Escuta, Zé Ninguém!

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Escuta, Zé Ninguém!

Wilhelm Reich

fonte digital:
Coletivo SABOTAGEM
http://www.sabotagem.cjb.net/

 

 

 

Amor, trabalho e sabedoria são as fontes da nossa vida.
Deviam também governá-la.

 

Ó respeitáveis enganadores que troçais de mim!
Donde brota a vossa política,
Enquanto o mundo for governado por vós?
Das punhaladas e do assassínio!
Charles de Coster (em Ulenspiegel)

 

O Autor:

Wilhelm Reich nasceu a 24 de Março de 1897 nos confins orientais da Galícia, então na posse do Império Austro-Húngaro.

Acusado de charlatanismo, perseguido pelos nazistas e pelos «democratas» norte-americanos, expulso do círculo de psicanalistas e do Partido Comunista. Foram inúmeros os problemas que teve com todos os tipos de poderes instituídos. Isso graças ao vigor de seu pensamento e de sua independência frente às instituições repressivas que tanto criticou. Não reconheceu limites na ciências, da psicologia foi pra física, pra biologia... e cada campo recebeu valiosíssimas contribuições, que até hoje (até mesmo nas academias) não são reconhecidas e até mesmo boicotadas.

Em 1918 matriculou-se na Faculdade de Medicina de Viena, orientando o essencial dos seus estudos para a Biologia, a Sexologia e as teorias de Freud. No final dos anos 20 ingressa na Associação Psicanalítica de Viena, onde provocará grandes controvérsias, pois o seu pensamento vai-se afastando da ortodoxia freudiana e por diferenças políticas. Acabará por ser expulso em 1934.

Entretanto escreve os seus primeiros livros: O Caráter Impulsivo, 1925; A Função do Orgasmo, 1927; Maturidade Sexual, Continência, Moral Conjugal, 1930; O Aparecimento da Moral Sexual, 1932; A Luta Sexual da Juventude, 1932; Psicologia de Massa do Fascismo, 1933; e Análise do Caráter, 1933. Alguns deles só muitos anos mais tarde seriam devidamente apreciados. Reich desenvolveu também artefatos usados na cura do câncer e na diminuição dos efeitos negativos da energia nuclear.Comentários sobre alguns deles:

- A Função do Orgasmo (de 1942 e renovado em 1961) sintetiza o trabalho médico e científico de Reich com o organismo humano em um período de vinte anos e apresenta todo o desenvolvimento desse trabalho em sua rápida progressão da esfera da psicologia para a da biologia. Afirma que o orgasmo sexual pleno e satisfatório é o regulador biológico da harmonia vital e que as neuroses são provocadas através dos bloqueios à afetividade. A descoberta do orgônio (ou orgone) foi o resultado de uma profunda investigação clínica do conceito de «energia psíquica», a princípio na esfera da psiquiatria. A experiência tem mostrado que o conhecimento das funções emocionais da energia biológica é indispensável para a compreensão das funções fisiológicas e físicas.

- Segunda obra importante de Reich, Análise do Caráter, considerado como o que de melhor e mais profundo se havia dito sobre psicoterapia. Foi escrito para o analista e desenvolve com exatidão - com numerosos exemplos clínicos - sua singular técnica terapêutica - Em 1953 publica O Assassinato de Cristo onde explora o significado da vida de Jesus e atribui o flagelo universal que causou sua agonia e morte à Peste Emocional Da Humanidade, presente no Zé Ninguém. O homem se defronta, através dos tempos, com a plena responsabilidade pelo assassinato de Cristo: pelo assassinato do vivo, qualquer que seja a forma sob a qual se apresenta. Esta é a verdade crua sobre o modo real como as pessoas são, agem e se emocionam. Muitas das passagens lembram a própria vida de Reich, que sofreu várias perseguições e preconceitos graças aos seus posicionamentos nada ortodoxos.

Após uma viagem à Rússia, em 1929, instala-se em Berlim dois anos depois. Mas a ascensão do nazismo leva-o a trocar Berlim e Viena por Copenhage. Seguem-se Malmoe, Londres, Paris, Zurique, Lucerna, Oslo, até chegar aos Estados Unidos, em 1939. A sua permanência neste país irá causar-lhe dissabores que terão sido provavelmente os mais amargos da sua vida agitada. Logo em 1941 é preso por dois agentes do F.B.I., que lhe apreendem livros como Mein Kampf (A Minha Luta), de Hitler, e My Life (A Minha Vida), de Trotsky.

Considerado «pai» das Psicoterapias Corporais, Wilhelm Reich entende o ser humano como uma das expressões da energia que chamou orgone, uma energia que preenche todo o espaço cósmico e se expressa em diferentes concentrações, movimentos e formas. W. Edward Mann descreve a teoria da energia orgônica de Reich e suas aplicações e mostra como elas se relacionam com as atuais terapias energéticas e às teorias de outras épocas e outras culturas, especialmente ao conceito hindu de prana e à teoria da força vital subjacente à técnica chinesa de acupuntura. Reich delineou o primeiro código e a primeira gramática da linguagem gestual e expressiva da personalidade. Genial teórico colocou os princípios de base para uma Revolução político-sexual que permanece, mais do nunca, necessária e exemplar.

Foi um dos motores dos desconfortos globais juvenis (assim como Marcuse, que juntou Freud e Marx, afirmando que a inibição dos instintos sexuais na criança pela família é o primeiro passo de uma repressão permanente. Ver: Eros e Civilização e O Homem Unidimensional), da geração dos 60, frente ao capitalismo e às instituições autoritárias regidas por velhos caquéticos. Na sua obra O Combate Sexual da Juventude, defende que a conquista da liberdade e de uma nova forma de vida, são inseparáveis de uma livre satisfação sexual. A família é o elo ideológico indispensável que permite a integração da juventude na sociedade capitalista graças à educação repressiva que transmite. E é esta moral repressiva a responsável pela maior parte das perturbações na adolescência. Um dos jargões do movimento estudantil da época resume bem esse sentimento de transgressão: «Quanto mais faço amor, mais tenho vontade de fazer a revolução; quanto mais faço a revolução, mais tenho vontade de fazer amor.

Depois deste incidente, Wilhelm cria o Orgone Institute na sua pequena propriedade do Maine. Aí fará os seus trabalhos de investigação e escreverá os últimos livros, até ser julgado e condenado a dois anos de prisão, em 25 de Maio de 1956.

Recusado o apelo interposto a tal sentença, Reich é preso em 12 de Março de 1957. A 3 de Novembro uma crise cardíaca vitima-o na penitenciária de Ludwigburg (estado da Pensilvânia).

Incompreendido à esquerda e amaldiçoado à direita, Wilhelm Reich é fundamentalmente um pensamento inconformista e autenticamente revolucionário.

 

Introdução

Escuta, Zé Ninguém! não é um documento científico, mas humano. Foi escrito no Verão de 1946, para os arquivos do Instituto Orgone, sem que se pensasse, então, em publicá-lo. Resultou da luta interior de um cientista e médico que, durante décadas, passou pela experiência, a princípio ingênua, depois cheia de espanto e, finalmente, de horror, do que o Zé Ninguém, o homem comum, é capaz de fazer de si próprio, de como sofre e se revolta, das honras que tributa aos seus inimigos e do modo como assassina os seus amigos. Sempre que chega ao poder como «representante do povo», aplica-o mal e transformado em qualquer coisa ainda mais cruel do que o sadismo que outrora suportava por parte dos elementos das classes anteriormente dominantes.

Escuta, Zé Ninguém! representa uma resposta silenciosa à intriga e à difamação. Ao ser escrito, ninguém podia compreender que certas entidades governamentais com missão de proteger a saúde pública fossem capazes, em conluio com politiqueiros, de atacar o trabalho de investigação do Instituto Orgone. A tentativa, no ambiente de peste emocional de 1947, de destruir o Instituto (não com provas de erro ou crime, mas atacando a sua honra) levou a publicar, como documento histórico, Escuta, Zé Ninguém!.

As circunstâncias mostravam ser necessário, ao homem comum, saber o que se passa nos bastidores de um laboratório científico e, ao mesmo tempo, verificar o que pensa a seu respeito um psiquiatra experiente. Que conheça a realidade, único modo de vencer a desastrosa paixão pelo poder que tanto o obceca. Que lhe seja dito, sem rebuço, que responsabilidade assume, quando trabalha, ama, odeia ou difama. Que entenda como se chega ao fascismo, negro ou vermelho, ambos igualmente perigosos para a segurança dos vivos e para a proteção de nossos filhos. Isso, não apenas porque tais ideologias, vermelhas ou negras, são intrinsecamente assassinas, mas também por transformarem crianças saudáveis em adultos mutilados, autômatos e moralmente dementes.

Pois dão preferência ao Estado sobre a justiça, à mentira sobre a verdade, à guerra sobre a vida. Para o educador, para o médico, existe apenas uma fidelidade: ao que há de vivo na criança e no doente. Se esta fidelidade for estritamente respeitada, até os grandes problemas da «política externa», encontram uma solução simples.

Esta «conversa» não pretende apresentar receitas existenciais. Simplesmente, descreve as tempestades emocionais por que passa um homem produtivo e satisfeito. Não visa convencer, aliciar ou conquistar ninguém. Visa, sim, retratar a experiência, como um guache pinta uma tempestade. O leitor não é chamado a testemunhar-lhe simpatia. Pode ler ou não ler. Não encerra quaisquer intenções ou programas. Visa unicamente facultar ao pesquisador e ao pensador o direito ao sentimento e a reação pessoal, nunca disputado ao poeta e ao filósofo. É um protesto contra os desígnios secretos e ignotos da peste emocional que, bem entrincheirada e em segurança, vem capciosamente envenenando o investigador honesto e corajoso com as suas setas ervadas. Mostra como é a peste emocional, como funciona e entrava o progresso. Testemunha ainda a confiança na inexplorada riqueza que se oculta na «natureza humana», pronta a servir as esperanças do homem.

 

 

Escuta, Zé Ninguém!

Chamam-te «Zé Ninguém!» «Homem Comum» e, ao que dizem, começou a tua era, a «Era do Homem Comum». Mas não és tu que o dizes, Zé Ninguém, são eles, os vice-presidentes das grandes nações, os importantes dirigentes do proletariado, os filhos da burguesia arrependidos, os homens de Estado e os filósofos. Dão-te o futuro, mas não te perguntam pelo passado.

Tu és herdeiro de um passado terrível. A tua herança queima-te as mãos, e sou eu que to digo. A verdade é que todo o médico, sapateiro, mecânico ou educador que queira trabalhar e ganhar o seu pão deve conhecer as suas limitações. Há algumas décadas, tu, Zé Ninguém, começaste a penetrar no governo da Terra. O futuro.da raça humana depende, à partir de agora, da maneira como pensas e ages. Porém, nem os teus mestres nem os teus senhores te dizem como realmente pensas e és, ninguém ousa dirigir-te a única critica que te podia tornar apto a ser inabalável senhor dos teus destinos. És «livre» apenas num sentido: livre da educação que te permitiria conduzires a tua vida como te aprouvesse, acima da autocrítica.

Nunca te ouvi queixar: «Vocês promovem-me a futuro senhor de mim próprio e do meu mundo, mas não me dizem como fazê-lo e não me apontam erros no que penso e faço».

Deixas que os homens no poder o assumam em teu nome. Mas tu mesmo nada dizes. Conferes aos homens que detêm o poder, quando não o conferes a importantes mal intencionados, mais poder ainda para te representarem. E só demasiado tarde reconheces que te enganaram uma vez mais.

Mas eu entendo-te. Vezes sem conta te vi nu, psíquica e fisicamente nu, sem máscara, sem opção, sem voto, sem aquilo que fiz de ti «membro do povo». Nu como um recém-nascido ou um general em cuecas. Ouvi então os teus prantos e lamúrias, ouvi-te os apelos e esperanças, os teus amores e desditas. Conheço-te e entendo-te. E vou dizer-te quem és, Zé Ninguém, porque acredito na grandeza do teu futuro, que sem dúvida te pertencerá. Por isso mesmo, antes de tudo o mais, olha para ti. Vê-te como realmente és. Ouve o que nenhum dos teus chefes ou representantes se atreve a dizer-te: És o «homem médio», o «homem comum». Repara bem no significado destas palavras: «médio» e «comum».

Não fujas. Tem ânimo e.contempla-te. «Que direito tem este tipo de dizer-me o que quer que seja?» Leio esta pergunta nos teus olhos-amedrontados. Ouço-a na sua impertinência, Zé Ninguém. Tens medo de olhar para ti próprio, tens medo da crítica, tal como tens medo do poder que te prometem e que não saberias usar. Nem te atreves a pensar que poderias ser diferente: livre em vez de deprimido, direto em vez de cauteloso, amando às claras e não mais como um ladrão na noite. Tu mesmo te desprezas, Zé Ninguém, Dizes: «Quem sou eu para ter opinião própria, para decidir da minha própria vida e ter o mundo por meu?» E tens razão: Quem és tu para reclamar direitos sobre a tua vida? Deixa-me dizer-te.

Diferes dos grandes homens que verdadeiramente o são apenas num ponto: todo o grande homem foi outrora um Zé Ninguém que desenvolveu apenas uma outra qualidade: a de reconhecer as áreas em que havia limitações e estreiteza no seu modo de pensar e agir. Através de qualquer tarefa que o apaixonasse, aprendeu a sentir cada vez melhor aquilo em que a sua pequenez e mediocridade ameaçavam a sua felicidade. O grande homem é, pois, aquele que reconhece quando e em que é pequeno. O homem pequeno é aquele que não reconhece a sua pequenez e teme reconhecê-la; que procura mascarar a sua tacanhez e estreiteza de vistas com ilusões de força e grandeza, força e grandeza alheias. Que se orgulha dos seus grandes generais, mas não de si próprio. Que admira as idéias que não teve, mas nunca as que teve. Que acredita mais arraigadamente nas coisas que menos entende, e que não acredita no que quer que lhe pareça fácil de assimilar.

Comecemos pelo Zé Ninguém que habita em mim: Durante vinte e cinco anos tomei a defesa, em palavras e por escrito, do direito do homem comum à felicidade neste mundo; acusei-te pois da incapacidade de agarrar o que te pertence, de preservar o que conquistaste nas sangrentas barricadas de Paris e Viena, na luta pela Independência americana ou na revolução russa.

Paris foi dar a Pétain e Laval, Viena a Hitler, a tua Rússia a Stalin, e a tua América bem poderia conduzir a um regime KKK – Ku-Klux-Klan. Sabes melhor lutar pela tua liberdade que preservá-la para ti e para os outros. Isto eu sempre soube. O que não entendia, porém, era porque de cada vez que tentavas penosamente arrastar-te para fora de um lameiro acabavas por cair noutra ainda pior. Depois, pouco a pouco, às apalpadelas e olhando prudentemente em torno, entendi o que te escraviza: ÉS TU O TEU PRÓPRIO NEGREIRO. A verdade diz que mais ninguém senão tu é culpado da tua escravatura. Mais ninguém, sou eu que te digo!

Esta é nova, hein? Os teus libertadores garantem-te que os teus opressores se chamam Guilherme, Nicolau, papa Gregório XXVIII, Morgan, Krupp e Ford. E que os teus libertadores se chamam Mussolini, Napoleão, Hitler e Stalin.

Mas eu afirmo: Só tu podes libertar-te.

Esta frase faz-me, porém, vacilar. Intitulo-me paladino da pureza e da verdade, mas agora que se trata de te dizer a verdade, hesito, temendo a tua atitude em relação à verdade. A verdade é um perigo para a vida quando é a ti que diz respeito.

A verdade é a salvação mas não há população que não se lance sobre ela para a espoliar, de outro modo não serias o que és nem estarias onde estás.

Intelectualmente, sei que devo dizer a verdade a todo o custo. Mas o Zé Ninguém que se alberga em. mim adverte-me: estúpido, expores-te, entregares-te, ao Zé Ninguém. O Zé Ninguém não está interessado em ouvir a verdade acerca de si próprio. Não deseja assumir a grande responsabilidade que lhe cabe, quer queira quer não. Quer permanecer o que é ou, quando muito, tornar-se num desses grandes homens medíocres – ser rico, chefe de um partido, da Associação dos Veteranos de Guerra ou secretário da Sociedade de Promoção da Moral Pública. Mas assumir a responsabilidade do seu trabalho, alimentação, alojamento, Transportes, educação, investigação, administração pública, exploração mineira, isso nunca.

E o Zé Ninguém que se aloja dentro de mim acrescenta: «És agora um grande homem, conhecido na Alemanha, Áustria, Escandinávia, Inglaterra, América, Palestina. Os comunistas atacam-te. Os ‘defensores dos valores culturais’ odeiam-te. Os teus alunos estimam-te. Os doentes que curaste admiram-te. Os que sofrem da peste emocional perseguem-te. Escreveste 12 livros e 150 artigos sobre as misérias da existência, sobre o sofrimento do homem comum. As tuas idéias são ensinadas nas Universidades; outros grandes homens igualmente solitários confirmam o teu prestígio e põem-te entre os maiores intelectos da história da ciência. Fizeste uma das maiores descobertas científicas desde há muitos séculos, a da energia cósmica da vida e suas leis. Tornaste o cancro um fenômeno compreensível. Por tudo isto, andaste de pais em pais por dizeres a verdade. Descansa agora. Goza os frutos do teu êxito, do teu prestígio. Em poucos anos o teu nome será conhecida por todos. O que fizeste já basta. Recolhe-te agora ao repouso, ao estudo da lei funcional da natureza».

Esta é a conversa do Zé Ninguém dentro de mim e que te teme a ti, Zé Ninguém.

Durante muito tempo sintonizei contigo porque conhecia a tua vida através da minha própria existência e porque queria ajudar-te. Mantive-me perto de ti porque via que te era útil e que aceitavas o meu auxilio com prazer e, não raro, com lágrimas nos olhos. Só aos poucos percebi que o aceitavas, mas que não eras capaz de defendê-lo. Defendi-o e lutei para ti, por ti.

Foi
então que os teus chefes destruíram o meu trabalho e que tu os seguiste em silêncio. Continuei então em comunhão contigo, tentando achar maneira de ajudar-te sem soçobrar quer como teu dirigente quer como tua vítima. E o Zé Ninguém que reside em mim tentava convencer-te, «salvar-te», merecer-te o respeito que consagras às «altas matemáticas» por não fazeres a mínima idéia do que sejam. Quanto menos entendes, mais prezas. Conheces Hitler melhor que a Nietzsche, Napoleão melhor que a Peslalozzi. Qualquer monarca significa mais para ti do que Sigmund Freud. E o Zé Ninguém que vive em mim gostaria de ter-te nas mãos pelo processo costumeiro, recorrendo ao rataplã dos chefes. Eu temo-te, porém, quando o meu Zé Ninguém deseja «conduzir-te à liberdade». É que poderias descobrir a mesma identidade medíocre em ti e em mim, e, assustado, matares-te na minha pessoa. Foi por isso que deixei de ser escravo da tua liberdade e desejar morrer por ela.

Sei que não me entendes ainda quando te falo na «liberdade de ser escravo de quem quer que seja», idéia que não é fácil.

Para não ser escravo fiel de um único senhor, e ser escravo de todos, ter-se-á em primeiro lugar que matar o opressor, digamos, por exemplo, o Czar. Este crime político nunca poderia ser perpetrado sem um grande ideal de liberdade e motivos revolucionários. É, portanto, necessário fundar um partido revolucionário de liberdade sob a égide de um homem verdadeiramente grande, seja ele Jesus Cristo, Marx, Lincoln ou Lenin. Claro está que este grande homem tomará a tua liberdade muito a sério. Para a impor, terá que rodear-se de uma multidão de homens menores, ajudantes e moços de recados, dada a imensidade de tarefa para um só homem. Tu não, irias entendê-lo, e deixá-lo-ias de lado, se ele se rodeasse de gente um pouco superior. Assim escudado, ele conquista para ti o poder, ou uma parcela da verdade, ou uma nova e melhor crença.

Escreve evangelhos, promulga leis liberais, e conta com o teu apoio, seriedade e prontidão. Arranca-te do lameiro social onde te encontras imerso. Para manter solidários os muitos acólitos de menor talhe, para conservar a tua confiança, o homem verdadeiramente grande sacrifica pouco a pouco a sua grandeza que ele só pôde cultivar na sua profunda solidão espiritual, longe de ti e do teu bulício quotidiano mas em estreito contacto com a tua vida. Para te poder guiar, terá de conseguir que o transformes num Deus inacessível, pois que jamais obteria a tua confiança se permanecesse o simples homem que é, um homem a quem fosse, por exemplo, possível amar uma mulher sem estar casado com ela. E assim engendras um novo amo.

Promovido ao seu novo papel senhorial, eis que o grande homem mingua, pois que a grandeza lhe estava na inteireza, simplicidade, coragem e proximidade da vida. Os seus medíocres acólitos, grandes mercê da aura dele, assumem os altos cargos das finanças, da diplomacia, do governo, das ciências e das artes – e tu ficas onde estavas: no lameiro, pronto a esfarrapares-te novamente em nome do «futuro socialista» ou do «Terceiro Reich». Continuarás a viver em barracas com telhados de palha e paredes rebocadas de estrume, mas muito ufano dos teus palácios da cultura. Basta-te a ilusão de que governas – até que sobrevenha a próxima guerra e a queda dos novos tiranos.

Em países distantes, homens medíocres estudaram com afinco a tua ânsia de ser escravo e descobriram como tornar-se grandes homens medíocres com um mínimo de esforço intelectual. Esses homens vêm das tuas fileiras, nunca habitaram palácios. Passaram fome e sofreram como tu - mas aprenderam a encurtar o processo de mudança dos chefes.
Aprenderam
que cem anos de árduo trabalho intelectual em prol da tua liberdade, de grandes sacrifícios pessoais pelo teu bem-estar, de holocausto até da vida nos interesses da tua libertação, eram preço demasiado alto pela tua próxima nova escravatura. Tudo o que pudesse haver sido elaborado ou sofrido em 100 anos de vida de grandes pensadores podia ser destruído em menos de cinco anos. Os homúnculos da tua estirpe aprenderam, assim, a abreviar o processo: fazem-no mais aberta e brutalmente. E dizem-te sem rebuços que tu, a tua vida, os teus filhos e a tua família não contam, que és estúpido e subserviente e que podem fazer de ti o que lhe aprouver. E em vez de liberdade pessoal prometem-te liberdade nacional. Não te prometem dignidade pessoal mas respeito pelo Estado; grandeza nacional em vez de grandeza pessoal. E como «liberdade pessoal» e «grandeza» são para ti apenas conceitos estranhos e obscuros, enquanto «liberdade nacional» e «interesses do Estado» são palavras que te enchem a boca, como ossos que fazem nascer a água na boca de um cão, não há amém que não lhes dê. Nenhum desses homens medíocres paga pela liberdade autêntica o preço que pagaram Giordano Bruno, Cristo, Karl Marx ou Lincoln. Nem tu lhes interessas a ponta de um chavelho. Desprezam-te como tu te desprezas, Zé Ninguém. E conhecem-te bem, muito melhor do que um Rockefeller ou os Conservadores. Conhecem os teus podres como só tu próprio os devias conhecer. Sacrificam-te a um símbolo e és tu próprio quem lhes confere o poder que exercem sobre ti. Ergueste tu próprio os teus tiranos, e és tu quem os alimenta, apesar de terem arrancado as máscaras, ou talvez por isso mesmo. Eles mesmo te dizem clara e abertamente que és uma criatura inferior, incapaz de assumir responsabilidades, e que assim deverás permanecer. E tu nomeia-los novos «salvadores» e dá-lhes «vivas».

É por isso que eu tenho medo de ti, Zé Ninguém, um medo sem limites. Porque é de ti que depende o futuro da humanidade. E tenho medo de ti. porque não existe nada a que mais fujas do que a encarar-te a ti próprio., Estás doente, Zé Ninguém, muito doente, embora a culpa não seja tua. Mas é a ti que cabe libertares-te da tua doença. Já há muito que terias derrubado os teus verdadeiros opressores se não tolerasses a opressão e não a apoiasses tu próprio. Nenhuma força policial do mundo poderia prevalecer contra ti se tivesses ao menos uma sombra de respeito por ti próprio na tua vida quotidiana, se tivesses aprofunda convicção de que, sem o teu esforço, a vida sobre a terra não seria possível por nem uma hora mais. Será que o teu «libertador» te disse? Qual quê! Chama-te «Proletário do Mundo», mas não te dizem que tu, e só tu, és responsável pela tua vida (em vez de seres responsável pela «honra da pátria»).

Terás que entender que és tu quem transforma homens medíocres em opressores e torna mártires os verdadeiramente grandes; que os crucificas, os assassinas e os deixas morrer de fome; que não te ralas absolutamente nada com os seus esforços e as lutas que travam em teu nome; que não fazes a menor idéia de quanto lhes deves do pouco de satisfação e plenitude de que gozas na vida.

Dizes: «Antes de confiar em ti, gostaria de saber qual a tua filosofia da vida.» Quando souberes a minha filosofia da vida vais a correr ao presidente da Câmara, ou ao «Comitê contra as Atividades Antiamericanas», ou ao F.B.I., ao G.P.U. ou à imprensa sensacionalista, ou à Ku Klux Klan, ou aos «Líderes dos Proletários de Todo o Mundo», ou pura e simplesmente safas-te:

Não sou um Vermelho, nem um Branco, nem um Negro, nem um Amarelo.

Não sou nem cristão, nem judeu, nem maometano, mórmon, homossexual, polígamo, anarquista ou membro de seita secreta.

Faço amor com a minha mulher porque a amo e a desejo e não porque tenha um certificado de casamento ou para satisfazer as minhas necessidades sexuais.

Não bato nas crianças, não vou à pesca e não mato veados nem coelhos. Mas não atiro mal e gosto de acertar no alvo.

Não jogo brídge, não dou festas com o fito de divulgar as minhas teorias. Se o que penso é correto divulgar-se-á por si próprio.

Não.submeto o meu trabalho às autoridades oficiais de saúde, a não ser que elas possam entendê-lo melhor do que eu. E sou em quem decide quem pode manejar o conhecimento e as particularidades da minha descoberta.

Observo estritamente o cumprimento das leis quando fazem sentido, e luto contra elas quando obsoletas ou absurdas. (Não corras já para o presidente da Câmara, Zé Ninguém, porque se ele for um homem decente faz o mesmo.).

Desejo que as crianças e os adolescentes experimentem com o corpo a sua alegria no prazer tranqüilamente.

Não creio que para ser religioso no sentido genuíno da palavra seja necessário destruir a vida afetiva e tornar-se crispado e encolhido de corpo e de espírito.

Sei que aquilo a que chamas «Deus» existe, mas de forma diferente da que pensas: é a energia cósmica primordial do Universo, tal como o amor que anima o teu corpo, a tua honestidade e o teu sentimento da natureza em ti ou à tua volta.

Ponho na rua quem quer que seja que, sob qualquer pretexto insignificante, tente interferia no meu trabalho clínico e pedagógico com doentes ou crianças. Confrontá-lo-ia em tribunal com algumas perguntas simples e claras a que não lhe seria possível responder sem cobrir a cara de vergonha para o resto da vida. Porque eu sou um homem de trabalho que sabe o que um homem é por dentro, que sabe o que o outro vale e que deseja que seja o trabalho a governar o mundo, e não as opiniões sobre o trabalho. Tenho a minha opinião e sei distinguir uma mentira da verdade que quotidianamente emprego como instrumento e que sei manter limpo após uso.

Tenho muito medo de ti, Zé Ninguém, um enorme e profundo medo, e nem sempre foi assim. Eu já fui um Zé Ninguém entre milhões de outros. Hoje, como cientista e psiquiatra, sei ver que és doente e perigoso na tua doença. Aprendi a reconhecer o fato de que é a tua doença emocional que te destrói minuto a minuto, e não qualquer poder exterior. Há muito já que terias suprimido os tiranos se estivesses vivo e são no teu íntimo. Hoje em dia os teus opressores vêm das tuas próprias fileiras, tal como outrora vinham dos estratos mais altos da hierarquia social. Ainda são mais medíocres do que tu, Zé Ninguém. Porque, tendo conhecido por experiência a tua miséria, é necessária muita mediocridade para utilizar esse conhecimento com vista à tua supressão ainda mais perfeita e eficaz.

Tu não tens sequer a capacidade de reconhecer um homem verdadeiramente grande. O seu modo de ser, o seu sofrimento, as suas aspirações, raivas e lutas. em teu nome são-te completamente alheios. Nem sequer entendes que existem homens e mulheres incapazes de suprimir-te ou explorar-te e que genuinamente desejam que sejas livre, real o verdadeiramente livre.

Nem. te agradam, porque são de outra natureza. São simples e diretos; para eles, a verdade corresponde às tuas tácticas.

Vêem-te à transparência, não em derisão, mas em mágoa pelo destino dos homens. Mas tu sentes apenas que olham através de ti, e tens medo. Só os aclamas, Zé Ninguém, quando muitos outros Zés Ninguéns te dizem que esses grandes homens são grandes. Tens medo deles, do tão perto que estão da vida e do amor que lhe têm. O grande homem ama-te simplesmente como criatura humana, ser vivo.

Deseja apenas que cesse o teu sofrimento milenar. Que cales o teu milenar cacarejo. Que não mais sejas besta de carga como o tens sido, porque ama a vida e desejaria vê-la liberta do sofrimento e da ignomínia. És tu que levas os homens verdadeiramente grandes a desprezarem-te, a retirarem-se com tristeza do teu convívio medíocre, a evitarem-te e, pior de tudo, a terem compaixão de ti. Se fosses psiquiatra, Zé Ninguém, um Lombroso, por exemplo, tentarias esmagá-los como a criminosos irrecuperáveis ou psicóticos. Porque os objetivos da vida dum grande homem são diversos dos teus - não consistem na acumulação. de bens, nem no casamento socialmente adequado das filhas, nem na sua carreira política, nem na obtenção de honras acadêmicas ou do Prêmio Nobel. E porque não é como tu, chamas-lhe «gênio» ou «excêntrico». Mas o grande homem apenas se reserva o direito de ser um ser humano. Chamas-lhe «a-social», porque prefere o seu gabinete de trabalho ou o seu laboratório, a sua linha de pensamento e o seu trabalho às tuas festinhas ridículas e destituídas de sentido. Chamas-lhe louco porque prefere gastar o seu dinheiro na investigação científica em vez de comprar ações ou outros bens. Na tua degenerescência, Zé Ninguém, ousas considerá-lo como «anormal» o homem simplesmente reto, pois que o comparas contigo, o protótipo da «normalidade», o «homo normalis». Ao medi-lo com a tua medida estreita não lhe encontras as dimensões da tua normalidade. Nem entendes, Zé Ninguém, que és tu que o afastas das tuas reuniõezinhas sociais, que apenas lhe são insuportáveis, quer nas tabernas quer nos salões de baile, porque te ama e deseja genuinamente auxiliar-te. O que o torna aquilo que é após várias décadas de sofrimento? Tu, na tua irresponsabilidade, na tua tacanhez, na tua incapacidade de refletir, e os teus «axiomas eternos» que não sobrevivem a dez anos de progresso social. Lembra-te.apenas de todas as coisas que tomaste por certas durante os escassos anos que decorreram entre a primeira e a segunda guerra mundiais. Quantas reconheceste como erradas, de quantas foste capaz de te retratar? De nenhumas, Zé Ninguém. Porque o homem realmente maior pensa cautelosamente, mas quando se apropria de uma idéia, pensa a longo prazo. E és tu, Zé Ninguém, que fazes do grande homem um paria quando o seu pensamento correto e duradouro enfrenta a mesquinhez e a precariedade das tuas convicções. És tu que o condenas à solidão, não à solidão que gera grandes obras, mas à solidão do temor da incompreensão e do ódio. Porque tu és «o povo», a «opinião pública» e a «consciência social». Já alguma vez pensaste na responsabilidade gigantesca que estes atributos te conferem, Zé Ninguém? Já alguma vez perguntaste a ti próprio se pensas corretamente, quer do ponto de vista da trajetória social onde estás inserido, quer da natureza, quer até do acordo com os atos humanos de uma figura como, por exemplo, a do Cristo? Não, Zé Ninguém, nunca te inquietaste com a possibilidade do que pensas estar errado, mas sim com o que iria pensar o teu vizinho ou com o preço possível da tua honestidade. Foram estas as únicas questões que puseste a ti próprio.

E depois de condenares o grande homem à solidão é ainda teu hábito esquecê-lo. Segues o teu caminho, perorando outras asneiras, cometendo outras baixezas, ferindo de novo.

 

Esqueces. Mas é da natureza do grande homem não esquecer nem vingar-se, mas tentar entender A INCONSISTÊNCIA DO TEU COMPORTAMENTO.

Sei que também te é estranho que assim seja. Podes crer, porém, que o sofrimento que infliges tantas vezes inconscientemente - e que quantas vezes logo esqueces - é para o grande homem, mesmo se incurável, motivo de reflexão em teu nome, não pela grandeza dos teus atos vis, mas exatamente pela sua pequenez. E é ele quem se interroga sobre o que te leva a maltratar o marido ou a mulher que te desapontou, a torturar os teus filhos porque desagradam a vizinhos odiosos, a desprezar e explorar alguém só porque é bondoso; a receber quando te dão e a dar quando te exigem, mas nunca a dar quando o que te é dado o é por amor; a bater em quem já está de rastos; a mentir quando te é pedida a verdade e a persegui-la bem mais do que à mentira. Zé Ninguém, tu estás sempre do lado dos opressores. Para que o estimasses e te caísse em graça, o grande homem teria de se adaptar ao teu modo de ser, Zé Ninguém, falar como tu e gabar-se das mesmas virtudes. A verdade é que se ostentasse as tuas virtudes, falasse a tua linguagem e gozasse da tua amizade não mais seria grande, autêntico ou simples. Prova é que os teus amigos que dizem exatamente o que esperas que eles digam nunca foram grandes homens. Tu não acreditas que qualquer amigo teu possa conseguir o que quer que seja de grande. No mais intimo de ti próprio, desprezas-te, mesmo quando – ou particularmente quando – gabas mais da tua dignidade; e se te desprezas, como poderias respeitar os teus amigos? Nunca poderias acreditar que quem quer fosse que se sentasse à tua mesa ou vivesse na mesma casa contigo pudesse realizar o que quer que fosse de grandioso.

Perto de ti é difícil pensar, Zé Ninguém. É apenas possível pensar acerca de ti, nunca contigo. Porque tu sufocas qualquer pensamento original. Tal como uma mãe, tu dizes às crianças que exploram o seu mundo: «Isso não é próprio para crianças».Como um professor de biologia, dizes: «Isso não é coisa para bons alunos. O quê, duvidar da teoria dos germes do ar?» Como um professor primário, dizes: «As crianças são para ser vistas, e não para se ouvirem».Como uma mulher casada, dizes: «Há! A investigação! Eu e a tua investigação! Porque é que não vais para um escritório, como toda a gente, ganhar decentemente a tua vida?» Mas sobre o que se escreve nos jornais tu acreditas, quer percebas quer não.

Garanto-te, Zé Ninguém, que perdeste o sentido do que mais vale em ti mesmo. Morre de sufocação às tuas mãos, em ti e onde quer que o encontres nos outros, nos teus filhos, na tua mulher, no teu marido, no teu pai e na tua mãe. Tu és medíocre e queres continuar a sê-lo.

Perguntas-me como sei eu tudo isto? Eu digo-te:

Conheço-te. Experimentei-te e experimentei-me contigo. Como terapeuta libertei-te da tua mesquinhez, como educador orientei-te no sentido da espontaneidade, da confiança. Sei como te defendes da espontaneidade, sei o terror que te toma quando te pedem que sejas tu próprio, autêntico e genuíno.

Eu sei que não és apenas medíocre, Zé Ninguém. Sei que também tens as tuas grandes horas na vida, momentos de «júbilo» e «exaltação», de «vôo». Mas falta-te a coragem para subir cada vez mais alto, para manter a tua própria exaltação.

Tens medo de altos vôos, medo da altura e da profundidade, Nietzsche já te disse isto muito melhor, há muitos anos já. Só que não te disse porque é que és assim. Tentou transformar-te num super-homem, um Übermensch que superasse o que tens de humano. O Übermensch (Além-Homem ou Super-Homem) tornou-se «Führer Hitler». Tu permaneceste Üntermensch. Eu gostaria apenas que fosses tu próprio. Tu próprio, em vez do jornal que lês ou da balofa opinião do vizinho. Sei que não sabes o que és e como és em profundidade. Sei que em profundidade és como o animal acossado, como o teu próprio Deus, como o poeta ou o sábio. Mas crês ser o membro da Legião ou do teu clube ou da Ku Klux Klan. E como crês sê-lo, ages em conseqüência. Também isto já foi dito por outros: Heinrich Mann, na Alemanha, há vinte e cinco anos, Upton Sinclair, Dos Passos e outros, nos Estados Unidos. Mas tu nunca ouviste falar de Mann ou de Sinclair. Só conheces os campeões de boxe e Al Capone. Se tivesses de escolher entre o ambiente de uma biblioteca e o de uma taberna, escolhias o da taberna.

Exiges que a vida te conceda a felicidade, mas a segurança é-te mais importante, ainda que custe a dignidade ou a vida.

Como nunca aprendeste a criar felicidade, a gozá-la e a protegê-la, não conheces a coragem do indivíduo reto. Queres saber o que és, Zé Ninguém? Ouve os anúncios publicitários dos teus laxantes, das tuas pastas de dentes e desodorizantes. Mas não ouves a música da propaganda. Não distingues a abissal estupidez e o mau gosto de coisas que se destinam a ficar-te no ouvido. Já alguma vez prestaste atenção às piadas que o intelectualóide larga a teu respeito nas revistas? Piadas sobre ti e sobre ele, piadas de um mundo reles e desgraçado. Escuta a tua publicidade aos laxantes e saberás o que és.

Escuta, Zé Ninguém: a miséria da existência humana é visível à luz de cada um destes pequenos horrores. Cada ato mesquinho teu faz retroceder de mil passos qualquer esperança que possa restar quanto ao teu futuro. E sentes isto tão penosamente que, para não o saberes, inventas graças de mau gosto e chamas-lhes «humor popular». Ouves a piada que te humilha e ris-te com os outros. Ris-te do Zé Ninguém, sem entender que é de ti que te ris, tal como milhões de outros Zés Ninguéns. Já alguma vez perguntaste a ti próprio por que razão dá espaço ao longo dos séculos à tal brincadeira maliciosa? Já alguma vez te chocou até que ponto «as pessoas» são ridículas nos filmes? Vou tentar dizer-te por que razão és ridículo e vou dizer-te porque te levo muito, mesmo muito, a sério:

Consegues sempre faltar à verdade naquilo que pensas, à imagem do excelente atirador que, se assim o quiser, consegue acertar sempre mesmo abaixo do centro do alvo. Há já muito que poderias ser senhor de ti próprio, se tentasses pensar corretamente. Só que tu pensas assim:

«A culpa é dos judeus». «Que é um judeu?» – pergunto eu. «São pessoas com sangue judeu» – respondes. «Qual é a diferença entre o sangue judeu e o outro?» Aqui estacas, hesitas, ficas confuso e respondes: «Quero dizer, dá raça dos judeus».»Que é raça?» – pergunto eu. «Raça? É simples, assim como existe uma raça germânica, existe a raça dos judeus».

«Que é que caracteriza a raça dos judeus?» «Bom, um judeu tem cabelos pretos, tem uma bossa no nariz e olhos muito vivos».

Os judeus são avarentos e capitalistas.» «Já alguma vez viste um francês do Sul ou um italiano ao Pé dum judeu? Sabes distinguí-los?» «Lá isso não sei assim muito bem» «Bom, então que é um judeu? As análises de sangue não mostram qualquer diferença, não se distingue de um francês ou de um italiano. E já alguma vez viste judeus alemães?» «Já, pois, parecem alemães.» «E que é um alemão?» «Um alemão pertence à raça ariana nórdica.» «Os Índios são arianos?» «São.» «E são nórdicos?» «Não.» «E loiros?’ «Não.» «Bom, então não sabes o que é um alemão e o que é um judeu.» «Mas há judeus.» «Pois há, tal como há cristãos e maometanos.» «Eu refiro-me à religião judaica.» «Roosevelt era holandês?» «Não.» «Então porque é que chamas judeu a um descendente de David, se não chamas holandês ao Roosevelt?» Com os judeus é diferente. «Em que é que é diferente?» «Não sei.»

E é assim que tu desatinas, Zé Ninguém. E sobre os teus desatinos levantas exércitos capazes de assassinar dez milhões de pessoas, porque são «judeus», sem que tu saibas sequer dizer o que é um judeu. E é por isso que és ridículo, que o melhor é evitar-te quando se tem alguma coisa de sério para fazer, é por isso que permaneces no lameiro. Quando dizes «judeu» sentes-te superior. E és forçado a dizê-lo pela tua própria miséria, pois o que matas no judeu é o que sentes que tu próprio és. Mas isto é apenas uma ínfima parcela da tua verdade, Zé Ninguém.

Quando dizes «judeu» cheio de arrogância e desprezo sentes menos a tua própria mesquinhez. Só recentemente me dei conta de que assim era. Só chamas «judeu» a quem suscita muito pouco ou demasiado o teu respeito. A tua concepção de «judeu» é perfeitamente arbitrária. Só que eu não te dou o direito a usá-la, quer tu sejas judeu ou ariano. Só eu próprio tenho o direito a determinar quem sou. Biológica e culturalmente sou um rafeiro e orgulho-me de ser o produto intelectual e físico de todas as classes, raças e nações, orgulho-me de não pertencer a uma «raça pura», como tu, de não pertencer a uma «classe pura», de não ser chauvinista como tu, um fascistinha de todas as nações, raças e classes. Constou-me que em Israel rejeitaste um técnico judeu pelo simples fato de não ser circuncidado. Não tenho mais afinidades com os judeus fascistas do que com quaisquer outros. Porque recuas apenas até Sem, e não até ao protoplasma? A vida para mim tem início nas contrações plasmáticas, e não no escritório de um rabi.

Levou milhões de anos a tua evolução de água-viva a bípede terrestre. A tua aberração biológica sob a forma de rigidez dura apenas há seis mil anos. Levará cem ou quinhentos ou talvez cinco mil anos até que redescubras em ti a natureza, a célula inicial. Eu descobri em ti a água-viva e, quando me ouviste pela primeira vez, chamaste-me gênio. Foi na Escandinávia, andavas tu à procura de um novo Lenin. Mas eu tinha coisas mais importantes a fazer e declinei a função.

Também me proclamaste novo Darwin, ou Marx, ou Pasteur, ou Freud. Disse-te já há muitos anos que também tu poderias falar e escrever como eu, se não passasses a vida a saudar os novos messias. Porque os teus gritos destroem-te a razão e paralisam a tua natureza criadora.

Não és tu que persegues a «mãe solteira» como uma criatura imoral, Zé Ninguém? Não és tu que estabeleces uma distinção severa entre as crianças «legítimas» e as crianças «ilegítimas?» Pobre criatura, que não entendes as tuas próprias palavras - ou não és tu que veneras o Cristo enquanto criança? Cristo menino, que nasceu de uma mãe que não possuía certificado de casamento? Sem fazeres idéia de que assim seja, como.veneras no Cristo criança o teu desejo de liberdade sexual! Fizeste do Cristo criança, nascido ilegitimamente, o filho de Deus, que não reconhece a ilegitimidade de crianças.

Para logo em seguida, como Paulo [N.E.], o Apóstolo, perseguir os filhos nascidos do amor e proteger sob a alçada das leis religiosas os nascidos do ódio. És realmente um desgraçado, Zé Ninguém!

Os teus automóveis e comboios atravessam as pontes que o grande Galileu inventou. Sabias, Zé Ninguém, que o grande Galileu teve três filhos sem qualquer certificado de casamento? Isso não dizes tu às crianças da escola. E não foi também por isso mesmo que o submeteste à tortura?

Sabias, Zé Ninguém, que, na «Pátria dos Povos Eslavos», o, teu grande Lenin, pai dos proletários de todo o mundo, ao tomar o Poder aboliu o casamento compulsivo? E sabias que ele próprio viveu com a mulher sem certificado de casamento? E foi então que pela mão do chefe de todos os Eslavos restabeleceste as leis referentes à obrigatoriedade do casamento, porque não sabias que havias de fazer da liberdade que te fora concedida por Lenin.

Mas o que é que tu sabes de tudo isto, tu que não fazes a mínima idéia do que seja a verdade, ou a história, ou a luta pela liberdade? Quem és tu para teres opinião própria?

Nem sequer te apercebes de que a opressão das leis que regulam a tua vida matrimonial decorre naturalmente do teu espírito pornográfico e da tua irresponsabilidade sexual.

Sentes-te infeliz e medíocre, repulsivo, impotente, sem vida, vazio. Não tens mulher e, se a tens, vais com ela para a cama só para provar que és «homem». Nem sabes o que é o amor. Tens prisão de ventre e tomas laxantes. Cheiras mal e a tua pele é pegajosa, desagradável. Não sabes envolver o teu filho nos braços, de modo que o tratas como um cachorro em quem se pode bater à vontade. A tua vida vai andando sob o signo da impotência, no que pensas, no teu trabalho. A tua mulher abandona-te porque és incapaz de lhe dar amor. Sofres de fobias, nervosismo, palpitações. O teu pensamento dispersa-se em ruminações sexuais. Falam-te de economia sexual. Algo que te entende e poderia ajudar-te. Que te permitiria viveres à noite a tua sexualidade e que te deixaria livre durante o dia para pensar e trabalhar.


[segue na Parte II
]

 

Nota do Editor: Segundo as narrativas do Novo Testamento talvez fosse mais correto chamar o temido perseguidor dos «filhos do amor», ou «protetor dos filhos do ódio» pelo nome Saulo, e não Paulo, como faz Reich. Até pouco tempo depois do assassinato de Estevão, Saulo, então proeminente líder fariseu, como seus pares, apesar de ter conhecido Jesus «em sua vida corpórea» (2 Cor. 5.16), olhava-o com desconfiança não apenas pelas críticas que fazia a determinadas ordenanças, como as regras do sábado sagrado, do jejum, da própria lei e da tradição, desconfiava também das críticas que Jesus fazia diretamente aos própios rabinos e membros da seita. Esses líderes religiosos judaicos enviaram uma delegação para observar Jesus na Galiléia. A finalidade era óbvia: acusá-lo de traição, se condenado, seria crucificado, «pendurado no madeiro», uma morte especialmente amaldiçoada pela Lei ( Deut. 21.23). Se Jesus fosse de Deus, seguramente seria salvo: Deus não o deixaria sofrer danação: então seria salvo e retirado da cruz. Talvez muitos dos discípulos de Jesus, como o próprio Judas Escariotes, podem ter compartilhado desta convicção. Saulo sustentou os insultos dos acusadores de Jesus no Calvário e os desafios dos rabinos «Seu Messias! Seu Rei de Israel! Desça da Cruz e nos creremos». Deus não interveio e o veridito não poderia ser outro: Jesus era maldito, sua reivindicação era falsa. Seus seguidores deveriam ser destruídos. O vigor da perseguição lançada sobre os discípulos de Jesus expressa a amargura da decepção de Saulo. O brutal assassinato de Estêvão, que ocorreu bem na sua frente, intensificou ainda mais a violência de sua agressão. Foi quando ocorreu a súbita e desgastante experiência da presença e da atração de Jesus no caminho de Damasco, (em suas próprias palavras, veja 1 Cor. 15.8) onde a conversão foi imediata -- daí passou a chamar-se Paulo, colocando-se ao lado dos «filho do amor» e contra os «filhos do ódio». Vide Comunalismo Cristão, pág. 54 em diante.

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