Escuta, Zé Ninguém!
[parte
1]
[parte 2]
[parte 3]
Escuta, Zé Ninguém!
Wilhelm
Reich
-
Amor,
trabalho e sabedoria são as fontes da nossa vida.
Deviam também governá-la.
Ó
respeitáveis enganadores que troçais de mim!
Donde brota a vossa política,
Enquanto o mundo for governado por vós?
Das punhaladas e do assassínio!
Charles de Coster (em Ulenspiegel)
-
-
O
Autor:
Wilhelm Reich
nasceu a 24 de Março de 1897 nos confins orientais da Galícia,
então na posse do Império Austro-Húngaro.
Acusado de charlatanismo,
perseguido pelos nazistas e pelos «democratas» norte-americanos,
expulso do círculo de psicanalistas
e do Partido Comunista. Foram inúmeros os problemas que teve
com todos os tipos de poderes instituídos. Isso graças
ao vigor de seu pensamento e de sua independência frente às
instituições repressivas que tanto criticou. Não
reconheceu limites
na ciências, da psicologia foi pra física, pra biologia...
e cada campo recebeu valiosíssimas contribuições,
que até hoje (até
mesmo nas academias) não são reconhecidas e até
mesmo boicotadas.
Em 1918 matriculou-se
na Faculdade de Medicina de Viena, orientando o essencial dos seus
estudos para a Biologia, a Sexologia
e as teorias de Freud. No final dos anos 20 ingressa na Associação
Psicanalítica de Viena, onde provocará grandes controvérsias,
pois o seu pensamento vai-se afastando da ortodoxia freudiana e por
diferenças políticas. Acabará por ser expulso
em 1934.
Entretanto escreve
os seus primeiros livros: O Caráter Impulsivo, 1925; A Função
do Orgasmo, 1927; Maturidade Sexual, Continência,
Moral Conjugal, 1930; O Aparecimento da Moral Sexual, 1932; A Luta
Sexual da Juventude, 1932; Psicologia de Massa
do Fascismo, 1933; e Análise do Caráter, 1933. Alguns
deles só muitos anos mais tarde seriam devidamente apreciados.
Reich desenvolveu também artefatos usados na cura do câncer
e na diminuição dos efeitos negativos da energia nuclear.Comentários
sobre alguns deles:
- A Função
do Orgasmo (de 1942 e renovado em 1961) sintetiza o trabalho médico
e científico de Reich com o organismo
humano em um período de vinte anos e apresenta todo o desenvolvimento
desse trabalho em sua rápida progressão
da esfera da psicologia para a da biologia. Afirma que o orgasmo sexual
pleno e satisfatório é o regulador
biológico da harmonia vital e que as neuroses são provocadas
através dos bloqueios à afetividade. A descoberta
do orgônio (ou orgone) foi o resultado de uma profunda investigação
clínica do conceito de «energia psíquica»,
a princípio na esfera da psiquiatria. A experiência tem
mostrado que o conhecimento das funções emocionais
da energia biológica é indispensável para a compreensão
das funções fisiológicas e físicas.
- Segunda obra
importante de Reich, Análise do Caráter, considerado
como o que de melhor e mais profundo se
havia dito sobre psicoterapia. Foi escrito para o analista e desenvolve
com exatidão - com numerosos exemplos clínicos
- sua singular técnica terapêutica -
Em 1953 publica O Assassinato de Cristo onde explora o significado
da vida de Jesus e atribui o flagelo universal
que causou sua agonia e morte à Peste Emocional Da Humanidade,
presente no Zé Ninguém. O homem se
defronta, através dos tempos, com a plena responsabilidade
pelo assassinato de Cristo: pelo assassinato do vivo, qualquer
que seja a forma sob a qual se apresenta. Esta é a verdade
crua sobre o modo real como as pessoas são, agem
e se emocionam. Muitas das passagens lembram a própria vida
de Reich, que sofreu várias perseguições e preconceitos
graças aos seus posicionamentos nada ortodoxos.
Após uma
viagem à Rússia, em 1929, instala-se em Berlim dois
anos depois. Mas a ascensão do nazismo leva-o a trocar Berlim
e Viena por Copenhage. Seguem-se Malmoe, Londres, Paris, Zurique,
Lucerna, Oslo, até chegar aos Estados Unidos, em
1939. A sua permanência neste país irá causar-lhe
dissabores que terão sido provavelmente os mais amargos da
sua vida agitada.
Logo em 1941 é preso por dois agentes do F.B.I., que lhe apreendem
livros como Mein Kampf (A Minha Luta), de Hitler,
e My Life (A Minha Vida), de Trotsky.
Considerado «pai»
das Psicoterapias Corporais, Wilhelm Reich entende o ser humano como
uma das expressões da energia que
chamou orgone, uma energia que preenche todo o espaço cósmico
e se expressa em diferentes concentrações, movimentos
e formas.
W. Edward Mann descreve a teoria da energia orgônica de Reich
e suas aplicações e mostra como elas se relacionam com
as atuais terapias energéticas e às teorias de outras
épocas e outras culturas, especialmente ao conceito hindu de
prana e à teoria
da força vital subjacente à técnica chinesa de
acupuntura. Reich delineou o primeiro código e a primeira gramática
da linguagem
gestual e expressiva da personalidade. Genial teórico colocou
os princípios de base para uma Revolução político-sexual
que permanece,
mais do nunca, necessária e exemplar.
Foi um dos motores
dos desconfortos globais juvenis (assim como Marcuse, que juntou Freud
e Marx, afirmando que a inibição
dos instintos sexuais na criança pela família é
o primeiro passo de uma repressão permanente. Ver: Eros
e Civilização e
O Homem Unidimensional), da geração dos 60, frente
ao capitalismo e às instituições autoritárias
regidas por velhos caquéticos.
Na sua obra O Combate Sexual da Juventude, defende que a conquista
da liberdade e de uma nova forma de vida, são
inseparáveis de uma livre satisfação sexual.
A família é o elo ideológico indispensável
que permite a integração da juventude
na sociedade capitalista graças à educação
repressiva que transmite. E é esta moral repressiva a responsável
pela maior
parte das perturbações na adolescência. Um dos
jargões do movimento estudantil da época resume bem
esse sentimento de
transgressão: «Quanto mais faço amor, mais tenho
vontade de fazer a revolução; quanto mais faço
a revolução, mais tenho vontade
de fazer amor.
Depois deste incidente,
Wilhelm cria o Orgone Institute na sua pequena propriedade do Maine.
Aí fará os seus trabalhos de
investigação e escreverá os últimos livros,
até ser julgado e condenado a dois anos de prisão, em
25 de Maio de 1956.
Recusado o apelo
interposto a tal sentença, Reich é preso em 12 de Março
de 1957. A 3 de Novembro uma crise cardíaca vitima-o
na penitenciária de Ludwigburg (estado da Pensilvânia).
Incompreendido
à esquerda e amaldiçoado à direita, Wilhelm Reich
é fundamentalmente um pensamento inconformista e autenticamente
revolucionário.
-
-
Introdução
Escuta, Zé
Ninguém! não é um documento científico,
mas humano. Foi escrito no Verão de 1946, para os arquivos
do Instituto
Orgone, sem que se pensasse, então, em publicá-lo. Resultou
da luta interior de um cientista e médico que, durante décadas,
passou pela experiência, a princípio ingênua, depois
cheia de espanto e, finalmente, de horror, do que o Zé Ninguém,
o homem
comum, é capaz de fazer de si próprio, de como sofre
e se revolta, das honras que tributa aos seus inimigos e do modo
como assassina os seus amigos. Sempre que chega ao poder como «representante
do povo», aplica-o mal e transformado em
qualquer coisa ainda mais cruel do que o sadismo que outrora suportava
por parte dos elementos das classes anteriormente dominantes.
Escuta, Zé
Ninguém! representa uma resposta silenciosa à intriga
e à difamação. Ao ser escrito, ninguém
podia compreender
que certas entidades governamentais com missão de proteger
a saúde pública fossem capazes, em conluio com politiqueiros,
de atacar o trabalho de investigação do Instituto Orgone.
A tentativa, no ambiente de peste emocional de 1947, de
destruir o Instituto (não com provas de erro ou crime, mas
atacando a sua honra) levou a publicar, como documento histórico,
Escuta, Zé Ninguém!.
As circunstâncias
mostravam ser necessário, ao homem comum, saber o que se passa
nos bastidores de um laboratório científico
e, ao mesmo tempo, verificar o que pensa a seu respeito um psiquiatra
experiente. Que conheça a realidade, único modo
de vencer a desastrosa paixão pelo poder que tanto o obceca.
Que lhe seja dito, sem rebuço, que responsabilidade assume,
quando trabalha, ama, odeia ou difama. Que entenda como se chega ao
fascismo, negro ou vermelho, ambos igualmente
perigosos para a segurança dos vivos e para a proteção
de nossos filhos. Isso, não apenas porque tais ideologias,
vermelhas
ou negras, são intrinsecamente assassinas, mas também
por transformarem crianças saudáveis em adultos mutilados,
autômatos
e moralmente dementes.
Pois dão
preferência ao Estado sobre a justiça, à mentira
sobre a verdade, à guerra sobre a vida. Para o educador, para
o médico,
existe apenas uma fidelidade: ao que há de vivo na criança
e no doente. Se esta fidelidade for estritamente respeitada, até
os grandes problemas da «política externa», encontram
uma solução simples.
Esta «conversa»
não pretende apresentar receitas existenciais. Simplesmente,
descreve as tempestades emocionais por que passa
um homem produtivo e satisfeito. Não visa convencer, aliciar
ou conquistar ninguém. Visa, sim, retratar a experiência,
como um
guache pinta uma tempestade. O leitor não é chamado
a testemunhar-lhe simpatia. Pode ler ou não ler. Não
encerra quaisquer
intenções ou programas. Visa unicamente facultar ao
pesquisador e ao pensador o direito ao sentimento e a reação
pessoal,
nunca disputado ao poeta e ao filósofo. É um protesto
contra os desígnios secretos e ignotos da peste emocional que,
bem entrincheirada
e em segurança, vem capciosamente envenenando o investigador
honesto e corajoso com as suas setas ervadas.
Mostra como é a peste emocional, como funciona e entrava o
progresso. Testemunha ainda a confiança na inexplorada
riqueza que se oculta na «natureza humana», pronta a servir
as esperanças do homem.
Escuta,
Zé Ninguém!
Chamam-te «Zé
Ninguém!» «Homem Comum» e, ao que dizem,
começou a tua era, a «Era do Homem Comum». Mas
não és
tu que o dizes, Zé Ninguém, são eles,
os vice-presidentes das grandes nações, os importantes
dirigentes do proletariado, os filhos
da burguesia arrependidos, os homens de Estado e os filósofos.
Dão-te o futuro, mas não te perguntam pelo passado.
Tu és herdeiro
de um passado terrível. A tua herança queima-te as mãos,
e sou eu que to digo. A verdade é que todo o médico,
sapateiro, mecânico ou educador que queira trabalhar e ganhar
o seu pão deve conhecer as suas limitações. Há
algumas
décadas, tu, Zé Ninguém, começaste a penetrar
no governo da Terra. O futuro.da raça humana depende, à
partir de agora,
da maneira como pensas e ages. Porém, nem os teus mestres nem
os teus senhores te dizem como realmente pensas e és,
ninguém ousa dirigir-te a única critica que te podia
tornar apto a ser inabalável senhor dos teus destinos. És
«livre» apenas num
sentido: livre da educação que te permitiria conduzires
a tua vida como te aprouvesse, acima da autocrítica.
Nunca te ouvi
queixar: «Vocês promovem-me a futuro senhor de mim próprio
e do meu mundo, mas não me dizem como fazê-lo
e não me apontam erros no que penso e faço».
Deixas que os
homens no poder o assumam em teu nome. Mas tu mesmo nada dizes. Conferes
aos homens que detêm o poder,
quando não o conferes a importantes mal intencionados, mais
poder ainda para te representarem. E só demasiado tarde reconheces
que te enganaram uma vez mais.
Mas eu entendo-te.
Vezes sem conta te vi nu, psíquica e fisicamente nu, sem máscara,
sem opção, sem voto, sem aquilo que
fiz de ti «membro do povo». Nu como um recém-nascido
ou um general em cuecas. Ouvi então os teus prantos e lamúrias,
ouvi-te os apelos e esperanças, os teus amores e desditas.
Conheço-te e entendo-te. E vou dizer-te quem és, Zé
Ninguém,
porque acredito na grandeza do teu futuro, que sem dúvida te
pertencerá. Por isso mesmo, antes de tudo o mais, olha
para ti. Vê-te como realmente és. Ouve o que nenhum dos
teus chefes ou representantes se atreve a dizer-te: És
o «homem médio», o «homem comum». Repara
bem no significado destas palavras: «médio» e «comum».
Não fujas.
Tem ânimo e.contempla-te. «Que direito tem este tipo de
dizer-me o que quer que seja?» Leio esta pergunta nos teus
olhos-amedrontados. Ouço-a na sua impertinência, Zé
Ninguém. Tens medo de olhar para ti próprio, tens medo
da crítica,
tal como tens medo do poder que te prometem e que não saberias
usar. Nem te atreves a pensar que poderias ser diferente:
livre em vez de deprimido, direto em vez de cauteloso, amando às
claras e não mais como um ladrão na noite. Tu mesmo
te desprezas, Zé Ninguém, Dizes: «Quem sou eu
para ter opinião própria, para decidir da minha própria
vida e ter o mundo
por meu?» E tens razão: Quem és tu para reclamar
direitos sobre a tua vida? Deixa-me dizer-te.
Diferes dos grandes
homens que verdadeiramente o são apenas num ponto: todo o grande
homem foi outrora um Zé Ninguém
que desenvolveu apenas uma outra qualidade: a de reconhecer as áreas
em que havia limitações e estreiteza no seu modo
de pensar e agir. Através de qualquer tarefa que o apaixonasse,
aprendeu a sentir cada vez melhor aquilo em que a sua pequenez
e mediocridade ameaçavam a sua felicidade. O grande homem
é, pois, aquele que reconhece quando e em que é pequeno.
O homem pequeno é aquele que não reconhece a sua pequenez
e teme reconhecê-la; que procura mascarar a sua tacanhez
e estreiteza de vistas com ilusões de força e grandeza,
força e grandeza alheias. Que se orgulha dos seus grandes generais,
mas não de si próprio. Que admira as idéias que
não teve, mas nunca as que teve. Que acredita mais arraigadamente
nas coisas
que menos entende, e que não acredita no que quer que lhe pareça
fácil de assimilar.
Comecemos pelo
Zé Ninguém que habita em mim: Durante vinte e cinco
anos tomei a defesa, em palavras e por escrito, do direito
do homem comum à felicidade neste mundo; acusei-te pois
da incapacidade de agarrar o que te pertence, de preservar o que
conquistaste nas sangrentas barricadas de Paris e Viena, na luta pela
Independência americana ou na revolução russa.
Paris foi dar
a Pétain e Laval, Viena a Hitler, a tua Rússia a Stalin,
e a tua América bem poderia conduzir a um regime KKK – Ku-Klux-Klan.
Sabes melhor lutar pela tua liberdade que preservá-la para
ti e para os outros. Isto eu sempre soube. O que não
entendia, porém, era porque de cada vez que tentavas penosamente
arrastar-te para fora de um lameiro acabavas por cair noutra
ainda pior. Depois, pouco a pouco, às apalpadelas e olhando
prudentemente em torno, entendi o que te escraviza: ÉS TU
O TEU PRÓPRIO NEGREIRO. A verdade diz que mais ninguém
senão tu é culpado da tua escravatura. Mais ninguém,
sou eu que
te digo!
Esta é
nova, hein? Os teus libertadores garantem-te que os teus opressores
se chamam Guilherme, Nicolau, papa Gregório XXVIII,
Morgan, Krupp e Ford. E que os teus libertadores se chamam Mussolini,
Napoleão, Hitler e Stalin.
Mas eu afirmo:
Só tu podes libertar-te.
Esta frase faz-me,
porém, vacilar. Intitulo-me paladino da pureza e da verdade,
mas agora que se trata de te dizer a verdade,
hesito, temendo a tua atitude em relação à verdade.
A verdade é um perigo para a vida quando é a ti que
diz respeito.
A verdade é
a salvação mas não há população
que não se lance sobre ela para a espoliar, de outro modo não
serias o que és nem
estarias onde estás.
Intelectualmente,
sei que devo dizer a verdade a todo o custo. Mas o Zé Ninguém
que se alberga em. mim adverte-me: estúpido,
expores-te, entregares-te, ao Zé Ninguém. O Zé
Ninguém não está interessado em ouvir a verdade
acerca de si próprio.
Não deseja assumir a grande responsabilidade que lhe cabe,
quer queira quer não. Quer permanecer o que é ou, quando
muito, tornar-se num desses grandes homens medíocres – ser
rico, chefe de um partido, da Associação dos Veteranos
de Guerra
ou secretário da Sociedade de Promoção da Moral
Pública. Mas assumir a responsabilidade do seu trabalho, alimentação,
alojamento, Transportes, educação, investigação,
administração pública, exploração
mineira, isso nunca.
E o Zé
Ninguém que se aloja dentro de mim acrescenta: «És
agora um grande homem, conhecido na Alemanha, Áustria, Escandinávia,
Inglaterra, América, Palestina. Os comunistas
atacam-te. Os ‘defensores dos valores culturais’ odeiam-te. Os teus
alunos estimam-te. Os doentes que curaste admiram-te.
Os que sofrem da peste emocional perseguem-te. Escreveste 12 livros
e 150 artigos sobre as misérias da existência,
sobre o sofrimento do homem comum. As tuas idéias são
ensinadas nas Universidades; outros grandes homens igualmente
solitários confirmam o teu prestígio e põem-te
entre os maiores intelectos da história da ciência. Fizeste
uma das maiores
descobertas científicas desde há muitos séculos,
a da energia cósmica da vida e suas leis. Tornaste o cancro
um fenômeno
compreensível. Por tudo isto, andaste de pais em pais por dizeres
a verdade. Descansa agora. Goza os frutos do teu êxito,
do teu prestígio. Em poucos anos o teu nome será conhecida
por todos. O que fizeste já basta. Recolhe-te agora ao repouso,
ao estudo da lei funcional da natureza».
Esta é
a conversa do Zé Ninguém dentro de mim e que te teme
a ti, Zé Ninguém.
-
Durante
muito tempo sintonizei contigo porque conhecia a tua vida através
da minha própria existência e porque queria ajudar-te.
Mantive-me perto de ti porque via que te era útil e que aceitavas
o meu auxilio com prazer e, não raro, com lágrimas nos
olhos. Só aos poucos percebi que o aceitavas, mas que não
eras capaz de defendê-lo. Defendi-o e lutei para ti, por ti.
Foi então
que os teus chefes destruíram o meu trabalho e que tu os seguiste
em silêncio. Continuei então em comunhão contigo,
tentando
achar maneira de ajudar-te sem soçobrar quer como teu dirigente
quer como tua vítima. E o Zé Ninguém que reside
em mim tentava
convencer-te, «salvar-te», merecer-te o respeito que consagras
às «altas matemáticas» por não fazeres
a mínima
idéia do que sejam. Quanto menos entendes, mais prezas.
Conheces Hitler melhor que a Nietzsche, Napoleão melhor que
a Peslalozzi. Qualquer monarca significa mais para ti do que Sigmund
Freud. E o Zé Ninguém que vive em mim gostaria de
ter-te nas mãos pelo processo costumeiro, recorrendo ao rataplã
dos chefes. Eu temo-te, porém, quando o meu Zé Ninguém
deseja «conduzir-te
à liberdade». É que poderias descobrir a mesma
identidade medíocre em ti e em mim, e, assustado, matares-te
na minha pessoa. Foi por isso que deixei de ser escravo da tua liberdade
e desejar morrer por ela.
Sei que não
me entendes ainda quando te falo na «liberdade de ser escravo
de quem quer que seja», idéia que não é
fácil.
Para não
ser escravo fiel de um único senhor, e ser escravo de todos,
ter-se-á em primeiro lugar que matar o opressor, digamos, por
exemplo, o Czar. Este crime político nunca poderia ser perpetrado
sem um grande ideal de liberdade e motivos revolucionários.
É, portanto, necessário fundar um partido revolucionário
de liberdade sob a égide de um homem verdadeiramente
grande, seja ele Jesus Cristo, Marx, Lincoln ou Lenin. Claro está
que este grande homem tomará a tua liberdade
muito a sério. Para a impor, terá que rodear-se de uma
multidão de homens menores, ajudantes e moços de recados,
dada a imensidade
de tarefa para um só homem. Tu não, irias entendê-lo,
e deixá-lo-ias de lado, se ele se rodeasse de gente um pouco
superior. Assim escudado, ele conquista para ti o poder, ou uma parcela
da verdade, ou uma nova e melhor crença.
Escreve evangelhos,
promulga leis liberais, e conta com o teu apoio, seriedade e prontidão.
Arranca-te do lameiro social onde te
encontras imerso. Para manter solidários os muitos acólitos
de menor talhe, para conservar a tua confiança, o homem verdadeiramente
grande sacrifica pouco a pouco a sua grandeza que ele só pôde
cultivar na sua profunda solidão espiritual, longe
de ti e do teu bulício quotidiano mas em estreito contacto
com a tua vida. Para te poder guiar, terá de conseguir que
o transformes
num Deus inacessível, pois que jamais obteria a tua confiança
se permanecesse o simples homem que é, um homem
a quem fosse, por exemplo, possível amar uma mulher sem estar
casado com ela. E assim engendras um novo amo.
Promovido ao seu
novo papel senhorial, eis que o grande homem mingua, pois que a grandeza
lhe estava na inteireza, simplicidade,
coragem e proximidade da vida. Os seus medíocres acólitos,
grandes mercê da aura dele, assumem os altos cargos
das finanças, da diplomacia, do governo, das ciências
e das artes – e tu ficas onde estavas: no lameiro, pronto a
esfarrapares-te
novamente em nome do «futuro socialista» ou do «Terceiro
Reich». Continuarás a viver em barracas com telhados
de palha e paredes rebocadas de estrume, mas muito ufano dos teus
palácios da cultura. Basta-te a ilusão de que
governas
– até que sobrevenha a próxima guerra e a queda
dos novos tiranos.
Em países
distantes, homens medíocres estudaram com afinco a tua ânsia
de ser escravo e descobriram como tornar-se grandes
homens medíocres com um mínimo de esforço intelectual.
Esses homens vêm das tuas fileiras, nunca habitaram palácios.
Passaram fome e sofreram como tu - mas aprenderam a encurtar o processo
de mudança dos chefes.
Aprenderam que
cem anos de árduo trabalho intelectual em prol da tua liberdade,
de grandes sacrifícios pessoais pelo teu bem-estar, de holocausto
até da vida nos interesses da tua libertação,
eram preço demasiado alto pela tua próxima nova escravatura.
Tudo o que
pudesse haver sido elaborado ou sofrido em 100 anos de vida de grandes
pensadores podia ser destruído em menos de cinco
anos. Os homúnculos da tua estirpe aprenderam, assim, a abreviar
o processo: fazem-no mais aberta e brutalmente. E dizem-te
sem rebuços que tu, a tua vida, os teus filhos e a tua família
não contam, que és estúpido e subserviente e
que podem fazer
de ti o que lhe aprouver. E em vez de liberdade pessoal prometem-te
liberdade nacional. Não te prometem dignidade pessoal
mas respeito pelo Estado; grandeza nacional em vez de grandeza pessoal.
E como «liberdade pessoal» e «grandeza» são
para ti apenas conceitos estranhos e obscuros, enquanto «liberdade
nacional» e «interesses do Estado» são palavras
que te enchem
a boca, como ossos que fazem nascer a água na boca de um cão,
não há amém que não lhes dê. Nenhum
desses homens
medíocres paga pela liberdade autêntica o preço
que pagaram Giordano Bruno, Cristo, Karl Marx ou Lincoln. Nem tu lhes
interessas a ponta de um chavelho. Desprezam-te como tu te desprezas,
Zé Ninguém. E conhecem-te bem, muito melhor do
que um Rockefeller ou os Conservadores. Conhecem os teus podres como
só tu próprio os devias conhecer. Sacrificam-te a
um símbolo e és tu próprio quem lhes confere
o poder que exercem sobre ti. Ergueste tu próprio os teus tiranos,
e és tu quem os
alimenta, apesar de terem arrancado as máscaras, ou talvez
por isso mesmo. Eles mesmo te dizem clara e abertamente que és
uma
criatura inferior, incapaz de assumir responsabilidades, e que assim
deverás permanecer. E tu nomeia-los novos «salvadores»
e dá-lhes «vivas».
É por isso
que eu tenho medo de ti, Zé Ninguém, um medo sem limites.
Porque é de ti que depende o futuro da humanidade.
E tenho medo de ti. porque não existe nada a que mais fujas
do que a encarar-te a ti próprio., Estás doente, Zé
Ninguém,
muito doente, embora a culpa não seja tua. Mas é a ti
que cabe libertares-te da tua doença. Já há muito
que terias derrubado
os teus verdadeiros opressores se não tolerasses a opressão
e não a apoiasses tu próprio. Nenhuma força policial
do mundo
poderia prevalecer contra ti se tivesses ao menos uma sombra de respeito
por ti próprio na tua vida quotidiana, se tivesses
aprofunda convicção de que, sem o teu esforço,
a vida sobre a terra não seria possível por nem uma
hora mais. Será que
o teu «libertador» te disse? Qual quê! Chama-te
«Proletário do Mundo», mas não te dizem
que tu, e só tu, és responsável pela
tua vida (em vez de seres responsável pela «honra
da pátria»).
Terás que
entender que és tu quem transforma homens medíocres
em opressores e torna mártires os verdadeiramente grandes;
que os crucificas, os assassinas e os deixas morrer de fome; que não
te ralas absolutamente nada com os seus esforços e
as lutas que travam em teu nome; que não fazes a menor idéia
de quanto lhes deves do pouco de satisfação e plenitude
de que gozas
na vida.
Dizes: «Antes
de confiar em ti, gostaria de saber qual a tua filosofia da vida.»
Quando souberes a minha filosofia da vida vais
a correr ao presidente da Câmara, ou ao «Comitê
contra as Atividades Antiamericanas», ou ao F.B.I., ao G.P.U.
ou à imprensa
sensacionalista, ou à Ku Klux Klan, ou aos «Líderes
dos Proletários de Todo o Mundo», ou pura e simplesmente
safas-te:
Não sou
um Vermelho, nem um Branco, nem um Negro, nem um Amarelo.
Não sou
nem cristão, nem judeu, nem maometano, mórmon, homossexual,
polígamo, anarquista ou membro de seita secreta.
Faço amor
com a minha mulher porque a amo e a desejo e não porque tenha
um certificado de casamento ou para satisfazer as
minhas necessidades sexuais.
Não bato
nas crianças, não vou à pesca e não mato
veados nem coelhos. Mas não atiro mal e gosto de acertar no
alvo.
Não jogo
brídge, não dou festas com o fito de divulgar as minhas
teorias. Se o que penso é correto divulgar-se-á por
si próprio.
Não.submeto
o meu trabalho às autoridades oficiais de saúde, a não
ser que elas possam entendê-lo melhor do que eu. E sou
em quem decide quem pode manejar o conhecimento e as particularidades
da minha descoberta.
Observo estritamente
o cumprimento das leis quando fazem sentido, e luto contra elas quando
obsoletas ou absurdas. (Não corras
já para o presidente da Câmara, Zé Ninguém,
porque se ele for um homem decente faz o mesmo.).
Desejo que as
crianças e os adolescentes experimentem com o corpo a sua alegria
no prazer tranqüilamente.
Não creio
que para ser religioso no sentido genuíno da palavra seja necessário
destruir a vida afetiva e tornar-se crispado e encolhido
de corpo e de espírito.
Sei que aquilo
a que chamas «Deus» existe, mas de forma diferente da
que pensas: é a energia cósmica primordial do Universo,
tal como o amor que anima o teu corpo, a tua honestidade e o teu sentimento
da natureza em ti ou à tua volta.
Ponho na rua quem
quer que seja que, sob qualquer pretexto insignificante, tente interferia
no meu trabalho clínico e pedagógico
com doentes ou crianças. Confrontá-lo-ia em tribunal
com algumas perguntas simples e claras a que não lhe seria
possível
responder sem cobrir a cara de vergonha para o resto da vida. Porque
eu sou um homem de trabalho que sabe o que um
homem é por dentro, que sabe o que o outro vale e que deseja
que seja o trabalho a governar o mundo, e não as opiniões
sobre o
trabalho. Tenho a minha opinião e sei distinguir uma mentira
da verdade que quotidianamente emprego como instrumento
e que sei manter limpo após uso.
Tenho muito medo
de ti, Zé Ninguém, um enorme e profundo medo, e nem
sempre foi assim. Eu já fui um Zé Ninguém entre
milhões de outros. Hoje, como cientista e psiquiatra, sei ver
que és doente e perigoso na tua doença. Aprendi a reconhecer
o fato de que é a tua doença emocional que te destrói
minuto a minuto, e não qualquer poder exterior. Há muito
já que
terias suprimido os tiranos se estivesses vivo e são no teu
íntimo. Hoje em dia os teus opressores vêm das tuas próprias
fileiras,
tal como outrora vinham dos estratos mais altos da hierarquia social.
Ainda são mais medíocres do que tu, Zé Ninguém.
Porque, tendo conhecido por experiência a tua miséria,
é necessária muita mediocridade para utilizar esse conhecimento
com vista à tua supressão ainda mais perfeita e eficaz.
Tu não
tens sequer a capacidade de reconhecer um homem verdadeiramente grande.
O seu modo de ser, o seu sofrimento, as
suas aspirações, raivas e lutas. em teu nome são-te
completamente alheios. Nem sequer entendes que existem homens e mulheres
incapazes de suprimir-te ou explorar-te e que genuinamente desejam
que sejas livre, real o verdadeiramente livre.
Nem. te agradam,
porque são de outra natureza. São simples e diretos;
para eles, a verdade corresponde às tuas tácticas.
Vêem-te
à transparência, não em derisão, mas em
mágoa pelo destino dos homens. Mas tu sentes apenas que olham
através de ti,
e tens medo. Só os aclamas, Zé Ninguém, quando
muitos outros Zés Ninguéns te dizem que esses grandes
homens são grandes.
Tens medo deles, do tão perto que estão da vida e do
amor que lhe têm. O grande homem ama-te simplesmente como
criatura humana, ser vivo.
Deseja apenas
que cesse o teu sofrimento milenar. Que cales o teu milenar cacarejo.
Que não mais sejas besta de carga como
o tens sido, porque ama a vida e desejaria vê-la liberta do
sofrimento e da ignomínia. És tu que levas os homens
verdadeiramente
grandes a desprezarem-te, a retirarem-se com tristeza do teu convívio
medíocre, a evitarem-te e, pior de tudo, a
terem compaixão de ti. Se fosses psiquiatra, Zé
Ninguém, um Lombroso, por exemplo, tentarias esmagá-los
como a criminosos
irrecuperáveis ou psicóticos. Porque os objetivos da
vida dum grande homem são diversos dos teus - não consistem
na acumulação.
de bens, nem no casamento socialmente adequado das filhas, nem na
sua carreira política, nem na obtenção de honras
acadêmicas ou do Prêmio Nobel. E porque não é
como tu, chamas-lhe «gênio» ou «excêntrico».
Mas o grande homem apenas
se reserva o direito de ser um ser humano. Chamas-lhe «a-social»,
porque prefere o seu gabinete de trabalho ou o seu laboratório,
a sua linha de pensamento e o seu trabalho às tuas festinhas
ridículas e destituídas de sentido. Chamas-lhe louco
porque prefere
gastar o seu dinheiro na investigação científica
em vez de comprar ações ou outros bens. Na tua degenerescência,
Zé Ninguém, ousas considerá-lo como «anormal»
o homem simplesmente reto, pois que o comparas contigo, o
protótipo da «normalidade», o «homo normalis».
Ao medi-lo com a tua medida estreita não lhe encontras as dimensões
da tua normalidade.
Nem entendes, Zé Ninguém, que és tu que o afastas
das tuas reuniõezinhas sociais, que apenas lhe são insuportáveis,
quer nas tabernas quer nos salões de baile, porque te ama e
deseja genuinamente auxiliar-te. O que o torna aquilo
que é após várias décadas de sofrimento?
Tu, na tua irresponsabilidade, na tua tacanhez, na tua incapacidade
de refletir, e
os teus «axiomas eternos» que não sobrevivem a
dez anos de progresso social. Lembra-te.apenas de todas as coisas
que tomaste
por certas durante os escassos anos que decorreram entre a primeira
e a segunda guerra mundiais. Quantas reconheceste
como erradas, de quantas foste capaz de te retratar? De nenhumas,
Zé Ninguém. Porque o homem realmente maior
pensa cautelosamente, mas quando se apropria de uma idéia,
pensa a longo prazo. E és tu, Zé Ninguém, que
fazes do grande
homem um paria quando o seu pensamento correto e duradouro
enfrenta a mesquinhez e a precariedade das tuas convicções.
És tu que o condenas à solidão, não à
solidão que gera grandes obras, mas à solidão
do temor da incompreensão e do
ódio. Porque tu és «o povo», a «opinião
pública» e a «consciência social».
Já alguma vez pensaste na responsabilidade gigantesca
que estes atributos te conferem, Zé Ninguém? Já
alguma vez perguntaste a ti próprio se pensas corretamente,
quer do
ponto de vista da trajetória social onde estás inserido,
quer da natureza, quer até do acordo com os atos humanos de
uma figura
como, por exemplo, a do Cristo? Não, Zé Ninguém,
nunca te inquietaste com a possibilidade do que pensas estar errado,
mas sim com o que iria pensar o teu vizinho ou com o preço
possível da tua honestidade. Foram estas as únicas questões
que puseste a ti próprio.
E depois de condenares
o grande homem à solidão é ainda teu hábito
esquecê-lo. Segues o teu caminho, perorando outras asneiras,
cometendo outras baixezas, ferindo de novo.
-
-
Esqueces. Mas
é da natureza do grande homem não esquecer nem vingar-se,
mas tentar entender A INCONSISTÊNCIA DO TEU COMPORTAMENTO.
Sei que também
te é estranho que assim seja. Podes crer, porém, que
o sofrimento que infliges tantas vezes inconscientemente
- e que quantas vezes logo esqueces - é para o grande homem,
mesmo se incurável, motivo de reflexão em teu
nome, não pela grandeza dos teus atos vis, mas exatamente pela
sua pequenez. E é ele quem se interroga sobre o que te leva
a maltratar o marido ou a mulher que te desapontou, a torturar os
teus filhos porque desagradam a vizinhos odiosos, a desprezar
e explorar alguém só porque é bondoso; a receber
quando te dão e a dar quando te exigem, mas nunca a dar quando
o
que te é dado o é por amor; a bater em quem já
está de rastos; a mentir quando te é pedida a verdade
e a persegui-la bem mais
do que à mentira. Zé Ninguém, tu estás
sempre do lado dos opressores. Para que o estimasses e te caísse
em graça, o grande
homem teria de se adaptar ao teu modo de ser, Zé Ninguém,
falar como tu e gabar-se das mesmas virtudes. A verdade é
que se ostentasse as tuas virtudes, falasse a tua linguagem e gozasse
da tua amizade não mais seria grande, autêntico ou simples.
Prova é que os teus amigos que dizem exatamente o que esperas
que eles digam nunca foram grandes homens. Tu não
acreditas que qualquer amigo teu possa conseguir o que quer que seja
de grande. No mais intimo de ti próprio, desprezas-te, mesmo
quando – ou particularmente quando – gabas mais da tua dignidade;
e se te desprezas, como poderias respeitar os teus
amigos? Nunca poderias acreditar que quem quer fosse que se sentasse
à tua mesa ou vivesse na mesma casa contigo pudesse
realizar o que quer que fosse de grandioso.
Perto de ti é
difícil pensar, Zé Ninguém. É apenas possível
pensar acerca de ti, nunca contigo. Porque tu sufocas
qualquer pensamento
original. Tal como uma mãe, tu dizes às crianças
que exploram o seu mundo: «Isso não é próprio
para crianças».Como
um professor de biologia, dizes: «Isso não é coisa
para bons alunos. O quê, duvidar da teoria dos germes do ar?»
Como um professor primário, dizes: «As crianças
são para ser vistas, e não para se ouvirem».Como
uma mulher casada, dizes:
«Há! A investigação! Eu e a tua investigação!
Porque é que não vais para um escritório, como
toda a gente, ganhar decentemente
a tua vida?» Mas sobre o que se escreve nos jornais tu acreditas,
quer percebas quer não.
Garanto-te, Zé
Ninguém, que perdeste o sentido do que mais vale em ti mesmo.
Morre de sufocação às tuas mãos, em ti
e onde quer
que o encontres nos outros, nos teus filhos, na tua mulher, no teu
marido, no teu pai e na tua mãe. Tu és medíocre
e queres
continuar a sê-lo.
Perguntas-me como
sei eu tudo isto? Eu digo-te:
Conheço-te.
Experimentei-te e experimentei-me contigo. Como terapeuta libertei-te
da tua mesquinhez, como educador orientei-te
no sentido da espontaneidade, da confiança. Sei como te defendes
da espontaneidade, sei o terror que te toma quando
te pedem que sejas tu próprio, autêntico e genuíno.
Eu sei que não
és apenas medíocre, Zé Ninguém.
Sei que também tens as tuas grandes horas na vida, momentos
de «júbilo»
e «exaltação», de «vôo».
Mas falta-te a coragem para subir cada vez mais alto, para manter
a tua própria exaltação.
Tens medo de altos
vôos, medo da altura e da profundidade, Nietzsche já
te disse isto muito melhor, há muitos anos já. Só
que não
te disse porque é que és assim. Tentou transformar-te
num super-homem, um Übermensch que superasse o que tens
de humano.
O Übermensch (Além-Homem ou Super-Homem) tornou-se
«Führer Hitler». Tu permaneceste Üntermensch.
Eu gostaria
apenas que fosses tu próprio. Tu próprio, em
vez do jornal que lês ou da balofa opinião do vizinho.
Sei que não sabes o
que és e como és em profundidade. Sei que em profundidade
és como o animal acossado, como o teu próprio Deus,
como o poeta
ou o sábio. Mas crês ser o membro da Legião ou
do teu clube ou da Ku Klux Klan. E como crês sê-lo, ages
em conseqüência.
Também isto já foi dito por outros: Heinrich Mann, na
Alemanha, há vinte e cinco anos, Upton Sinclair, Dos Passos
e outros, nos Estados Unidos. Mas tu nunca ouviste falar de Mann ou
de Sinclair. Só conheces os campeões de boxe e Al
Capone. Se tivesses de escolher entre o ambiente de uma biblioteca
e o de uma taberna, escolhias o da taberna.
Exiges que a vida
te conceda a felicidade, mas a segurança é-te mais importante,
ainda que custe a dignidade ou a vida.
Como nunca aprendeste
a criar felicidade, a gozá-la e a protegê-la, não
conheces a coragem do indivíduo reto. Queres saber o que
és, Zé Ninguém? Ouve os anúncios publicitários
dos teus laxantes, das tuas pastas de dentes e desodorizantes. Mas
não ouves
a música da propaganda. Não distingues a abissal estupidez
e o mau gosto de coisas que se destinam a ficar-te no ouvido.
Já alguma vez prestaste atenção às piadas
que o intelectualóide larga a teu respeito nas revistas? Piadas
sobre ti e sobre
ele, piadas de um mundo reles e desgraçado. Escuta a tua publicidade
aos laxantes e saberás o que és.
Escuta, Zé
Ninguém: a miséria da existência humana é
visível à luz de cada um destes pequenos horrores. Cada
ato mesquinho
teu faz retroceder de mil passos qualquer esperança que possa
restar quanto ao teu futuro. E sentes isto tão penosamente
que, para não o saberes, inventas graças de mau gosto
e chamas-lhes «humor popular». Ouves a piada que te humilha
e ris-te com os outros. Ris-te do Zé Ninguém, sem entender
que é de ti que te ris, tal como milhões de outros Zés
Ninguéns.
Já alguma vez perguntaste a ti próprio por que razão
dá espaço ao longo dos séculos à tal brincadeira
maliciosa? Já alguma
vez te chocou até que ponto «as pessoas» são
ridículas nos filmes? Vou tentar dizer-te por que razão
és ridículo e vou dizer-te
porque te levo muito, mesmo muito, a sério:
Consegues sempre
faltar à verdade naquilo que pensas, à imagem do excelente
atirador que, se assim o quiser, consegue acertar
sempre mesmo abaixo do centro do alvo. Há já muito que
poderias ser senhor de ti próprio, se tentasses pensar corretamente.
Só que tu pensas assim:
«A culpa
é dos judeus». «Que é um judeu?» –
pergunto eu. «São pessoas com sangue judeu» – respondes.
«Qual é a diferença
entre o sangue judeu e o outro?» Aqui estacas, hesitas, ficas
confuso e respondes: «Quero dizer, dá raça dos
judeus».»Que
é raça?» – pergunto eu. «Raça? É
simples, assim como existe uma raça germânica, existe
a raça dos judeus».
«Que é
que caracteriza a raça dos judeus?» «Bom, um judeu
tem cabelos pretos, tem uma bossa no nariz e olhos muito vivos».
Os judeus são
avarentos e capitalistas.» «Já alguma vez viste
um francês do Sul ou um italiano ao Pé dum judeu? Sabes
distinguí-los?»
«Lá isso não sei assim muito bem» «Bom,
então que é um judeu? As análises de sangue não
mostram qualquer diferença,
não se distingue de um francês ou de um italiano. E já
alguma vez viste judeus alemães?» «Já, pois,
parecem alemães.»
«E que é um alemão?» «Um alemão
pertence à raça ariana nórdica.» «Os
Índios são arianos?» «São.»
«E são nórdicos?»
«Não.» «E loiros?’ «Não.»
«Bom, então não sabes o que é um alemão
e o que é um judeu.» «Mas há judeus.»
«Pois há,
tal como há cristãos e maometanos.» «Eu
refiro-me à religião judaica.» «Roosevelt
era holandês?» «Não.» «Então
porque é que
chamas judeu a um descendente de David, se não chamas holandês
ao Roosevelt?» Com os judeus é diferente. «Em que
é que
é diferente?» «Não sei.»
E é assim
que tu desatinas, Zé Ninguém. E sobre os teus desatinos
levantas exércitos capazes de assassinar dez milhões
de pessoas,
porque são «judeus», sem que tu saibas sequer dizer
o que é um judeu. E é por isso que és ridículo,
que o melhor é evitar-te
quando se tem alguma coisa de sério para fazer, é por
isso que permaneces no lameiro. Quando dizes «judeu» sentes-te
superior.
E és forçado a dizê-lo pela tua própria
miséria, pois o que matas no judeu é o que sentes que
tu próprio és. Mas isto
é apenas uma ínfima parcela da tua verdade, Zé
Ninguém.
Quando dizes «judeu»
cheio de arrogância e desprezo sentes menos a tua própria
mesquinhez. Só recentemente me dei conta
de que assim era. Só chamas «judeu» a quem suscita
muito pouco ou demasiado o teu respeito. A tua concepção
de «judeu»
é perfeitamente arbitrária. Só que eu não
te dou o direito a usá-la, quer tu sejas judeu ou ariano. Só
eu próprio tenho o direito
a determinar quem sou. Biológica e culturalmente sou um rafeiro
e orgulho-me de ser o produto intelectual e físico de todas
as classes, raças e nações, orgulho-me de
não pertencer a uma «raça pura», como tu,
de não pertencer a uma «classe pura»,
de não ser chauvinista como tu, um fascistinha de todas as
nações, raças e classes. Constou-me que em Israel
rejeitaste um
técnico judeu pelo simples fato de não ser circuncidado.
Não tenho mais afinidades com os judeus fascistas do que com
quaisquer
outros. Porque recuas apenas até Sem, e não até
ao protoplasma? A vida para mim tem início nas contrações
plasmáticas,
e não no escritório de um rabi.
Levou milhões
de anos a tua evolução de água-viva a bípede
terrestre. A tua aberração biológica sob a forma
de rigidez dura
apenas há seis mil anos. Levará cem ou quinhentos ou
talvez cinco mil anos até que redescubras em ti a natureza,
a célula inicial.
Eu descobri em ti a água-viva e, quando me ouviste pela primeira
vez, chamaste-me gênio. Foi na Escandinávia, andavas
tu à procura de um novo Lenin. Mas eu tinha coisas mais importantes
a fazer e declinei a função.
Também
me proclamaste novo Darwin, ou Marx, ou Pasteur, ou Freud. Disse-te
já há muitos anos que também tu poderias falar
e escrever como eu, se não passasses a vida a saudar os novos
messias. Porque os teus gritos destroem-te a razão e paralisam
a tua natureza criadora.
Não és
tu que persegues a «mãe solteira» como uma criatura
imoral, Zé Ninguém? Não és tu que estabeleces
uma distinção
severa entre as crianças «legítimas» e as
crianças «ilegítimas?» Pobre criatura, que
não entendes as tuas próprias palavras
- ou não és tu que veneras o Cristo enquanto criança?
Cristo menino, que nasceu de uma mãe que não possuía
certificado
de casamento? Sem fazeres idéia de que assim seja, como.veneras
no Cristo criança o teu desejo de liberdade sexual!
Fizeste do Cristo criança, nascido ilegitimamente, o filho
de Deus, que não reconhece a ilegitimidade de crianças.
Para logo em seguida,
como Paulo [N.E.], o Apóstolo, perseguir os filhos nascidos
do amor e proteger sob a alçada das leis religiosas os
nascidos do ódio. És realmente um desgraçado,
Zé Ninguém!
Os teus automóveis
e comboios atravessam as pontes que o grande Galileu inventou. Sabias,
Zé Ninguém, que o grande Galileu
teve três filhos sem qualquer certificado de casamento? Isso
não dizes tu às crianças da escola. E não
foi também por isso
mesmo que o submeteste à tortura?
Sabias, Zé
Ninguém, que, na «Pátria dos Povos Eslavos»,
o, teu grande Lenin, pai dos proletários de todo o mundo, ao
tomar o
Poder aboliu o casamento compulsivo? E sabias que ele próprio
viveu com a mulher sem certificado de casamento? E foi
então que pela mão do chefe de todos os Eslavos restabeleceste
as leis referentes à obrigatoriedade do casamento, porque não
sabias que havias de fazer da liberdade que te fora concedida por
Lenin.
Mas o que é
que tu sabes de tudo isto, tu que não fazes a mínima
idéia do que seja a verdade, ou a história, ou a luta
pela liberdade?
Quem és tu para teres opinião própria?
Nem sequer te
apercebes de que a opressão das leis que regulam a tua vida
matrimonial decorre naturalmente do teu espírito
pornográfico e da tua irresponsabilidade sexual.
Sentes-te infeliz
e medíocre, repulsivo, impotente, sem vida, vazio. Não
tens mulher e, se a tens, vais com ela para a cama só
para provar que és «homem». Nem sabes o que é
o amor. Tens prisão de ventre e tomas laxantes. Cheiras mal
e a tua pele é
pegajosa, desagradável. Não sabes envolver o teu filho
nos braços, de modo que o tratas como um cachorro em quem se
pode bater
à vontade. A tua vida vai andando sob o signo da impotência,
no que pensas, no teu trabalho. A tua mulher abandona-te
porque és incapaz de lhe dar amor. Sofres de fobias, nervosismo,
palpitações. O teu pensamento dispersa-se em ruminações
sexuais. Falam-te de economia sexual. Algo que te entende e poderia
ajudar-te. Que te permitiria viveres à noite a
tua sexualidade e que te deixaria livre durante o dia para
pensar e trabalhar.
[segue
na Parte II]
-
-
- Nota
do Editor: Segundo as narrativas do Novo Testamento
talvez fosse mais correto chamar o temido perseguidor
dos «filhos do amor», ou «protetor dos filhos do ódio»
pelo nome Saulo,
e não Paulo, como faz Reich. Até pouco tempo depois do
assassinato de Estevão, Saulo, então proeminente líder
fariseu, como seus pares, apesar de ter conhecido Jesus «em sua
vida corpórea» (2 Cor. 5.16), olhava-o com desconfiança não
apenas pelas críticas que fazia a determinadas ordenanças, como as regras
do sábado sagrado, do jejum, da própria lei e da tradição, desconfiava
também das críticas que Jesus fazia diretamente aos própios
rabinos e membros da seita. Esses líderes religiosos judaicos
enviaram uma delegação para observar Jesus na Galiléia. A finalidade
era óbvia: acusá-lo de traição, se condenado, seria crucificado,
«pendurado no madeiro», uma morte especialmente amaldiçoada pela Lei
( Deut. 21.23). Se Jesus fosse de Deus, seguramente seria salvo: Deus
não o deixaria sofrer danação: então seria salvo e retirado da
cruz. Talvez muitos dos discípulos de Jesus, como o próprio Judas Escariotes,
podem ter compartilhado desta convicção. Saulo sustentou os insultos
dos acusadores de Jesus no Calvário e os desafios dos rabinos «Seu Messias!
Seu Rei de Israel! Desça da Cruz e nos creremos». Deus não interveio
e o veridito não poderia ser outro: Jesus era maldito, sua reivindicação
era falsa. Seus seguidores deveriam ser destruídos. O vigor da perseguição
lançada sobre os discípulos de Jesus expressa a amargura da decepção
de Saulo. O brutal assassinato de Estêvão, que ocorreu bem na sua frente,
intensificou ainda mais a violência de sua agressão. Foi quando ocorreu
a súbita e desgastante experiência da presença e da atração de Jesus
no caminho de Damasco, (em suas próprias palavras, veja 1 Cor. 15.8)
onde a conversão foi imediata -- daí passou a chamar-se Paulo,
colocando-se ao lado dos «filho
do amor» e contra os «filhos do ódio».
Vide Comunalismo
Cristão, pág. 54 em diante.
|