sua informação, dizendo somente de Jeroboão que ele foi grande conquistador, embora não ortodoxo, e de Azarias que ele foi ortodoxo mas leproso. Mas nas profecias contemporâneas e imediatamente subseqüentes de Amós e Oséias, Isaías e Miquéias, recebemos uma vívida descrição da expansão material e desenvolvimento cultural, de elaboradas construções e cerimonial religioso esplêndido. Nova riqueza e luxos faziam violento contraste com a nova pobreza que era o preço daqueles. Foi um período que produziu fortes personalidades em sua vida multifacetada: soldados, administradores, príncipes, mercadores, escritores e eclesiásticos -- a maioria sem nome. Mas, acima de tudo, deu os profetas, cujos nomes vivem para sempre, porta-vozes de uma ordem moral divinamente sancionada, e da Palavra de um Deus vivo que é dono da História e cuja vontade é o bem.

Os profetas proclamaram a essa sociedade fútil e mundana uma mensagem de condenação, e não demorou muito que a tragédia se realizasse. Dentro de quinze anos após a morte de Jeroboão, Samaria tinha caído e a terra era uma província assíria. Pouco mais tarde, Judá foi devastada pelos exércitos de Senaqueribe, e embora sua dinastia, como vimos, sobrevivesse ao império assírio, haveria logo de cair ante seus sucessores babilônicos.


NOTAS E CITAÇÕES BÍBLICAS

CAPITULO II

(1) Por exemplo, Am 5.25; Os 9.10; 11.1; ver adiante pp etc.
(2) I Rs 19; Mq 6.4, 5; Os 13.4.
(3) Jr 35.6, 7.
(4) Mt 1.1-17; Lc 3.23-28.
(5) Gn 35.20, cf. I Sm 10.2.
(6) Gn 15.2, 3; I Sam 1.
(7) Gn 29.32-35.
(8) Cf. Gn 2.24; 31.43; Jz 15.1.
(9) Gn 4.23, 24; II Sm 3.27; cf. 2.23.
(10) Dt 4. 41, 42; Ex 21.13, 14.
(11) Gn 7.1, 13; 46.5-7; 50.22, 23.
(12) Jz 6. 34; cf. 6.11; Nm 1.2.
(13) I Cr 2; Jz 1.11ss. cf. Meek, «Hebrew Origins», pg. 124
(14) Gn 15.8-21; 31.44, 54.
(15) Êx. 24.5-8.
(16) I Sm. 18.1, 3.
(17) Êx 20.17; Gn 15.2, 4; 24.2.
(18) Êx 18.21-26; cf. I Sm 13.12.
(19) Note-se também, em Am 8.5 e II Rs 4.23, a associação de Lua Nova, e Sábado.
(20) Quantas e quais tribos participavam do pacto original é outro problema. Estamos cuidando aqui das tradições posteriores «agregadas».
(21) Jr 7.9, 10; SI 24.3, 4.
(22) Cf. H 1. 16, 19, 21, 27-33.
(23) Cf. Garstang: «The Heritage of Solomon», pp 41ss.
(24) SI 126.6. O costume originou-se na lamentação pela morte do deus da fertilidade, simbolizada no sepultamento da semente. Cf. Ez 8.14 e 1 Co 15.36.
(25) Cf. Is 5.1, 2.
(26) I Rs 14.23.
(27) Gn 28.18, 22; I Sm 9.12, 19, 22-25.
(28) A princípio, aproximadamente; depois, sete semanas exatamente; cf. Ex 23.14-16; Lv 23.15, 16.
(29) Cf. Leslie: «Old Testament Religion», pp, 40-44.
(30) Jz 8.35; I Cr 8.33; 12.5.
(31) Jz 5.
(32) I Rs 21.3.
(33) Lv 25.8-17.
(34) Lv 25.23.
(35) Em 1932-33, foram encontrados por N. Glueck, 56 km a sudeste do Mar Morto, remanescentes de extensas instalações de indústria de cobre, as quais datam dêsse período.
(36) Cf. Dt 17.16, e, Oesterley & Robinson: «History of Israel» vol I, pp 257.
(37) I Sm. 8.11-17.
(38) Mt 25.29.
(39) Cf. II Sm. 5.11, 12; I Rs 5; 7.13s; 16.31, 32.
(40) I Rs 22.30.
(41) II Rs 8.26, 27; 11.1-3.
(42) I Rs 16.24.
(43) I Rs 16.29-22.40.
(44) I Rs 20.
(45) I Rs 22.39; Am 3.15; SI 45.8.Cf. «Palestine Exploration Fund Quarterly Statement» janeiro de 1933.
(46) I Rs 22.37, 38.
(47) II Rs 9.1-10.
(48) II Rs 9.16-37.
(49) II Rs 10.15-17.




Fim da primeira parte de «Profetas de Israel: Comunais, Acratas e Anticlericais».


Primeira parte: http://www.oocities.org/projetoperiferia5/profetas1.htm
Segunda parte: http://www.oocities.org/projetoperiferia5/profetas2.htm
Terceira parte: http://www.oocities.org/projetoperiferia5/profetas3.htm
Quarta parte: http://www.oocities.org/projetoperiferia5/profetas4.htm
Quinta parte: http://www.oocities.org/projetoperiferia5/profetas5.htm


 

Edição Eletrônica pelo Coletivo Periferia
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