B U R E A U    D O S    S E G R E D O S    P Ú B L I C O S


 

A Relevância de Rexroth

 

Índice

Capítulo 1: Vida e Literatura

Capítulo 2: Magnanimidade e Misticismo

Capítulo 3: Sociedade e Revolução

Notas e Bibliografia

 

Capítulo 1: Vida e Literatura

 

REXROTH (antes de iniciar sua conferência): “Bem, sobre o que iremos falar esta noite? Sexo, misticismo ou revolução?”

MULHER NA AUDIÊNCIA: “'Qual é a diferença?”(1)

 

Descendente de uma estirpe de abolicionistas, socialistas, anarquistas, feministas e livre-pensadores, Kenneth Rexroth nasceu em Indiana em 1905. Após uma breve formação culta ficou órfão aos doze anos de idade. Ele passou a maior parte de sua adolescência em Chicago, trabalhando como repórter de um jornal e garçom em um jazz coffee house, misturado com músicos, artistas, escritores, radicais e excêntricos que constituíam o mundo boêmio dos anos 20. Quase que inteiramente autodidata (teve apenas cinco anos de escolaridade formal), ele lia de tudo, escreveu poesia, praticou pintura abstrata, atuou no teatro de vanguarda e dedicou-se a aprender diversas línguas. No final de sua adolescência ele partiu para o interior do país. Durante muitos anos de sua vida no Oeste trabalhou como cowboy cook, wrangler e outros tipos de atividades rurais e camponesas, antes de passar um tempo na cidade de Paris. (2)

Ele narra suas aventuras em An Autobiographical Novel.(3) A primeira impressão que se tem é que ele passou boa parte de seu tempo junto a personagens como — Louis Armstrong, Alexander Berkman, Clarence Darrow, Eugene Debs, Marcel Duchamp, Emma Goldman, D.H. Lawrence, Diego Rivera, Carl Sandburg, Edward Sapir, Sacco e Vanzetti, que volta e meia cruzavam seu caminho, uma índia que o introduziu na yoga sexual, membros da gang de Bugs Moran que mais tarde virou consultor de filmes de gangsters em Hollywood, poetas loquazes que lhe mostraram “as três organizações mais futriqueiras da vida moderna, os anglo-católicos, os trotskystas, e os homosexuais”, e uma multidão de outras pessoas — anarquistas, comunistas, agitadores, dadaistas, surrealistas, ocultistas, prostitutas, malandros, policiais, juízes, carcereiros, vagabundos, sertanejos, lenhadores, cowboys, indígenas. . . . An Autobiographical Novel é um livro fascinante, não apenas por narrar o incrível range de experiências de Rexroth, mas por sua evocação à subcultura radical-libertária norte-americana ao longo dos primeiros anos do século, que tanto caracterizou a boemia dos anos 20 e que prenunciou a contracultura no resto do mundo. “O que eu estava testemunhando era o desenvolvimento em alguns lugares em Chicago, Nova Iorque, e Paris, de um tipo de cultura que se esparramava pelo mundo inteiro. Naquela geração, todas as pessoas com qualquer tendência à boemia desde Sydney a Oslo fizeram as mesmas coisas que nós fizemos, naqueles dias todos nos conhecíamos uns aos outros.” (4)

An Autobiographical Novel é interrompida em 1927 [uma edição posterior dá continuidade à história em 1949], quando Rexroth muda-se para San Francisco. (Ele disse que gostava dali porque dava acesso às montanhas do Oeste, longe da dominação cultural de New York, e virtualmente a única grande cidade norte-americana que não estava tomada pelo puritanismo, mas por “jogadores, prostitutas, malandros, e caçadores de fortuna”). Nos anos trinta e quarenta ele exerceu um importante papel entre vários grupos libertários, por direitos civis e pacifistas (durante a Segunda Grande Guerra ele foi um objetor de consciência), representando um dos espíritos mais atuantes no fermento literário e cultural que conduziram a Renascença do pós-guerra em San Francisco. Durante os anos cinqüenta e sessenta ele escreveu poemas, peças, ensaios e críticas sociais, traduziu poemas de muitas línguas, participou de crítica literária e de muitas outros programas não-comerciais na rádio KPFA, sendo pioneiro na leitura poética do jazz.

Em 1968 mudou-se para Santa Barbara, Califórnia, onde viveu ministrando cursos de poesia e música underground alternados com muitas longas visitas ao Japão, até sua morte em 1982.

* * *

Tive a felicidade de conhecê-lo pessoalmente nos anos sessenta, quando fui aluno no San Francisco State College. Durante toda sua vida ele não via o mundo acadêmico com bons olhos (ele chamava as universidades de “fog factories”), mas naquela época, considerado  “relevante” na educação, era freqüentemente convidado para ministrar o curso que quisesse. Sua “classe”, que era certamente a mais instrutiva de que tive conhecimento, consistia simplesmente de discussões abertas sobre qualquer assunto, às vezes alternadas com performances de grupos teatrais.

Em termos gerais ele foi muito simpático ao recente desenvolvimento contracultural em que a maioria de nós se envolveu, contudo, ele temperava nosso ingênuo entusiasmo com uma alta dose de humor e ceticismo, ampliando nossas perspectivas — comparava Bob Dylan com cantores franceses underground dos quais nunca tínhamos ouvido falar, ou declarava que os maiores artistas psicodélicos foram os místicos medievais que pintavam suas próprias visões, ou entusiasticamente aprovava as mais radicais ações antiguerra, ao mesmo tempo em que nos alertava contra as manipulações da esquerda burocrática. Ocasionalmente, chamava a atenção contra alguma atrocidade social ou exemplo de personalidade mesquinha, ele censurava e atacava severamente estas coisas. Geralmente ele era genial em suas brincadeiras com as pessoas. Ele raramente fazia de seus pontos de vista um cavalo de batalha, mas volta e meia ele lançava na conversa um conto ou uma anedota que sutilmente nos despertava lançando uma nova luz sobre aquele assunto. Muitos meses ou anos depois ainda nos lembrávamos dessas coisas, e apreciávamos quão modestamente e habilmente ele as fazia.

Sua voz arrastada e grave lembrava W. C. Fields, e em suas aparições públicas ele adotava uma espécie de oratória fieldsiana pela maneira como se expressava. “Ele evoca o tempo [olhando com nostalgia para o passado] quando eu conversava com Lewis Mumford — um homem com o qual geralmente concordava [murmurando pelo canto da boca] — quando ele dizia . . .” Essa irônica personalidade showbiz chamava bastante a atenção, mas acho que ele usava esse estilo principalmente para dar um ar solene aos seus pontos de vista: Para um ouvinte casual descuidado toda aquela ironia podia ser vista apenas como um sinal de pompa, jactância, ou "espírito de gracejo" em seus relatos e anedotas hilariantes. Sem dúvida ele tinha muita consciência de seus próprios méritos, mas nunca chamava a atenção sobre si mesmo — escrevendo ou falando, ele sempre tendia ao diálogo. Muitos escritores chamam a atenção a todo pequeno achado cada vez que o encontram; Rexroth aborda pontos de vista realmente originais como se eles fossem meras banalidades amplamente conhecidas, ou atribui seu próprio mérito a outras pessoas — foram muitos os escritores que ele elogiou como maduros, corajosos, extensamente instruídos, cultos, etc., que o foram realmente bem menos do que ele próprio. Ele foi reputado de ser às vezes bem intratável, mas para mim ele lembra genialidade e magnanimidade.

Mas não o conheci o suficiente para falar sobre sua vida pessoal. Este livro trata principalmente de seus escritos — e só com certos aspectos deles. Eu o escrevi por duas razões. Eu pretendi selecionar tanto aquilo que achei precioso como aquilo que discordei nesse escritor que disse muito para mim; e encorajar outras pessoas a lê-lo. Espero, cedo ou tarde, ser bem sucedido nessa empreitada.

* * *

Alguns dos primeiros poemas de Rexroth se assemelham aos poemas "cubistas" de Gertrude Stein, Guillaume Apollinaire e Pierre Reverdy: os quais quebram e reestruturam elementos verbais da mesma forma que as pinturas cubistas fazem com elementos visuais. Eles também refletem em seus estudos as canções primitivas e a lingüística moderna. Ele diz que este tipo de ecletismo experimental que compartilhou com muitos outros poetas dos anos vinte, originou-se da convicção de que “o idioma atual de sociedade degradou-se em favor da exploração sob a qual se submeteu, e que era necessário achar aberturas na estrutura de comunicação ainda fluente e pela qual a mente do leitor poderia ser atingida”. Eventualmente ele percebeu que poderia alcançar os mesmos efeitos por meios mais acessíveis. Exceto algumas poucas exceções, a maioria dos seus poemas são bem diretos, necessitando de pouca ou nenhuma explicação.

Um crítico acadêmico certa vez referiu-se sarcasticamente a Rexroth, Gary Snyder e Philip Whalen como “membros da bear-shit-on-the-trail school of poetry". [N.T.: algo semelhante a "escola poética do-rastro-de-merda]”(5)

Rexroth, naturalmente, considerou isso um elogio. Ele freqüentemente passava muitos meses nos bosques e montanhas, e vários dos seus poemas refletem as experiências lá vividas. Um dos seus mais belos poemas foi feito ao lado de uma cachoeira enquanto lia "The Signature of All Things" de Jakob Boehme, o místico visionário que “via o mundo como que fluindo numa eletrólise de amor”.

Through the deep July day the leaves
Of the laurel, all the colors
Of gold, spin down through the moving
Deep laurel shade all day. They float
On the mirrored sky and forest
For a while, and then, still slowly
Spinning, sink through the crystal deep
Of the pool to its leaf gold floor. . . .
The wren broods in her moss domed nest.
A newt struggles with a white moth
Drowning in the pool. The hawks scream,
Playing together on the ceiling
Of heaven. The long hours go by.

[Os dias de julho pintam as folhas
Do loureiro de todas as cores
Do ouro, que giram caindo pela sombra do loureiro
Pintando todo o dia de comoção. Elas flutuam durante algum tempo
No céu refletido e na floresta, e então,
Girando ainda lentamente, afundam no cristal profundo
Do lago em seu chão de folhas de ouro.
A corruíra observa o musgo da cúpula de seu ninho.
Uma salamandra luta com uma traça branca que
Se afoga no lago. Os falcões gritam, enquanto
Brincam junto ao teto
Do céu. As longas horas se arrastam.](6)

Muitos dos seus poemas de amor ocorrem na natureza, tanto que depois de uma conferencia lhe perguntaram, "Sr. Rexroth, você nunca faz amor entre quatro paredes?" No poema abaixo ele e sua amada estão deitados em uma canoa ao lado de uma vitória-régia em algum lugar no meio oeste dos Estados Unidos.

Let your odorous hair fall across our eyes;
Kiss me with those subtle, melodic lips. . . .
Move softly, move hardly at all, part your thighs,
Take me slowly while our gnawing lips
Fumble against the humming blood in our throats.
Move softly, do not move at all, but hold me,
Deep, still, deep within you, while time slides away,
As this river slides beyond this lily bed,
And the thieving moments fuse and disappear
In our mortal, timeless flesh.

[Deixe o aroma de seu cabelo cair em nossos olhos;
Beije-me com esses lábios sutis, melódicos.
Mova suavemente, quase não movendo, separe suas coxas,
Conduza-me lentamente enquanto nossos lábios se roçam
Apalpando o sangue que zumbe em nossas gargantas.
Mova suavemente, não mova nada, mas me segure,
Profundamente, segure mais um pouco, bem fundo dentro de você, enquanto o tempo desliza lá fora,
Como este rio desliza ao longo desta cama delicada,
E os momentos furtivos fundem e desaparecem
Em nossa carne mortal, infinita.](7)

Voltando à cidade, em 1955 ocorre o famoso encontro de Rexroth com Allen Ginsberg que declama pela primeira vez o seu "Howl" ["Uivo"]. Como testemunha de defesa a uma acusação de atentado ao pudor que logo se seguiu, ele confundiu o promotor observando que Ginsberg simplesmente dera continuidade a uma tradição venerável, referindo-se aos profetas bíblicos que denunciaram as iniqüidades de seu tempo. Isto é igualmente verdade no que diz respeito ao próprio Rexroth em "Tu Shalt Kill", uma amarga diatribe antiestablishment escrita um par de anos antes por ocasião da morte de Dylan Thomas, um texto um tanto quanto semelhante e que provavelmente influenciou o poema de Ginsberg:

You are murdering the young men. . . .
You,
The hyena with polished face and bow tie,
In the office of a billion dollar
Corporation devoted to service;
The vulture dripping with carrion,
Carefully and carelessly robed in imported tweeds,
Lecturing on the Age of Abundance;
The jackal in double-breasted gabardine,
Barking by remote control,
In the United Nations . . .

[Você está assassinando a juventude.
Você,
Hiena com face polida e gravata-borboleta,
Nesse escritório de um bilhão de dólares que a
Corporação deu para você tomar conta;
Urubu que goteja carne putrefata,
Negligente e cuidadosamente vestido em tecidos de lã importados,
Dissertando a Idade da Abundância;
Chacal em gabardine com duas fileiras de botões,
Latindo através de um controle remoto,
Nas Nações Unidas. . .](8)

Além destes três temas principais, "sexo, misticismo e revolução", há epigramas satíricos (este aqui aborda a arte culinária britânica) —

How can they write or paint
In a country where it
Would be nicer to be
Fed intravenously?

[Como podem escrever ou pintar
Em um país onde
Seria mais agradável ser
Alimentado por via intravenosa?](9)

Elegias (eis uma em memória de sua primeira esposa, Andrée) —

I know that spring again is splendid
As ever, the hidden thrush
As sweetly tongued, the sun as vital —
But these are the forest trails we walked together,
These paths, ten years together.
We thought the years would last forever,
They are all gone now, the days
We thought would not come for us are here.

[Eu sei que a primavera é novamente esplêndida
Como sempre, o sabiá escondido
Como canta docemente, o sol como é vital —
Mas estas são as trilhas da floresta onde caminhamos juntos,
Estes caminhos, dez anos juntos.
Pensávamos que os anos sempre durariam,
Eles são passado agora, os dias que
Pensávamos não viriam para nós estão aqui.](10)

Cenas familiares (neste aqui que pode parecer estranho para pessoas desta nossa era cada vez mais analfabeta, ele está pescando enquanto um das filhas está sentada por perto lendo Homero) —

Mary is seven. Homer
Is her favorite author.
. . . She says, “Aren’t those gods
Terrible? All they do is
Fight like those angels in Milton
And play tricks on the poor Greeks
And Trojans. I like Aias
And Odysseus best. They are
Lots better than those silly
Gods.”

[Mary tem sete anos. Homero
É o autor favorito dela.
. . . Ela diz, “esses deuses não são
Terríveis? Tudo que eles fazem é
Brigar como esses anjos do Milton
E brincar de enganar esses pobres gregos
E troianos. Eu gosto mais de Aias
E Odisséia. Eles são
Bem melhores que esses tolos
Deuses”.](11)

E uma variedade de outros gêneros numerosos demais para poder citá-los todos — letras de música (melodias populares, tons elizabetanos, Erik Satie, Duke Ellington, Ornette Coleman); meditações budistas no Japão, recitais para koto e shakuhachi (“The Silver Swan,” “On Flower Wreath Hill”); poemas femininos mistico-eróticos o qual ele fingiu ter traduzido de uma jovem japonesa (“The Love Poems of Marichiko”); rimas surreais de Mother Goose e o subversivo “Bestiary” para suas crianças; reminiscências cômicas (“Portrait of the Author as a Young Anarchist”), eróticas (“When We With Sappho”) e nostálgicas (“A Living Pearl”); o memorial das revoluções reprimidas (“From the Paris Commune to the Kronstadt Rebellion”); cartas abertas (“A Letter to William Carlos Williams,” “Fundamental Disagreement with Two Contemporaries” endereçadas a Tristan Tzara e André Breton); e traduções do grego, latin, francês, espanhol, italiano, chinês e japonês (incluindo muitos volumes de poetisas orientais). [Muitos destes poemas estão já disponíveis online neste website.]

Algo especialmente característico da poesia de Rexroth é o modo como ele relaciona os tópicos mais discrepantes e aparentemente até mesmo incongruentes. Embora imerso na natureza, ele sempre permanece atento ao mundo humano, esta justaposição dos dois reinos é entrecortada tanto por sentimentos naturalísticos como por trivialidades civilizatórias. Observando as constelações, ele pressente a Guerra Civil Espanhola (“Requiem for the Spanish Dead”). Escalando as montanhas ele se lembra de Sacco e Vanzetti (“Climbing Milestone Mountain”, “Fish Peddler and Cobbler”). Relações eróticas se entrelaçam evocando elegantes relações matemáticas que ordenam o universo (“Golden Section,” “Theory of Numbers”). Os devaneios de Elegiac vagueiam da poesia para a história e da natureza para a sociedade:

The centuries have changed little in this art,
The subjects are still the same.
“For Christ’s sake take off your clothes and get into bed,
We are not going to live forever.”
“Petals fall from the rose,”
We fall from life,
Values fall from history like men from shellfire,
Only a minimum survives,
Only an unknown achievement.
They can put it all on the headstones,
In all the battlefields,
“Poor guy, he never knew what it was all about.”
Spectacled men will come with shovels in a thousand years,
Give lectures in universities on cultural advances, cultural lags. . . .
This year we made four major ascents,
Camped for two weeks at timberline,
Watched Mars swim close to the earth,
Watched the black aurora of war
Spread over the sky of a decayed civilization.
These are the last terrible years of authority.
The disease has reached its crisis,
Ten thousand years of power,
The struggle of two laws,
The rule of iron and spilled blood,
The abiding solidarity of living blood and brain.

[Os séculos pouco mudaram nesta arte,
Os temas ainda são os mesmos.
“Pelo amor de Deus, tire suas roupas e vá para a cama,
Nós não vamos viver para sempre”.
“As pétalas caem da rosa”.
Nós caímos da vida,
Valores caem da história como os homens no fogo da artilharia,
Só uma pequena parte sobrevive,
Só um desconhecido se realiza.
Podem escrever isso nas lápides,
Em todos os campos de batalha,
“Pobre rapaz, ele nunca soube o que significou aquilo tudo”.
Homens com óculos virão com pás em mil anos,
Darão conferências em universidades em fomentos culturais, atrasos culturais. . .
Este ano nós fizemos quatro grandes progressos,
Acampamos durante duas semanas no limite da floresta,
Observamos Marte bem longe da terra,
Observamos a aurora negra da expansão de guerra
Sob o céu de uma civilização decadente.
Estes são os últimos terríveis anos da autoridade.
Essa doença alcançou sua maior crise,
Dez mil anos de poder,
De luta entre duas leis,
Do governo do ferro e derramamento de sangue,
Da solidariedade permanente entre o sangue vivo e cérebro].(12)

Eu cito esta passagem bem típica para dar uma idéia do tom e do fluxo de sua poesia; mas é difícil precisar sua amplitude e sua complexidade sem citar páginas inteiras. Tudo isso pode ser visto especialmente nos “devaneios filosóficos” retirados de Collected Longer Poems. O mais longo e mais interessante, The Dragon and the Unicorn, descreve uma viagem que fez à Europa, a narração cronológica de suas viagens e encontros é entremeada por perspicazes comentários culturais e políticos e por passagens filosóficas ou místicas bem abstratas. A última parte funciona como um contraponto à narrativa, movendo-se independentemente, às vezes sem relação aparente com ela; às vezes parecendo fazer um comentário (a descrição de um encontro boêmio é seguido por um discurso sobre o dilema de pessoas isoladas em um mundo de reificação); às vezes colidindo com isto (a denúncia de alguma realidade social miserável é seguida por uma visão de comunidade universal). Rexroth destaca que o comentário destas passagens deveria ser considerado como um grão de sal — elas fazem parte de um diálogo interno e são justapostos freqüentemente com pontos de vista complementares ou contrastantes. Em uma passagem, por exemplo, ele declara: “O único Absoluto é a Comunidade de Amor no final dos Tempos”.(13)

enquanto que em outra ele declara: "O Absoluto como uma comunidade de amor. Duvido que eu acredite nisso, mas parece ser a metáfora metafísica mais saudável de todas".(14)

Considero os devaneios filosóficos de Rexroth bem mais interessantes que os trabalhos paralelos de T.S. Eliot e Ezra Pound — dois poetas que ele cordialmente repugnava e cuja influência combateu durante toda sua vida. O melhor que se pode dizer deles é que foram "grandes" poetas (entretanto até mesmo isso é discutível), mas Rexroth é certamente um dos mais sadios e mais sábios. Ele não tem nada do esnobismo de Eliot, e nem um pouco de seu afetamento neurótico. Até mesmo seu aspecto mais ríspido está longe da excentricidade, obsessão e auto-indulgencia de Pound. É possível encarar suas reflexões seriamente sem ter que se dobrar a alguma ideologia reacionária absurda.

Durante o reinado de Eliot, Rexroth considerou a maior parte da poesia americana como "materiais acadêmicos sombrios produzidos por pessoas insignificantes que conduzem, entorpecem, diminuem, a vida acadêmica. Em determinados círculos imaginava-se quão terrivelmente antiquado era escrever sobre qualquer coisa tão vulgar como amor, morte, natureza — coisas reais que acontecem com pessoas reais".(15)

Ele freqüentemente alertava as pessoas contra esse tipo de atitude, insistindo em sua relevância. Falando da poesia do jazz, ele a considerava apesar de suas aparentes inovações "um retorno à poesia da música e ao entretenimento público como nos tempos de Homero ou dos trovadores. Quando os poetas lidavam com aspectos da vida que tendiam a ser deixados de lado".(16)

Quando Eliot pontificou a necessidade da "tradição" qualificando William Blake como um excêntrico ingênuo que compôs seu sistema do nada, Rexroth observou: "A tradição de Sr. Eliot remonta Aquinas interpretado pela L'Action Française. A de Blake remonta à Teologia de Memphite e os Textos da Pirâmide".(17)

Enquanto os poetas acadêmicos seguiam a doutrina pseudo clássica de Eliot que defendia uma poesia "impessoal", Rexroth escrevia poemas clássicos em seu mais verdadeiro sentido, amadurecido com respostas pessoais aos reais assuntos de vida -- diretamente na tradição de Sappho, Petronius, Hitomaro, Tu Fu e os outros poetas clássicos ele mesmo traduziu.

Rexroth às vezes desqualificava suas composições como mero "jornalismo" escrito para pagar o aluguel enquanto procurava trabalho como poeta, mas nesse ponto que eu nunca o levei a sério. Ele é certamente um de meus poetas favoritos, mas como ensaísta acho que ele tem um estilo único. Não conheço nenhum outro tão brilhante e saudável, com uma mente tão ampla, expressiva e abrangente. Ele intitula uma de suas coleções de ensaios aludindo ao senso original de Montaigne da palavra ensaio: tentativa, teste, experiência, tentar envolver-se com a realidade. Um das composições nesse volume homenageia outro escritor com quem se assemelha de vários modos: "Aqueles que riem, cuspindo tabaco, enquanto lêem livros de viagem, dando a Mark Twain a reputação de número um, e torcem o nariz para autores como Van Wyck Brooks, estão fundamentalmente certos. Mark Twain sempre dava uma dimensão humana a São Pedro, às pirâmides ou ao Panteão".(18)

Rexroth é assim. Embora mais sofisticado que Twain, é menos granuloso, mas tem o mesmo gosto, a mesma ironia mundana-e-sábia, a mesma travessura, ceticismo, aquela perspectiva que nasce da terra e eleva-se acima dela, como tão bem pode ser visto em seu essay on American humor:

Estas são as grandes palavras chave — clássico — épico — homérico — humor. O sentido do consistente princípio de incongruência com o qual a Natureza, além de toda nossa ciência e filosofia, realmente opera. A compreensão de que a versão oficial de qualquer coisa é provavelmente falsa, e de que toda a autoridade está baseada em fraude. A coragem para confrontar e agir diante destas duas conclusões. A avaliação da alegria maravilhosa dos processos de procriação e eliminação humana. A aceitação do fato principal que ninguém fez isso que modo que tudo — simplesmente aconteceu..... A vida é sobretudo uma grande piada — mas só os bravos atingem esse ponto essencial.(19)

Eu não quero dar a impressão que ele não passava de um filósofo de barril de bolacha [N.T.: no original crackerbarrel]. A maioria dos autodidatas têm muitos pontos cegos, mas Rexroth parece quase ter explorado sistematicamente todas as áreas do empreendimento humano, muitas delas profundamente. Sua gama de leituras era verdadeiramente surpreendente — histórias, livros de receitas, guias da natureza, prospeções geológicas, informes etnológicos, polêmicas políticas, tratados teológicos, uma Encyclopaedia Britannica ambulante. . . Apenas na rádio KPFA ele comentou vários milhares de livros, o que representou apenas uma linha secundária de público-serviço (um programa de meia hora todas as semanas durante vinte anos).

Mesmo assim ele não parece a imagem do livresco. Se ele escreve sobre ciência chinesa antiga, American Indian songs, as pinturas de Van Gogh ou “Rimbaud como Aventureiro Capitalista”, toda essa erudição é digerida, conectada, e fundamentada pela experiência pessoal. Suas composições jazzísticas [veja Some Thoughts on Jazz e Five More Articles on Jazz], por exemplo, revelam um conhecimento da sonoridade em seus aspectos técnicos (comparáveis à música clássica, etc.), mas ele destaca acima de tudo sua história humana, seus papéis sociais, as vidas de seus criadores, as condições de seu desempenho. Recordando a dança nos clubes de jazz nos anos vinte, narrando uma conversação com Charlie Parker ou Charlie Mingus sobre a mística das batidas de jazz, ou (discutindo a conexão da música com os ritmos do sexo, da dança e do trabalho), ou fazendo observações como: “qualquer pessoa com alguma experiência na área sabe que o ritmo de uma verdadeira balada de vaqueiro ocorre em ‘tempo de trote', mas que você pode mudar o trote de seu cavalo mudando o ritmo de sua canção”.(20)

De vez em quando, particularmente nos artigos mais efêmeros tirados no último minuto, ele aparece com alguma extravagancia ou até mesmo um pronunciamento absurdo. Mas em geral acho suas opiniões muito bem fundadas. Você pode não concordar com tudo que ele escreve (muita coisa em todo caso pode ser apenas uma questão de gosto), mas o que ele diz é quase sempre provocante. Criticando a superficialidade das sátiras de Ionesco, ele diz: "Uma arte satírica que só bate em cachorro morto..... leva a audiência a um confortável sentimento de divertida superioridade".(21)

Rexroth prefere esvaziar suas próprias ilusões para tornar as coisas mais claras ao entendimento.

Ele disse que tentava escrever como falava, e conseguia. Sua autobiografia e muitas das suas composições não eram na realidade de forma alguma "escritas", mas faladas ad libitum, registradas e transcritas com um mínimo de edição. Em alguns momentos, porém, ele parece divagar, pular espontaneamente de um tópico ao outro, quando ele termina você percebe quão inteiramente ele chega ao coração do assunto. Em sua composição sobre Marcus Aurelius ele procura demonstrar o quanto a filosofia degradou-se desde que se afastou dos assuntos reais da vida. É fácil perceber isso nessa tirada divertida, inesquecível: "Se a mãe de um estudante de faculdade morresse, sua namorada engravidasse, adquirisse uma doença repugnante, ou decidisse se tornar um objetor de consciência, ele procuraria seu professor de filosofia para pedir conselho?"(22)

Ele sempre procura o fundamento das coisas. Sua essência usualmente pode ser compreendida na primeira leitura, mesmo que você não tenha familiaridade com os livros e idéias a que ele recorre; mas sempre há bastante espaço para você afundar seus dentes, e muitas sugestões intrigantes para explorações adicionais. Eu li algumas de suas composições tantas vezes conheço-as praticamente de cor, contudo cada vez que volto a elas descubro coisas que antes não tinha notado. Até mesmo quando ele aborda tópicos pelos quais não tenho nenhum interesse particular, ainda acho difícil de passar por cima. Não apenas por ele ter um estilo atrativo, mas pela amplitude de sua visão colocar sua abordagem sob uma nova perspectiva.

Ele tem um estilo atrativo, reconhecível, contudo tão matizado quanto seus tópicos. Ele pode ser livre e calmo ("muitas das músicas de Mozart parecem um menino assobiando enquanto caminha em direção à piscina"),(23)

ou completo em seu comentário sobre Hamlett ou Chandler: “O segredo deste tipo de obra é que não compra nem vende nada".(24)

Com apenas uma frase ele evoca o mundo Iídiche de Isaac Singer ("esses argumentos apaixonados que borrifavam os bigodes com nata azeda")(25)

ou abordando o mordente e cínico estilo de Tácitus (“um estilo semelhante a uma bandeja de instrumentos dentais”).(26)

Mas ele sabe que "estilo nunca é apenas uma questão de estilo, mas também o sinal externo, a vestimenta de um estado espiritual interno".(27)

Se ele discute a prosódia de um poeta, não como mero exercício acadêmico: aquilo que ele mostra reflete um modo de olhar as coisas, uma resposta para vida. Por exemplo, Denise Levertov possui “um tipo de graça animal da palavra, como o pulo de um gato ou o vôo de uma gaivota. É a intensa vivacidade de um amor doméstico alerta — o casamento da forma com o conteúdo em poemas que sempre celebram um tipo de casamento perpétuo de duas pessoas tidas como duas sensibilidades responsáveis”. (28)

Lendo suas discussões estéticas volta e meia você dá de cara com alguma reunião social mundano-sábia ou alguma conexão moral ou psicológica. "A interioridade do caráter [nos romances de Defoe] é revelado por uma elaborada descrição exterior. Quando eles falam sobre seus próprios motivos, sua psicologia, suas moralidades, suas auto-análises e auto-justificações elas são lidas às avessas, como é naturalmente verdadeiro na maioria das pessoas".(29)

Como carvoaria das imbecilidades culturais de massa, Rexroth pode ser tão divertido quanto H.L. Mencken —

Esse material ["literatura proletária" maoísta] é ridículo, parece aquela história de escola dominical do século dezenove onde o pequeno menino romano ajuda sua irmã escapar dos leões, desafia o imperador, resolve as coisas para São Paulo e vai para céu.(30)

E ainda com severidade —

A televisão é projetada para despertar os desejos mais perversos, sádicos, aquisitivos. Ou seja, um programa infantil é uma real visão de inferno, isso acontece apenas porque estamos tão acostumados que nem percebemos. Se Virgílio, Dante ou Homero, pessoas que tiveram visões do inferno, vissem esses programas, certamente ficariam assustadas.(31)

Aquilo que há de mais conservador em Rexroth lembra o que há de mais profundo e radical em Mencken. Mas enquanto Mencken se deleita com virtuais e indiscriminadas agressões verbais em favor de sua própria causa, a desilusão de Rexroth se situa sempre no contexto de uma visão positiva. Por mais enfurecido ou pessimista que eventualmente possa ser, ele é um mundo aparte daquele cinismo lisonjeiro típico dos modernos entrelaçamentos humanos que não são outra coisa senão uma relação dependente de amor-ódio, manifestação delirante de alienação cultural. Ele sempre coloca a real vida humana como uma resultante do sistema desumano:

Diariamente todos os estados fazem coisas que, se fossem atos de indivíduos, conduziriam à prisão e freqüentemente à execução. .... A maioria das pessoas, com exceção dos políticos e dos autores, desenvolvem para si mesmos, em segredo, um modo de viver que ignora a sociedade organizada tanto quanto possível. .... Aquilo que consideram "crescimento", "agir com bom senso", é em grande parte uma aprendizagem de técnicas para burlar as forças mais destrutivas ao longo da grande ordem social. O homem maduro vive quietamente, age reservadamente, assume responsabilidade pessoal pelas suas ações, trata os outros com amizade e cortesia, acha a turbulência enfadonha e fica fora dela. Sem esta conspiração oculta de boa vontade a sociedade não duraria uma hora.(32)

Se a maioria das pessoas faz isto ou não, o fato é que Rexroth insinua claramente sua própria ética pessoal. Ele vasculhou suficientemente ao seu redor para ver aquilo que chama de the Social Lie ou a Grande Fraude — sabe que a “versão oficial de qualquer coisa é provavelmente falsa e que toda autoridade está baseado em fraude”. “Um número apreciável de americanos realmente acredita na Grande Fraude da cultura de massa, aquilo que o francês chama de hallucination publicitaire. Eles só sabem o que lêem nos documentos. Eles pensam que é realmente como nos filmes. . . . A arte de ser civilizado é a arte de aprender ler entre as mentiras”.(33)

”Esta é um das pedras de toque básicas de Rexroth. Aqueles que lêem entre as mentiras são pelo menos neste ponto seus aliados, os demais incorrem em erro. “Há muita merda em Lawrence, Miller, ou Patchen — mas seus inimigos são meus inimigos”.(34)

Ele ri de Henry Miller como pretenso pensador profundo ou utópico, mas o aprecia enquanto grande autobiógrafo picaresco com uma imunidade instintiva à Mentira Social:

        Lembra quando leu pela primeira vez? Sem dúvida você pensou que algum dia acharia a verdade nos livros, mas a resposta para os muitos segredos da vida você descobriria ao seu redor. Mas você nunca fez isso. Se estivesse atento, descobriria que livros eram convenções, que a vida difere de um jogo de xadrez. A palavra escrita é uma peneira. A realidade acaba na medida do tamanho e da forma da tela, e de forma que nunca é suficiente.... A maior parte da real dificuldade de comunicação vem da convenção social, da vasta conspiração por concordar em aceitar o mundo como algo que ele realmente não é. . . .

        A literatura é um mecanismo de defesa social. Recorde novamente quando você era uma criança. Você pensou algum dia crescer e encontrar um mundo de reais adultos — pessoas que realmente faziam as coisas funcionar — e entender como e por que as coisas funcionam. ... Então, com o passar dos anos, você aprendeu, através de experiências mais ou menos amargas, que não existem, nem nunca existiram tais pessoas, em parte alguma. A vida é toda bagunçada, cheia de crianças altas, crescidas mas estúpidas, menos alertas, menos elásticas, e ninguém sabe por que diabos isso acontece — em toda parte, ou em cada lugar. E ninguém se dá conta disso.

        Henry Miller conta. Andersen contou sobre o pequeno menino e as roupas novas do Imperador. Miller é o próprio pequeno menino. Ele conta sobre o Imperador, sobre as espinhas em suas costas, as verrugas na bunda, e a sujeira entre os dedos dos pés. Outros escritores no passado fizeram isto, naturalmente, eles são grandes escritores, realmente clássicos. Mas eles fizeram isto dentro das convenções literárias. Eles usaram as formas da Grande Mentira para expor a verdade.(35)

Eu nunca vi qualquer outro crítico literário escrever algo assim. Rexroth é mais educado e seguro que Miller, mas tem a mesma visão inocente, a mesma falta de reverência para com a "literatura-com-um-capital-L", seja revisando escritores modernos ou reavaliando obras chaves do passado.

A maioria de seus ensaios posteriores estão contidos em dois volumes Classics Revisited.(36)

Esta é certamente uma seleção mais pertinente que a maioria das escolhas dos “cem maiores livros”. Para mencionar apenas uma diferença significante, a maioria de tais listas se limitam a obras ocidentais — um provincialismo que é ridículo em nossos dias e em nosso tempo. Rexroth visita a maioria do clássicos ocidentais reconhecidos, mas ele também introduz o leitor a vários outros que são igualmente interessantes, inclusive obras orientais básicas como Mahabharata, Tao Te Ching, e o que ele considera os dois maiores romances do mundo, The Tale of Genji de Lady Murasaki e o chinês Dream of the Red Chamber.

Gilgamesh (“a primeira autoconsciência”) uma velha história do Oriente Médio, História de Heródoto, Bhagavad Gita, Finnish Kalevala (“a mais ecológica das epopéias”), a poesia de Tu Fu, os ensaios de Montaigne (“o inventor do ego empírico”), Don Quixote, The Tempest, as memórias de Casanova (“homem natural vivendo no mais alto patamar”), The Red and the Black de Stendhal (“a primeira comédia negra”), War and Peace e Huckleberry Finn ambos são “documentos básicos na história da imaginação” cuja pertinência Rexroth revela nestes pequenos ensaios incrivelmente expressivos. Leste ou Oeste, antigo ou recente, ele supera as distâncias históricas e culturais para fazer conexões de longo percurso. A sensibilidade de Catullus “é a matéria prima das letras de Bob Dylan”. As características de Njal’s Saga “são adultas de um modo desconhecido para o Agamemnon de Homero ou o Swann de Proust”. “A maior parte das grandes baladas britânicas poderiam ser transformadas em jogos de Nô e vice-versa”. Baudelaire chega à seguinte conclusão “nada como o Budismo em toda sua plenitude”.

Parte do interesse destes trabalhos vem naturalmente do seu contraste com o presente, na revelação de como as pessoas em outros tempos e lugares viviam e pensavam. Mas Rexroth sempre destaca as coisas que permaneceram iguais em meio às diferenças. “On the Road de Kerouac difere vastamente de The Satyricon em falta de perspicácia, ironia, e habilidade literária, mas suas características são todas tiradas da mesma classe inalterada”. Les Liaisons Dangereuses de Laclos “assume um mundo como o de nossas celebridades, nossos Jet Sets internacionais. . . . Trata-se de uma descrição de pessoas que conhecemos”.

Alguns escritores pressagiaram nossa condição presente de uma forma bem direta: William Blake “diagnosticou os primeiros sintomas de um mundo doente porque ele os viu como um indicativo de que o homem estava sendo literalmente privado de metade de seu ser. . . . Ele de fato se preocupa com a tragédia épica da humanidade na medida em que ela entra em uma época de despersonalização sem igual na história”. Baudelaire “é o fundador da sensibilidade moderna . . . . Alguns aprendem a lidar com esta sensibilidade. Ele estava sob sua mercê, porque ele a encarnava totalmente. Ele viveu em uma crise permanente de sistema nervoso moral. Sua convicção de que as relações sociais eram uma imensa mentira era fisiológica”.

Em outros casos não há qualquer conexão direta, mas um paralelo luminoso: “Durante a longa guerra com Sparta, a vida ateniense ficou extensamente neurótica. Um tipo novo de doença interpessoal entrou em vigor. Os órgãos da reciprocidade estavam aleijados. As palavras para as relações humanas perderam seus significados e se transformaram em seus opostos. Thucydides descreve este desarranjo comunicativo em uma de suas maiores passagens, uma diagnose da internalização da loucura da guerra que parece uma descrição de América contemporânea”.

Por outro lado, Leaves of Grass de Whitman, uma ostensiva celebração da América de seu tempo, na realidade antevê “uma ordem social cuja essência é a liberação e universalização do ego-oculto”. Seus personagens “parecem estar todos trabalhando por ‘nada', participantes de um esforço criativo universal no qual cada um descobre sua última individualidade. . . Hoje nós sabemos tratar-se de uma visão de Whitman nada mais”.

Se um trabalho representa um momento decisivo do passado ou pressente um futuro potencial, o último teste de Rexroth é se essa obra permanece verdadeira no que diz respeito às realidades humanas perenes, é isso o que realmente “conta”. Comentando algumas recentes traduções das tragédias gregas, ele diz:

Dizem que nossa civilização está baseada na Bíblia, em Homero e nos autores das tragédias gregas. Para meu gosto, a Bíblia é um livro perigoso, porque pode ser, e foi, com poucas exceções, interpretada como garantia de um viver que a vida na realidade nunca proporcionou. Em volumes como os de Homero, por exemplo, a vida é apresentada como realmente é, os homens são apresentados como realmente somos, espancando nossas esposas, enganando o dono da mercearia, planejando nossas sociedades perfeitas, concorrendo a um cargo, ou escrevendo nossos poemas — mas projetados contra os céus vazios e esplêndidos, isso os torna nobres. Fora os costumes e a linguagem culta, permanece o mesmo orgulho, a mesma destruição que assombra Orestes, o auditor público, a dona de casa, o vendedor de automóvel. As pessoas seriam bem mais agradáveis, e bem mais felizes, se apenas soubessem disso. Aqui está a oportunidade delas aprenderem.

 


Fim do Capítulo 1 da versão em lingua portuguesa de The Relevance of Rexroth (1990) de Ken Knabb, traduzido por Railton Sousa Guedes.

[Índice]
 [Capítulo 1 : Vida e Literatura]
[Capítulo 2 : Magnanimidade e Misticismo]
[Capítulo 3 : Sociedade e Revolução]
[Notas e Bibliografia]


Os textos originais em inglês podem ser encontrados em:

[Contents]
[Chapter 1: Life and Literature]
[Chapter 2: Magnanimity and Mysticism]
[Chapter 3: Society and Revolution]
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