Título: REFUTAÇÃO DE TODOS OS JULGAMENTOS, PRÓ OU CONTRA, DO FILME «A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO»
Autor: Guy Debord
Data: 1975
Descrição:
Tradução para o português do manuscrito e trilha sonora do quinto filme de Guy Debord
Palavras-chave: França, Maio de 68, Situationistas
Linguagem: Português
Material Relacionado:
Manuscrito do filme traduzido da versão inglesa de Ken Knabb disponível em http://bopsecrets.org

Refutação de Todos os Julgamentos,
Pró ou Contra, do Filme
«A Sociedade do Espetáculo»

(manuscrito do filme)

 
LEGENDA: «Há momentos em que não resta outra alternativa senão o mero desprezo por causa do grande número de pessoas que o merecem». (Chateaubriand)

A organização espetacular da presente sociedade de classes conduziu a duas conseqüências bem evidentes. A primeira foi uma deterioração geral tanto na qualidade como na razão dos produtos. A segunda foi o fato de que aqueles que reivindicam encontrar felicidade nesta sociedade são obrigados a manter uma distância cuidadosa das coisas que fingem gostar — porque invariavelmente faltam-lhes os meios intelectuais ou outros necessários para que tenham um detalhado conhecimento delas, para incorporá-las em uma prática coerente, ou desenvolver qualquer discernimento genuíno para com elas.
 
Comercial exalta alguma bebida medíocre.

Estas conseqüências, que saltam aos olhos em termos de condições de moradia, devastação cultural, liberação sexual, ou qualidade de alimentação, são naturalmente ainda mais pronunciadas quando falamos em termos de teoria revolucionária e da formidável linguagem com que essa teoria denuncia nosso moribundo mundo doente.
 
Em uma lanchonete alemã clientes parecem ver na entrega automatizada de uma nova cerveja uma compensação satisfatória para seu conteúdo adulterado.

Assim não é de surpreender que esta combinação de falsificação ingênua e aprovação ignorante, tão característica do espetáculo moderno, reflita-se na incompreensiva diversidade das reações ao filme chamado A Sociedade do Espetáculo.
 

Esta incompreensão particular é inevitável, e continuará sendo assim durante algum tempo. O espetáculo está mais para enfermidade do que para conspiração. Esses que escrevem para os jornais e revistas de nosso tempo não estão escondendo a inteligência deles: o que nós vemos é tudo o que eles têm. O que é que poderiam dizer de pertinente sobre um filme que ataca em bloco seus hábitos e idéias, e o que é que poderiam fazer quando começam a sentir o próprio colapso? A estupidez de suas reações origina-se do colapso do seu mundo.
 
Giscard d'Estaing sai de um velho palácio do governo, é abordado por numerosos fotógrafos e repórteres, entra em seu carro que ele mesmo dirige.

Tropas britânicas ao redor de esquife funerária.

Aqueles que dizem ter gostado de meu filme gostam de muitas outras coisas para serem capazes de preferi-lo; e aqueles que dizem não ter gostado também aceitam muitas outras coisas para que o julgamento deles tenha o mais leve significado.
 
Casal entra em restaurante de estrada, examina o menu, e toma sorvete industrializado.

A pobreza dos seus discursos reflete a pobreza de suas vidas. Basta observar seus ambientes, suas ocupações, suas mercadorias, e suas cerimônias, visíveis em toda parte. Basta ouvir suas vozes arrogantes e estúpidas que de hora em hora fornece a última atualização do estado de sua alienação.
 
Propaganda comercial: Muitos automóveis se chocam, a maior parte deles bloqueia a pista; mas um carro com uma determinada marca de pneus, que chega em grande velocidade, efetua ziguezagues e cotinua a viagem.
 
Propaganda comercial: Mulher bastante jovem faz striptease, destacando algum tipo de mercadoria (não se sabe bem o que). A trilha sonora deste comercial é substituida por um anúncio de rádio que informa em tom suave, como sendo a coisa mais normal do mundo, os engarrafamentos e a estimativa de tempo de espera em todas as rodovias para onde a massa de ouvintes em férias se desloca.

Espectadores não encontram o que desejam; eles desejam o que encontram.
 
Propaganda comercial: Cliente entra em uma luxuosa loja britânica.

Dão-lhe um cigarro de amostra para ver se ele gosta do comprimento. Ele acha muito longo. O vendedor corta um pedaço. Ainda está um tanto quanto longo. O vendedor corta outro pedaço, em seguida coloca um espelho na frente do cliente. Ele se contempla com o cigarro na boca e se declara satisfeito.

O espetáculo não avilta pessoas ao ponto de fazer com que essas pessoas o amem, mas muitas pessoas são pagas para fingir isso. Agora que tais pessoas não podem mais nos enganar assegurando-nos que esta sociedade é completamente satisfatória, elas logo se irritam com qualquer crítica nesse sentido. Todos os insatisfeitos sentem que merecem algo melhor. Mas realmente imaginam que alguém está tentando tirar vantagem em cima deles? Realmente acreditam que haveria tempo para eles formularem alguma crítica, supondo que eles repentinamente se tornassem convictos de sua verdade? Será que estes hóspedes doentes que habitam a terra da aprovação acham que podem continuar falando sem que se note o lugar de onde falam?
 
Então o vendedor mostra-lhe um maço de cigarros comum, produzido do tamanho que ele gosta.

Portugal, abril de 1974: soldados com cravos em seus rifles marcham diante de caminhões do exército; marinheiros se confraternizam com manifestantes civis.

No pódio do Festival de Cinema de Cannes, melhores atores, diretores, etc., recebem seus prêmios.

Em um futuro mais livre e verdadeiro as pessoas olharão para trás e ficarão assombradas com a idéia dos traficantes da escrita contratados pelo sistema da mentira espetacular imaginarem-se qualificados para oferecer suas afetadas opiniões sobre méritos e defeitos de um filme que é uma negação do espetáculo — como se a dissolução deste sistema fosse uma questão de opinião. Na realidade, neste momento, o sistema deles é atacado e se defende pela força. Os falsos argumentos deles não mais são aceitos, tanto que muitos destes agentes profissionais da falsificação estão enfrentando o prospecto do desemprego.
 
Filme do diretor Costa Gravas.

Os mais teimosos destes mentirosos em extinção ainda fingem desejar saber se a sociedade do espetáculo na verdade existe ou se é talvez apenas uma noção imaginária por mim formulada. Mas com a floresta da história avançando durante os últimos anos contra o castelo de cartas falsas que a cada momento cerra fileiras em direção à destruição, a maioria destes comentaristas agora servilmente elogia a excelência de meu livro, como se tivessem sido capazes de le-lo e como se tivessem dado boas-vindas à sua publicação em 1967, com o mesmo respeito. Porém, eles geralmente reclamam de eu ter abusado da indulgência deles trazendo o livro à tela. O golpe é ainda mais doloroso porque eles nunca tinham sonhado que tal extravagância fosse possível. A raiva deles confirma o fato de que formular tal crítica do filme os transtorna até mesmo mais que do livro. Aqui, como em outras partes, eles estão sendo forçados à luta defensiva, em uma segunda frente.
 
Parede coberta por telas de TV mostra ao vivo simultaneamente várias cenas dos jogos olímpicos de Munique.

Manifestação de trabalhadores portugueses; tanques e soldados bloqueiam as estradas.
SUBTÍTULO: Lisboa, 7 de fevereiro de 1975: Trinta e oito fábricas federadas denunciam stalinistas, sindicatos, e ministros do governo.

Novamente parede com telas de TV. Longa seqüência de detalhes de uma ou outra competição. Apenas as limitações humanas impedem que as pessoas vejam tudo de uma só vez -- pelo menos tudo aquilo que envolve cada detalhe destes jogos.

Muitos reclamam que o filme é difícil de entender. Alguns dizem que as imagens lhes impedem de entender as palavras; outros que as palavras confundem as imagens. Quando dizem que acharam o filme cansativo, quando orgulhosamente elevam a fadiga individual deles a um critério geral de comunicação, estes críticos estão tentando dar a impressão que não tiveram nenhum problema em entender — nem mesmo, talvez, em concordar — a própria teoria quando sua exposição estava limidada ao livro. Eles estão tentando disfarçar como um mero desacordo entre diferentes concepções de cinema aquilo que de fato é um conflito entre concepções diferentes de sociedade, e uma guerra aberta dentro da sociedade existente.

Mas se meu filme é tão inacessível a eles, como supor que eles são mais capazes de compreender tudo o mais o que diga respeito a essa sociedade que tão completamente os condicionou ao esgotamento mental? Como podem essas pessoas que se cansam com tanta facilidade ver a si mesmas em uma posição melhor, mergulhados na cacofonia incessante de tantos comerciais e mensagens políticas simultâneas, ver através de sofismas crus projetados para fazê-los aceitar seu trabalho e seu lazer, ou a sabedoria do Presidente Giscard, ou o sabor de aditivos alimentares? A dificuldade não está em meu filme, mas em suas mentes servis.

 

Nenhum filme é mais difícil que sua era. Por exemplo, há aqueles que entendem, e aqueles que não entendem, que quando a França foi apresentada com um novo ministério chamado «Departamento de Qualidade de Vida», isto não foi outra coisa senão um velho estratagema da classe dominante, projetado para, como disse Machiavell, «permitir-lhes manter pelo menos o nome daquilo que já perderam». Há aqueles que entendem, e aqueles que não entendem, que a luta de classes em Portugal foi desde o princípio marcada por um confronto direto entre os trabalhadores revolucionários organizados em assembléias autônomas e a burocracia stalinista aliada a alguns generais derrotados. Quem entende tais coisas entenderá meu filme; e eu não faço filmes para quem não entende tais coisas, ou que tem como seu negócio impedir a compreensão dos outros.
 
Durante os primeiros dias da revolução portuguesa o stalinista Cunhal, o socialista Soares, o General Spinola, enfim, todos que tinham algum grau de autoridade seguiam um após outro entre os esplendores do palácio nacional para registrar publicamente seu compromisso de fazer tudo que estivesse em seu alcance para impedir o avanço da revolução.


Como todas as críticas surgem da mesma zona de poluição produzida pelo espetáculo, elas são tão aparentemente variadas quanto qualquer outra mercadoria atual. Vários críticos afirmaram que meu filme os encheu de entusiasmo, mas nenhum pôde explicar por que. Sempre que me acho aprovado por quem deveria ser meu inimigo, eu me pergunto que erro cometeram em suas cabeças. É normalmente fácil achar. Diante de um número incomum de inovações e de uma insolência que vai totalmente além da compreensão deles, estes consumidores vanguardistas tentam vaidosamente racionalizar uma base de aprovação atribuindo estas fascinantes excentricidades a um lirismo individual inexistente.
 
Vários poços de petróleo em chamas.

Breve seqüência de uma moderna fazenda de gado, mostrando a automação e a tecnologia química usada tirar leite em um nível de qualidade compatível com o consumidor contemporâneo.

Longa tomada mostra plataforma de exploração de petróleo sendo rebocada.

OPor exemplo, um deles admira meu filme por seu suposto «lirismo do ódio»; outro descobriu ao vê-lo que o transcurso de uma época histórica produz uma certa melancolia; outros, que grandemente superestimam os refinamentos da vida social atual, atribuem a mim um certo dandyismo. Estes em nada diferem das perenes formas táticas de toda apologia governante: Negue o que existe e explique o que não existe. Uma teoria crítica que inclua a dissolução de uma sociedade não se interessa em expressar ódio, muito menos em apresentar meras imagens do ódio. Busca entender, descrever, e precipitar um movimento que está se desenvolvendo diante de nossos próprios olhos. Quanto àqueles que nos apresentam como seu próprio pseudo-ódio, um tipo de moda com um novo conteúdo artístico, é óbvio que isso é meramente a maneira que encontraram para compensar sua fraqueza moral, seus acordos, e as humilhações de suas vidas atuais — que faz com que os espectadores se identifiquem tão prontamente com eles.
 
Galáxias.

Trabalhadores portugueses se manifestam: «Abaixo o governo provisório!».

Reacionários políticos são naturalmente bem mais hostis a meu filme. Assim um aprendiz de burocrata afirma admirar minha audácia por «não fazer um filme político contando uma história, mas por filmar diretamente uma teoria». Infelizmente, ele não gostou de minha teoria. Ele sente que apesar de meu aparente «inflexível esquerdismo», eu de fato passei para a direita porque ataco sistematicamente «os homens da Esquerda Unida». A boca do cretino está cheia de inchaço terminológico. Que união? Que esquerda? Que homens?
 

O stalinista Cunhal, em cima de uma plataforma com muitos de seus cúmplices, proclama com firmeza, algum slogan mentiroso.
Soares, no papel de democrata moderado, sorri para todos, recebendo flores, presidindo reuniões maçantes.

A «Esquerda Unida» não é, naturalmente, outra coisa senão a aliança atual dos stalinistas com outros inimigos do proletariado. Cada um dos sócios conhece muito bem os demais. Eles desajeitadamente se degladiam e estridentemente se denunciam todas as semanas. Mas eles agora se juntaram no esforço de sabotar as iniciativas revolucionárias dos trabalhadores, para — como eles eles mesmos admitem — manter pelo menos a essência do capitalismo já que não podem salvá-lo em todos seus detalhes. Eles são o mesmo tipo de burocratas que reprimiram as «greves contra-revolucionárias» dos trabalhadores em Portugal, da mesma maneira que fizeram em Budapeste não muito tempo atrás; eles são os mesmos que aspiraram tomar parte de um «Acordo Histórico» na Itália; os mesmos que se chamaram a si mesmos de «Frente Popular de Governos» enquanto destruíam as greves francesas de 1936 e sabotavam a revolução espanhola.
 
Multidão reunida agita bandeiras vermelhas. Em 12 de julho de 1936, Salengro dá entrevista para telejornal em cima do palanque de um encontro socialista.

(SUBTÍTULO: Socialista Roger Salengro, Ministro do Interior da Frente Popular.)
O absurdo e repugnante homenzinho, fazendo o possível para imitar o estilo oratório de Mussolini, declara: «Restabeleceremos a lei e a ordem! Faremos a classe trabalhadora compreender que seu dever e seu interesse a obriga a ouvir nossos apelos, para que não precisemos recorrer a métodos mais coercitivos. A Frente Popular não será anarquia! A Frente Popular permanecerá e triunfará apenas se for capaz de manter a lei e a ordem. A classe trabalhadora precisa compreender que seu dever e seu interesse requer que ela não faça nada que levante a classe média ou a classe camponesa contra ela. Depois de amanhã, em uma grande marcha, estarão unidas a bandeira tricolor da nação e a bandeira vermelha do trabalho. No dia 14 de julho, celebraremos a República e o proletariado, e chamaremos o povo de Paris para que mantenha sua vitória de abril e maio. Pediremos ao povo da França para que continuem confiando em nosso governo -- um governo que vive apenas por causa do povo, e que triunfará apenas se o povo da França ajudá-lo a triunfar.».
SUBTÍTULO (durante a sentença final do discurso acima):
Quatro meses depois este homem, capaz apenas de escarnecer aqueles que o elegeram, foi levado ao suicídio através de difamações da extrema direita que não apreciou os serviços dele à sua causa.

A Esquerda Unida é apenas uma fraude secundária da sociedade espetacular defensiva, um expediente temporário que o sistema precisa recorrer apenas ocasionalmente. Eu apenas a evoquei de passagem em meu filme, entretanto eu naturalmente a ataquei com todo o desprezo que ela merece — da mesma maneira que a atacamos em Portugal em um terreno mais amplo e mais bonito.
 
O stalinista Cunhal, observa preocupado.




Um cordão de soldados portugueses no topo de uma monumental escadaria, protege o governo ao anoitecer.

Outro sofista de capacidade mental igualmente limitada apresenta um argumento contrário: Denunciando o espetáculo publicamente, não estou por meio disso entrando no espetáculo? Este tipo de purismo, que soa particularmente estranho vindo de um jornalista, é obviamente invocado na esperança de convencer as pessoas de que ninguém deveria aparecer no espetáculo como inimigo dele.
   

Aqueles que não têm nem mesmo um posto de subordinação na sociedade espetacular, e que não têm nada a perder salvo sua ambiciosa esperança de eventualmente servir em um destacamento juvenil do exército, dão uma expressão mais honesta e furiosa de seu descontentamento e até mesmo de sua desconfiança. Um indivíduo anônimo deste tipo se expõe durante algum tempo às idéias mais recentes em um forum mais apropriado: a revista semanal de piadas dos soldados rasos do distrito eleitoral de Mitterand.
 


Estudantes abastecem suas bandejas em uma lanchonete universitária.

Propaganda comercial: Em uma área deserta adolescentes vestidos em elegante estilo hippie seguem um jovem com longas barbas e que caminha pouco a frente deles. Diante de uma grande lagoa, o líder barbudo continua indiferente sua marcha, seu tenis de marca «Buggy d'Eram» permite-lhe caminhar por cima da água. O milagre se repete com os seguidores que estão calçados com a mesma marca de tenis. Mas aqueles de pouca fé que não acreditavam na marca «Buggy d'Eram» afundam, com a água até os joelhos ficam para trás, sem que ninguém volte para ajudá-los.


Este indivíduo anônimo conclui que teria sido bom filmar meu livro em 1967, mas que em 1973 era tarde demais. A razão que apresenta para esta conclusão, e que parece crucial para ele, é que de agora em diante todo mundo deveria deixar de falar a respeito de todas as coisas que ele próprio ignora — Marx; Hegel; livros em geral (porque eles não podem ser um meio adequado de liberação); de ver qualquer filme (pelo simples fato de ser um filme); teoria, acima de tudo; e mesmo a própria história, coisas que ele se felicita por ter abandonado anonimamente.
 
Giscar d'Estaing e Chirac dão boas vindas ao atual chefe de estado de Portugal; um esquadrão de tropas presta-lhe honras.

Tal linha de pensamento obviamente só pode ter vindo das paredes desoladas da Universidade de Vincennes. Dentro da memória viva nenhum estudante de Vincennes propôs alguma vez uma única teoria. Daí vermos correntemente alguns defensores da «antiteoria». Que mais eles poderiam explorar enquanto professores assistentes daquela neo-universidade? Não que eles se satisfaçam com isso — até mesmo os mais talentosos candidatos à cooptação estão tocando a mesma tecla, solicitando emprego de diretor de filme ou pelo menos de editor serial em alguma editora (o indivíduo anônimo a que me refiro não esconde sua inveja do que ele imagina ser as pródigas recompensas do trabalho cinematográfico). Confiantemente podemos predizer então que estas anti-teorias não serão facilmente esquecidas, o que pareceria ser sua única implicação lógica, porque nesse caso seus autores ficariam privados da única «qualificação» que os elevaria ao grau de trabalhadores não especializados.
 


Numa lanchonete universitária estudantes aguardam comida em fila.

Anfiteatro lotado durante formatura de livres pensadores.

Corregores de bicicleta passam em alta velocidade.

O vencedor, com uma guirlanda de flores.

Cenas de uma zona industrial.


Nosso tributo anônimo abre caminho para seu real objetivo ao final de sua crítica. A razão pela qual ele quer dissolver a história é que dessa forma ele pode escolher outra, onde ele mesmo designe os pensadores do futuro. Impassivel este cabeça-dura nomeia para esse papel Lyotard, Castoriadis, e um outro miolo-bichado — pessoas que há mais de quinze anos atrás já tinham queimado todos seus cartuchos sem conseguir lidar com as particularidades fascinantes do seu século.
 

Propaganda enaltece marca de calças: Em auditório muitos homens vestidos com calças dessas marcas são aplaudidas por uma audiência feminina.

 
Propaganda de uma marca de chá gelado. A cavalaria dos cofederados parte para a guerra, deixando suas casas e festas para trás. Os que nunca viveram aqueles dias não conhecem as boas coisas da vida, etc. A conclusão dessa brutalidade hegeliana: «Suas civilizações foram banidas. Tudo o que restou foi o chá gelado.»

Nenhum perdedor ama a história. Além disso, por terem ido coletivamente tão longe em seu repúdio à história, não é raro ver estes resolutos carreiristas ultramodernos pedindo-nos para ler pensadores cooptados em seus cinqüenta. Não há nada mais contraditório do que alguém orgulhar-se de ter permanecido anônimo e calado desde 1968 e ao mesmo tempo admitir não ter chegado ao ponto de desprezar seus professores. Nosso crítico anônimo teve o mérito de ilustrar melhor que os outros a inépcia absoluta da perspectiva anti-histórica que defende, e as reais motivações por trás do desdém fingido de pessoas impotentes diante da realidade.
 



No mesmo anúncio, oficiais conversam num canto do jardim; velhos cavalheiros cheios de dignidade; um leal empregado negro serve chá gelado para eles; a conversa continua.

Soldados portugueses dispersam uma manifestação.


Ao postular o tardio empreendimento da adaptação cinematográfica de A Sociedade do Espetáculo seis anos depois do aparecimento do livro, ele negligencia o fato que não houve três livros de crítica social de tal importância publicados nos últimos cem anos. Ele também falha em considerar o fato de que fui eu mesmo que escrevi o livro. Não há nenhum padrão de comparação para julgar se eu fui relativamente lento ou rápido em fazer o filme uma vez que obviamente o melhor de meus antecessores não teve nenhum acesso à instrumentação cinematográfica. Diante disso, tenho que admitir que achei muito gratificante ser a primeira pessoa para levar a cabo este tipo de façanha.
 
Saqueadores ianques entram em uma luxuosa mansão sulista, pilham tudo, depois ateiam fogo.

Os defensores do espetáculo serão lentos em reconhecer este novo uso do filme como foram em reconhecer o fato que uma nova era de oposição revolucionária estava arruinando a sociedade deles; mas da mesma maneira e inevitavelmente eles serão obrigados a reconhecer isso. E eles seguirão a mesma seqüência: primeiro permanecem calados, depois fogem do tema. Os críticos de meu filme alcançaram a fase posterior.
 


Em Portugal um alto-falante montado em um tanque pede calma a uma multidão.

Manifestantes proclamam suas exigências; na linha de frente há uma pequena garota mais convicta do que os demais.


Funeral do último rei da Inglaterra. Tropas marcham com seus rifles. Montanheses, marinheiros, granadeiros, polícia montada, em velhos univormes que datam dos dias de glória e poder do Império, acompanham o caixão onde aparece o globo e um cetro.


Especialistas do cinema disseram que a política revolucionária de meu filme era ruim; os políticos ilusionistas da esquerda disseram que o filme era ruim. Mas quando alguém é revolucionário e cineasta, é fácil demonstrar que sua compartilhada amargura se origina do fato do filme em questão ser precisamente uma crítica da sociedade que eles nunca souberam combater; e o primeiro exemplo de um tipo de filme que eles nunca souberam fazer.

 

 


Nova tradução para o português do manuscrito e trilha sonora do filme de Guy Debord, Refutação de Todos os Julgamentos do Filme de Debord «A Sociedade do Espetáculo».

O manuscrito completo (em inglês) deste filme, com ilustrações, descrições detalhadas das imagens, e extensas anotações, tudo isso pode ser visto no livro Complete Cinematic Works de Debord (AK Press, 2003). Para mais informações, veja Guy Debord’s Films.

(Livre para uso pessoal e não comercial)


Obra Cinematográfica Completa de Guy Debord

INTRODUÇÃO

SCRIPTS
Uivos para Sade (1952)
No Caminho de Algumas Pessoas por um Curto Período de Tempo (1959)
Crítica da Separação
(1961)
A Sociedade do Espetáculo filme (1973)
Refutação de Todos os Julgamentos, Pró ou Contra, Sobre o Filme A Sociedade do Espetáculo (1975)
In girum imus nocte et consumimur igni (1978)


DOCUMENTOS
Deturnação: Guia para Usuários
Notas Técnicas dos Primeiros Três Filmes
Carta sobre Passagem
Por um Julgamento Revolucionário da Arte
Na Sociedade do Espetáculo (resposta a uma crítica do livro)
Cinema e Revolução
Na Sociedade do Espetáculo (lançamento do filme)
O Uso de Filmes Roubados
Temas de In girum
Instruções para o Engenheiro de Som de In girum
Introdução à Obra Cinematográfica Completa de Guy Debord



O texto acima foi traduzido por Railton Sousa Guedes
Fonte consultada: http://www.bopsecrets.org/  


OUTROS ESCRITOS DE DEBORD (versões retiradas de http://www.terravista.pt/IlhadoMel/1540 e adaptadas)

A Sociedade do Espetáculo
Panegírico


Dossiê Situacionista e textos de Debord publicados pela Biblioteca Virtual Revolucionária

Dossiê Internacional Situacionista

Perspectivas da transformação consciente da vida quotidiana


Teses sobre a revolução cultural

Introdução a uma crítica da geografia urbana


Texto de Phil Baker

Cidade Secreta: Psicogeografia e Devastação de Londres -- Um Ensaio de Phil Baker


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railtong@g.com