voltar ao topo H.5 O que foi a Rebelião de Kronstadt?

H.5.1 Qual a importância da rebelião de Kronstadt?

H.5.2 O que a rebelião de Kronstadt pretendia?

H.5.3 Qual era o programa de Kronstadt?

H.5.4 Até que ponto a rebelião de Kronstadt refletiu "o desespero dos camponeses"?

H.5.5 Que mentiras os bolsheviks espalharam sobre Kronstadt?

H.5.6 A revolta de Kronstadt foi um complô branco?

H.5.7 Qual foi o real comprometimento de Kronstadt com os brancos?

H.5.8 A rebelião envolveu marinheiros novos?

H.5.9 A Kronstadt de 1921 diferia políticamente da Kronstadt de 1917?

H.5.10 Por que os trabalhadores de Petrogrado não apoiaram Kronstadt?

H.5.11 Qual a ameaça que os brancos representaram durante a revolta de Kronstadt?

H.5.12 O país estava mesmo por demais exaurido para consentir a democracia soviética?

H.5.13 A "terceira revolução" era uma alternativa real para Kronstadt?

H.5.14 Como os trotskistas modernos encaram Kronstadt?

H.5.15 O que Kronstadt nos transmite sobre o bolshevismo?
 
 

H.5 O que foi a Rebelião de Kronstadt?

A rebelião de Kronstadt ocorreu nas primeiras semanas de março no ano de 1921. Kronstadt foi (e é) uma fortaleza naval em uma ilha no golfo da Finlândia. Tradicionalmente, tem servido de base à frota russa no Báltico e escudo protetor da cidade de São Petersburgo (que durante a primeira grande guerra foi renomeada como Petrogrado, depois Leningrado, e atualmente de São Petersburgo novamente) a trinta e cinco milhas dalí.

Foram os marinheiros de Kronstadt que tomaram a iniciativa nos eventos revolucionários de 1905 e 1917. Nas palavras de Trotsky, eles foram "orgulho e glória da Revolução Russa". Os habitantes de Kronstadt foram os primeiros a apoiar e a praticar o poder soviete, formando uma comuna livre em 1917 que foi relativamente independente das autoridades. No centro da fortaleza um enorme parque publico funcionava como fórum popular onde cabia mais de 30.000 pessoas.

A Guerra Civil Russa terminou no Oeste da Russia em novembro de 1920 com o rendimento do general Wrangel na Criméia. As manifestações populares na Rússia eclodiram tanto no campo como em pequenos municípios e grandes cidades. Levantes camponeses irromperam por toda a Rússia contra o confisco de grãos ordenado pelo Partido Comunista (a diretriz política de Lenin e Trotsky argumentava que foram forçados a fazer isso, na verdade essas ações envolveram uma bárbara e intensa repressão). Nas áreas urbanas, ocorreu uma onda de greves espontâneas até que finalmente em fevereiro eclodiu uma quase greve geral em Petrogrado.

Em 26 de fevereiro, em resposta a esses eventos de Petrogrado, a tripulação dos navios militares Petropavlovsk e Sevastopol convocou uma reunião de emergência e decidiu enviar uma delegação para a cidade para observar e trazer informações sobre o movimento grevista. Ao retornar, a delegação informou seus companheiros marinheiros sobre as greves (com as quais foram inteiramente simpáticos) e sobre a repressão governamental dirigida contra ela. Os presentes neste encontro no interior do Petropavlovsk aprovaram uma resolução onde apresentavam 15 exigencias que incluiam eleições livres para os sovietes, liberdade de expressão, imprensa, assembléia e organização pelos trabalhadores, camponeses, anarquistas e socialistas de esquerda (veja seção H.5.2 para mais detales). Das 15 exigências, apenas duas estavam relacionadas com aquilo que os marxistas qualificavam de "pequeno-burguesa" (os camponseses e artesãos) onde exigiam "completa liberdade de ação" para todos os camponeses e artesãos que não possuissem mão-de-obra contratada . Da mesma forma que os trabalhadores de Petrogrado, os marinheiros de Kronstadt exigiam a equalização dos salários e o fim dos destacamentos de bloqueio que restringiam o deslocamento e a possibilidade dos trabalhadores trazerem alimentos para a cidade.

Cincoenta a sessenta mil pessoas afluiram ao encontro na Praça Anchor em 1o. de março onde foi constatado como "fato consumado" todo o relato feito pela delegação do Petropavlovsk. Apenas dois oficiais bolshevikes votaram contra o que foi chamado posteriormente de resolução Petropavlovsk. Neste encontro também foi decidido enviar outra delegação até Petrogrado para explicar aos grevistas e às tropas sobre as exigências de Kronstadt e solicitar a vinda de uma delegação de trabalhadores de Petrogrado para informar de primeira mão o que estava acontecendo lá. Esta delegação de trinta membros foi aprisionada pelo governo bolshevike.

Como os termos do documento do soviete de Kronstadt não foram atendidos, o encontro decidiu chamar uma "Conferencia de Delegados" para o dia 2 de março. Nesse encontro se discutiria como seriam efetuadas as eleições. Esta conferência consistiria de dois delegados da tripulação dos navios, unidades do exército, docas, oficinas, sindicatos e instituições de sovietes. Este encontro de 303 delegados endossou a resolução Petropavlovsk e elegeu cinco pessoas para compor o "Comitê Revolucionário Provisório" (que foi ampliado para 15 membros dois dias depois em uma outra conferência de delegados). Este comitê ficou encarregado de organizar a defesa de Kronstadt, uma decisão tomada devido às ameaças dos oficiais bolshevikes e aos infundados rumores de que os bolshevikes tinham enviado forças para atacar o encontro. Os vermelhos de Kronstadt se opuseram ao governo comunista sob o slogan da revolução de 1917 "Todo Poder para os sovietes", acrescentando "e não para os partidos".

O Governo Comunista respondeu com um ultimatum no dia 2 de março. Esse documento dizia que a revolta fôra "sem dúvida preparada pela contrainteligencia na França" e que a resolução Petropavlovsk não passava de uma resolução tomada pelas "Centenas Negras-RS" (RS significando "Revolucionários Sociais", um partido com uma tradicional base camponesa e cuja ala direita havia feito uma composição com os brancos; os reacionários "Centenas Negras" eram proto-fascistas que já atuavam antes da revolução atacando judeus, militantes operários, radicais e daí por diante). Eles argumentavam que a revolta havia sido organizada pelos ex-oficiais tzaristas a mando do ex-general Kozlovsky (considerado por Trotsky como um perito militar). Esta foi a versão oficial que prevaleceu com relação à revolta.

Durante a revolta, Kronstadt começou a se auto reorganizar a partir da base. Os comitês sindicais foram re-eleitos e um Conselho de Associações Sindicais foi formado. A Conferência de Delegados encontrava-se regularmente para discutir assuntos ligados ao interesse de Kronstadt e à luta contra o governo bolshevike. Fileiras e destacamentos abandonaram o partido aos montes, expressando apoio e auxílio à revolta engrossando o coro de "todo o poder para os sovietes, não para os partidos". Cerca de 300 comunistas foram presos e tratados humanamente na prisão (para efeito de comparação, pelo menos 780 comunistas deixaram o partido).

O governo comunista atacou Kronstadt em 7 de março. A fortaleza caiu em 17 de março. Dezesseis dias depois, mesmo com muitas unidades do Exército Vermelho passando para o lado dos rebeldes, a revolta de Kronstadt acabou esmagada pelo Exército Vermelho. Apesar do caráter não violento da revolta de Kronstadt, a atitude das autoridades desde o princípio descartou qualquer seriedade nas negociações impondo obediência incondicional ao seu ultimatum. Quem não obedecesse sofreria as consequencias. Os revoltosos foram cercados e não receberam nenhum apoio externo. Em 17 de março, as forças bolshevikes finalmente ocuparam a cidade de Kronstadt após sofrerem mais de 10.000 baixas (existem inúmeros documentos confiáveis que relatam as perdas no campo rebelde, inclusive demonstrando a quantidade de fuzilados ou enviados aos campos de prisioneiros). Como uma ironia da história, no dia posterior, os bolshevikes celebraram o quinquagésimo aniversário da Comuna de Paris.

Assim foi, resumidamente, a revolta de Kronstadt. Obviamente é impossível relatar todos os mínimos detalhes, contudo recomendamos aos leitores a consulta de livros e artigos relacionados no final desta seção para um acompanhamento mais completo de tudo que aconteceu. Todavia, estes são os pontos chaves da rebelião.
Em seguida iremos nos concentrar numa análise desta revolta indicando porque ela é tão importante do ponto de vista político na avaliação daquilo que representou o bolshevismo enquanto teoria revolucionária.

Nesta seção de nosso FAQ apresentaremos e discutiremos as exigências de Kronstadt, sua orígem radical na rebelião da classe trabalhadora (veja seções H.5.3 e H.5.4). Relataremos as mentiras que os bolshevikes espalharam sobre a rebelião através do tempo (seção H.5.5) e indicaremos suas reais ligações com os brancos (seção H.5.6). Também discordamos da alegações trotskistas de que os marinheiros em 1921 eram diferentes dos de 1917 (seção H.5.8) ou de que suas perspectivas políticas haviam fundamentalmente sido alteradas (seção H.5.9). Discutiremos os argumentos de que o país estava por demais exaurido para consentir uma democracia soviética (seção H.5.12) ou que a democracia soviética resultaria na derrota da revolução (seção H.5.10). Neste processo, também mostraremos a forma como os defensores do leninismo passaram a defender seus heróis, (particularmente, veja a seção H.5.15).

Demonstraremos que Kronstadt foi um levante popular que surgiu de baixo para cima dos mesmos marinheiros, dos mesmos soldados e dos mesmos trabalhadores que fizeram a revolução de outubro de 1917. A repressão bloshevike à revolta pode ser justificada somente em termos de defesa do poder do estado bolshevike mas jamais pode ser defendida nos termos da teoria socialista. Na verdade, ela indica que o bolshevismo é um monumental engodo enquanto teoria política e que jamais poderia desaguar em uma sociedade socialista mas apenas e tão somente em um regime capitalista de estado baseado num partido ditatorial. É isto que Kronstadt mostra acima de tudo: optar entre o poder dos trabalhadores ou o poder do partido, o bolshevismo destruirá o primeiro para implementar o segundo. Nesse aspecto, Kronstadt não é um evento isolado (conforme indicaremos na seção H.5.13).

Existem muitas importantes  fontes históricas disponíveis sobre a revolta. O que existe de melhor para estudos sobre a revolta é o trabalho de Paul Avrich e Israel Getzler, Kronstadt 1921. As obras anarquistas incluem Ida Mett em seu livro The Kronstadt Uprising (o melhor trabalho político sobre o tema), Alexander Berkman escreveu The Kronstadt Rebellion (também consta uma boa introdução na obra A Tragédia Russa), Voline em The Unknown Revolution dedica todo um excelente capítulo sobre Kronstadt (onde apresenta uma grande quantidade de citações retiradas de documentos de  Kronstad) o volume dois de No Gods, No Masters de Daniel Guerin apresenta uma excelente seção sobre a  rebelião (incluindo um detalhado relato de Emma Goldman extraído de sua autobiografia Living my Life sobre os eventos extraídos dos documentos de Kronstadt). Anton Ciliga (um libertário socialista/marxista) em seu livro Kronstadt Revolt também apresenta uma boa introdução aos temas relacionados com o levante.

Do ponto de vista da análise leninista, a antologia Kronstadt contem artigos de Lenin e de Trotsky relacionados à revolta, uma espécie de ensaio suplementar refutando a versão anarquista. Este trabalho é recomendado para aqueles que querem saber qual foi a versão trotskista dos eventos por conter todos os documentos relevantes emitidos pelos líderes bolshevikes. Emma Goldman em seu trabalho Trotsky Protests Too Much é uma grande resposta aos comentários de Trotsky e de seus seguidores.



soviet. 1.conselho, assembléia. 2 soviete: conselho local na Rússia. // adj soviético. Soviet Russia Rússia soviética. Soviet Union União Soviética.



H.5.1 Qual a importancia da rebelião de Kronstadt?

A rebelião de Kronstadt é importante porque, conforme Voline observou, ela foi "a primeira tentativa popular completamente independente de auto-libertação do jugo e da opressão através da Revolução Social, uma tentativa feita direta, resoluta, e corajosamente pelos próprios trabalhadores sem guia político, líderes, nem tutores. Foi o primeiro passo em direção à terceira revolução social". [_The Unknown Revolution_, pp. 537-8]

Os marinheiros de Kronstadt em 1917 foram um dos primeiros grupos a apoiar o slogan "Todo poder aos Sovietes" e um dos primeiros grupos a colocar isso em prática. O foco da revolta de 1921 — os marinheiros dos navios Petropavlovsk e Sevastopol — representaram, em 1917, o principal suporte dos bolshevikes. Os marinheiros eram considerados, até os fatídicos dias de março de 1921, o orgulho e a glória da revolução, e reconhecidos por todos como completamente revolucionários em espírito e em ação. Eles eram leais defensores do sistema dos sovietes mas, como a revolta mostrou, se opunham à ditadura de qualquer partido.

Para todos os efeitos, Kronstadt é importante para avaliar a honestidade (ou desonestidade) dos leninistas quando se afirmavam favoráveis ao poder e à democracia dos sovietes. Embora a guerra civil efetivamente tivesse terminado, o regime não mostrava nenhum sinal no sentido de interromper a repressão contra as manifestações e protestos da classe trabalhadora. Opondo-se às reeleições nos sovietes, o regime bolshevike passou a reprimir greves em nome do "poder soviético" e "do poder político do proletariado". No campo, os bolshevikes continuaram sua futil, miserável e contraprodutiva política contra os camponeses (um governo assumindo o papel do estado submetendo a seus pés trabalhadores e camponeses).

Os eventos de Kronstadt não devem ser observados isoladamente, mas como parte de uma luta geral do povo trabalhador russo contra seu governo. Na verdade, conforme indicaremos na próxima seção, esta repressão após o fim da Guerra Civil seguiu o mesmo modelo da implementada antes dela. Os bolshevikes reprimiram a democracia soviete em Kronstadt em 1921 em favor da ditadura do partido, como vinham fazendo regularmente desde o princípio de 1918.

A revolta de Kronstadt foi um movimento popular nascido dos trabalhadores visando restaurar o poder dos sovietes. Conforme Alexander Berkman destacou, o "espírito da Conferencia [dos delegados que elegeram o Comitê Revolucionário Provisório] eram todos inteiramente sovietistas: Kronstadt exigia sovietes livres da interferência de qualquer partido político; eles desejavam sovietes não partidários que refletissem verdadeiramente as necessidades e expressassem a vontade dos trabalhadores e camponeses. A atitude dos delegados foi antagonizada pela determinação arbitrária dos comissários burocráticos, simpatizantes do Partido Comunista. Os delegados eram membros leais ao sistema soviete e procuravam encontrar, amigavel e pacíficamente, uma solução aos problemas prementes" que a revolução enfrentava. [_The Kronstadt Rebellion_]. A atitude dos bolshevikes indicou que, para eles, o poder soviete só seria útil na medida em que confiasse seu poder ao partido e em caso de conflito apenas o partido deveria sobreviver sobre o cadáver de seus opositores. Nas palavras de Berkman:

"Mas o ‘triunfo’ dos bolshevikes sobre Kronstadt trouxe consigo a derrota do próprio bolshevismo. Colocou à mostra o verdadeiro caráter da ditadura comunista. Os comunistas demonstraram por si próprios sua disposição em sacrificar o Comunismo, em troca de aproximações e compromissos com o capitalismo internacional, ao mesmo tempo que recusavam as justas exigências de seu próprio povo — exigências que ecoaram nos slogans de outubro entre os próprios bolshevikes: sovietes eleitos por voto direto e secreto, de acordo com a Constituição da R.S.F.S.R.; e liberdade de expressão e de imprensa aos partidos revolucionários". [Op. Cit.]

Uma investigação honesta e inteligente das forças revoltosas de Kronstadt coloca em cheque tanto a teoria quanto a prática bolshevike. Joga por terra o mito bolshevike do Comunismo de Estado sendo o "Governo dos Trabalhadores e Camponeses". Os eventos de Kronstadt provaram que a ditadura do Partido Comunista e a Revolução Russa são pólos opostos, contraditórios e mutuamente exclusivos. Embora procurem justificar a repressão dirigida pelos bolshevikes contra o povo trabalhador durante a guerra civil em virtude da guerra, o mesmo não pode ser dito com relação a Kronstadt. Da mesma forma, a justificação leninista para a força e ações levadas a efeito em Kronstadt teve implicações diretas nas atividades daquele momento e nas futuras revoluções. Conforme demonstraremos na seção H.5.15, a lógica desse argumento significa simplesmente que em nossos dias os leninistas desejam, dentro dessa mesma posição, destruir a democracia soviete para defender o "poder soviético" (i.e. o poder de seu partido).

Com efeito, Kronstadt foi o choque da realidade do leninismo com sua imágem e retórica. Trouxe à tona temas importantes relativos ao bolshevismo e os "argumentos" que produziam para justificar certas ações. "A experiência de Kronstadt", conforme os argumentos de Berkman, "provou mais uma vez que o governo, o Estado — seja lá qual for seu nome ou forma de atuação — é sempre inimigo mortal da liberdade e da auto-determinação popular. O estado não tem alma, nem princípios. E possui apenas um objetivo — assegurar poder e mantê-lo a qualquer custo. Esta foi a lição política de Kronstadt." [Op. Cit.]

Existe uma outra razão da importancia do estudo de Kronstadt. Desde o esmagamento da revolta, tanto grupos leninistas como trotskistas justificam continuamente os atos dos bolshevikes. Além disso, permanecem seguindo Lenin e Trotsky em suas calúnias sobre a revolta, na verdade, mentem descaradamente sobre ela. Quando o trotskista John Wright afirma que "os defensores de Kronstadt distorcem fatos históricos, exageram monstruosamente cada assunto ou questão irrelevante . . . e obscurecem . . . sobre o real programa e objetivos do motim" ele está, de fato, descrevendo suas atividades e as atividades de seus amigos trotskistas. [Op. Cit., p. 102]. Na verdade, como demonstraremos a seguir, enquanto as considerações anarquistas são confirmadas por pesquisas posteriores as asserções trotskistas vez após vez caem por terra. Na verdade, seria de muita utilidade escrever um livro para colocar ao lado da  _Escola da Falsificação de Stalin_ sobre as atividades de Trotsky e de seus seguidores em matéria de reescrever a história.

É necessário que fique bem claro nessa nossa discussão que os trotskistas se doutoraram na versão acadêmica que confirma sua versão ideológica do levante. A razão para isso é clara. Em termos simples, os defensores do bolshevismo não podem fazer outra coisa a não ser mentir sobre a revolta de Kronstadt uma vez que ela expõe claramente a real natureza da ideologia bolshevike. Em vez de apoiar o clamor de Kronstadt pela democracia soviete, os bolshevikes esmagaram a revolta, argumentando que fazendo isso estavam defendendo o "poder soviete". Seus seguidores vez após vez repetem sempre esses mesmos argumentos.

Esta expressão do duplo pensar leninista (a habilidade de conhecer dois fatos contraditórios e sustentar ambos como verdadeiros) pode ser explicado. Procuram fazer com que "poder dos trabalhadores" e "poder soviete" na realidade signifique poder do partido para que as contradições desapareçam. O poder do partido tem que ser mantido a todo custo, incluindo a destruição daqueles que desejam um verdadeiro poder soviete, um verdadeiro poder dos trabalhadores (portanto uma democracia soviete).

Por exemplo, Trotsky argumentou em 1921 que "o proletariado estava com o poder político nas mãos" enquanto que mais adiante os trotskystas passaram a argumentar que o proletariado estava muito exaurido, atomizado e dizimado. [Lenin e Trotsky, Kronstadt, p. 81]. Da mesma forma o trotskista Pierre Frank afirma que para os bolshevikes, "o dilema estava colocado nos seguintes termos: ou manter os trabalhadores sob controle, ou a contra-revolução se ergueria, tanto o primeiro quanto o segundo disfarce político, teriam ao cabo o contra-revolucionário reino do terror bem longe da democracia". [Op. Cit., p. 15] Naturalmente que aquela "democracia" sob Lenin não é mencionada nem tampouco o reino do terror que se desenvolveu sob Stalin através da repressão e da ditadura praticada em 1921.

A maioria dos leninistas argumentam que a supressão da rebelião deu-se essencialmente para defender as "conquistas da revolução". Mas quais foram exatamente estas conquistas? Não foi a democracia soviete, nem liberdade de expressão, nem tampouco liberdade de reunião e de imprensa, ou mesmo liberdade de organização sindical. Ora, o povo de Kronstadt foi reprimido exatamente por exigir tais coisas. Não, aparentemente as "conquistas" da revolução foi pura e simplesmente um governo bolshevike. É necessário não esquecer do fato de que se tratava de um partido único ditatorial, com uma forte e privilegiada máquina burocrática. Uma situação onde não havia nenhuma liberdade de expressão, imprensa, associação ou assembléia do povo trabalhador. O fato de Lenin e Trotsky estarem no poder era suficiente para seus seguidores justificarem a repressão de Kronstadt e subscrever a noção de "estado dos trabalhadores" que exclui os trabalhadores do poder.

Este duplo pensar bolshevista é claramente visto nos eventos de Kronstadt. Por exemplo, os defensores do bolshevismo argumentam que Kronstadt foi reprimida para defender o poder soviete ao mesmo tempo que argumentam que as exigencias de Kronstadt reivindicando eleições livres no soviete eram "contra-revolucionárias", "retrógradas", "pequeno-burguesas" e daí por diante. O que é que o poder soviete poderia fazer sem eleições livres nunca foi explicado. Similarmente, eles argumentavam que era necessário defender o "estado dos trabalhadores" assassinando aqueles que chamavam os trabalhadores porque tinham algo a dizer a eles, como por exemplo como é que o estado funciona. O papel dos trabalhadores em um estado de trabalhadores seria simplesmente obedecer órdens sem questioná-las (na verdade, Trotsky argumentou em 1930 que a classe trabalhadora na Rússia era a classe governante sob Stalin—"Todas as formas de propriedade que foram criadas pela Revolução de Outubro não foram subvertidas, o proletariado continua sendo a classe governante". [_The Class Nature of the Soviet State_]).

De que forma pode-se justificar a repressão bolshevike em termos de defender o poder dos trabalhadores suprimindo esse poder? Como é que o poder soviete pode ser protegido pelo governo quando os sovietes eram esmagados por esse próprio governo?

A lógica dos bolshevikes, seus apologistas e defensores a posteriori tem a mesma característica dos oficiais americanos durante a guerra do Vietnã que explicavam que para salvar o vilarejo eles tinham primeiro que destruí-lo. Para que pudessem salvar o poder soviete, Lenin e Trotsky tinham que destruir a democracia soviete.

Uma última observação. A revolta de Kronstadt foi um evento chave na revolução Russa, inegavelmente significou seu fim. Não podemos nos esquecer também que foi apenas um de uma longa série de ataques bolshevikes contra a classe trabalhadora. Conforme indicamos na seção H.4 (e no resumo contido na seção H.4.1), o estado bolshevike por si só foi uma prova incontestável de sua natureza anti-revolucionária desde outubro de 1917. Portanto, Kronstadt é importante simplesmente porque contrapôs a democracia soviete ao "poder soviete" e isso ocorreu após o fim da guerra civil. Kronstadt se constituiu na pá de cal sobre a tumba da Revolução Russa. Kronstadt deve ser lembrada e relembrada, analizada e discutida por todos os revolucionários que procuram compreender o passado de forma a não repetir os mesmos erros novamente.


H.5.2 O que a rebelião de Kronstadt pretendia?

A revolta de Kronstadt não pode ser compreendida isoladamente. Na verdade, fazer isso significa perder o fio da meada, a real razão que mostra porque Kronstadt é tão importante. Kronstadt foi o resultado final de quatro anos de revolução e guerra civil, o produto da debilidade da democracia soviete combinada com bolshevikes e guerra. A atitude dos bolshevikes e a justificação ideológica para suas ações (justificações, naturalmente, retiradas de mentiras sobre a revolta — veja a seção H.5.14) — onde meramente reproduzem de forma resumida o que ocorreu a partir do momento em que eles tomaram o poder.

Diante disso, elaboramos pequeno sumário das atividades bolshevikes antes dos eventos de Kronstadt (veja seção H.4 para mais detalhes). Complementando, apresentamos um quadro de como se desenvolveu o fenômeno da estratificação social sob Lênin e os eventos imediatos antes da revolta e que  serviram de estopim (especialmente a onda de greves em Petrogrado). Analisando tudo isso com cuidado veremos que Kronstadt não foi um evento isolado mas uma tentativa de salvar a Revolução Russa da ditadura e da burocracia comunista.

A oposição bolshevike à democracia soviete revelada pela revolta de Kronstadt teve uma longa linhagem. Iniciou alguns meses após a tomada do poder em nome dos sovietes. Após uma manifestação favorável à Assembléia Constituinte ser reprimida pelos bolshevikes em meados de janeiro de 1918, muitas fábricas foram convocadas para novas eleições no soviete. "A despeito dos esforços dos bolshevikes e dos Comitês de Fábrica por eles controlados, o movimento por novas eleições no soviete se espalhou por mais de vinte fábricas no princípio de fevereiro e resultou na eleição de cincoenta delegados: trinta e seis RSs, sete Mensheviks e sete delegados sem partido". Não obstante, o bolshevikes, "relutaram reconhecer as eleições e indicaram novos delegados pressionado um grupo de socialistas para . . . articular um fórum alternativo de trabalhadores". [Scott Smith, "The Social-Revolutionaries and the Dilemma of Civil War", _The Bolsheviks in Russian Society_, pp. 83-104, Vladimir N. Brovkin (Ed.), pp. 85-86]

Em Tula, os bolshevikes locais reportaram ao comitê central bolshevike que os "deputados bolshevikes estão sendo substituidos um a um . . . nossa situação torna-se debilitada a cada dia que passa. Fomos forçados a impedir novas eleições para o soviete e até mesmo não reconhece-las quando o resultado não nos fosse favorável". [citado por Smith, Op. Cit., p. 87]. Finalmente, os líderes locais do partido foram forçados a abolir o soviete da cidade e investir poder em um Comitê Executivo Provincial. A proibição da realização da plenária do soviete da cidade durante mais de dois meses, demonstrou que os novos delegados eleitos eram não-bolshevikes. [Ibid.]

Em Yaroslavl, o soviete reuniu-se em 19 de abril de 1918, e quando o novo soviete elegeu um presidente menshevike, "a delegação bolshevike se retirou e declarou o soviete dissolvido. Em resposta, os trabalhadores da cidade entraram em greve, os bolshevikes reagiram prendendo o comitê de greve, ameaçando os grevistas de demissão e substituindo-os por trabalhadores desempregados". Nada disso funcionou e os bolshevikes foram forçados a convocar novas eleições, nas quais foram novamente derrotados. Após "dissolveram este soviete os bolshevikes colocaram a cidade sob lei marcial". Um evento semelhante ocorreu em Riazan (novamente em abril) e, mais uma vez, os bolshevikes "prontamente dissolveram o soviete e decretaram uma ditadura sob um Comitê Militar Revolucionário". [Op. Cit., pp. 88-9].

Estes são apenas alguns poucos exemplos daquilo que acontecia na Rússia no início do ano de 1918. É importante destacar que a Guerra Civil Russa começou em maio de 1918. O efeito imediato disto foi, naturalmente, levar muitos trabalhadores dissidentes apoiar os bolshevikes durante a guerra. Por exemplo, os menshevikes "possuiam uma política consistente de oposição pacífica ao regime bolshevike, uma política conduzida por meios estritamente legítimos" e "menshevikes que se juntassem a organizações almejando derrotar o Governo Soviete" eram expulsos do Partido Menshevike". [George Leggett, The Cheka: Lenin’s Political Police, pp. 318-9 e p. 332]. Isto, contudo, não estancou a repressão bolshevike sobre eles.

De forma semelhante, os bolshevikes atacaram os anarquistas em Moscou de 11 a 12 de abril de 1918, fazendo uso de um destacamento armado da Cheka (a polícia política). O soviete de Kronstadt votou uma resolução condenando a ação.

Esse fato, incidentalmente, responde à questão retórica de Brian Bambery "por que será que a maioria dos militantes da classe trabalhadora no mundo, detentores de um poderoso coquetel de ideias revolucionárias, tendo já efetuado duas revoluções (em 1905 e em fevereiro de 1917), permite a um punhado de pessoas alçar ao poder às suas custas em outubro de 1917?" ["Leninism in the 21st Century", [_Socialist Review_, no. 248, January 2001]. Mais uma vez os trabalhadores russos perceberam que um punhado de pessoas tinha tomado o poder e eles passaram a se manifestar contra a usurpação de seu poder e de seus direitos, contra a destruição da democracia soviética pelos bolshevikes. Os bolshevikes os reprimiram. Com o início da Guerra Civil, os bolshevikes jogaram sua carta mais alta — "Nós ou os Brancos". Isto significava que para os bolshevikes o poder dos trabalhadores se restringia em escolher entre um ou outro. Na verdade, isso explica porque os bolshevikes finalmente acabaram eliminando os partidos e grupos de oposição somente após o fim da Guerra Civil, limitando-se a apenas reprimi-los enquanto ela durou. Com os brancos fora da parada, a oposição passaria a exercer sua influencia novamente.

Com a dispersão dos sovietes os bolshevikes criaram um poder sobre os sovietes na forma de um Conselho de Comissarios do Povo. Esta corporação se constituia numa elite executiva que atuava representando os sovietes. Em outras palavras, Lenin argumentou em The State and Revolution que, da mesma forma que na Comuna de Paris, os estado dos trabalhadores seria baseado na fusão da função administrativa, legislativa e executiva representado por delegações de trabalhadores.

No apogeu da guerra civil o Comitê Executivo Central do congresso de sovietes da Rússia não se reuniu sequer uma vez em uma sessão completa desde o fim de 1918 e durante todo o ano de 1919. No primeiro ano da revolução, apenas 68 dos 480 decretos do Coselho do Comissariado do Povo (o governo Comunista) foram realmente submetidos ao Comitê Sovietico Executivo Central (alguns elaborados por eles mesmos). As tendências oligarquicas aumentaram no pós-outubro, com "o poder efetivo dos sovietes locais inflexivelmente gravitando em torno dos comitês executivos". Os sovietes locais tinham "pouca influencia na formação da política nacional". Eles rápidamente foram esmagados pelo governo comunista quando não eram dispersos pelas forças comunistas ("o partido muitas vezes dispersava os congressistas que se opunham aos aspectos da política dominante"). [C. Sirianni, _ Workers’ Control and Socialist Democracy_, p. 204 and p. 203]. Na verdade, a Cosnstituição Soviética de 1918 codificou seu poder centralizado, com os sovietes locais regulamentados no sentido de "assumir todas as órdens do órgão respectivamente superior do poder soviete" (i.e. obedecer ao comando do governo central).

Economicamente, o regime bolshevike impôs mais tarde uma política denominada "Comunismo de Guerra" (com relação a isso, Victor Serge observou, "qualquer um que, como eu, considerasse aquilo como sendo puramente temporário estava possuído pela arrogancia" [_Memoirs of a Revolutionary_, p. 115]. O regime caracterizou-se por uma tendência extremamente hierárquica e ditatorial. A direção exercida pelo Partido Comunista expressava-se na natureza do regime "socialista" por eles desenhado. Trotsky, por exemplo, manifestava idéias de uma certa "militarização do trabalho" (conforme exposto em sua infame obra Comunismo e Terrorismo). Por exemplo, ele argumentou;

"O princípio verdadeiro do serviço do trabalho compulsório é inquestionável para o comunista. . . . Mas até o momento ele nunca passou de um mero princípio. Sua aplicação sempre teve um caráter acidental, parcial, episódico. Apenas agora, quando em toda parte se discute a questão do renascimento econômico em nosso país, os problemas do trabalho compulsório vem a tona diante de nós da maneira mais concreta possível. A única solução para as dificuldades econômicas que seja correta tanto do ponto de vista dos princípios como da prática é considerar toda a população do país como um reservatório necessário de força de trabalho . . . para introduzir órdens estritas de registro, mobilização, e utilização no trabalho".

"A introdução do serviço de trabalho compulsório é impensável sem a aplicação, em maior ou menor gráu, de métodos de militarização do trabalho".

"Por que falamos em militarização? Naturalmente trata-se apenas de uma analogia — mas uma analogia muito rica em conteúdo. Nenhuma organização social exceto o exército por si só justifica-se em subordinar cidadãos para si mesmo, para poder controla-los à vontade de todas as formas e gráus, como o Estado da ditadura do proletariado justifica-se a si mesmo praticando, e fazendo".

"Tanto a compulsão econômica quanto a política não passam de formas de expressão da ditadura da classe trabalhadora em dois campos interligados . . . sob o socialismo não existem aparatos por si só compulsórios, principalmente, o Estado: para ele haverá comoção inteiramente contraria a uma comuna que produz e consome. O caminho do Socialismo passa, precisamente, por um período da mais alta intensificação possível do princípio do Estado . . . Como uma lâmpada, atrás de nós, projetando uma luz brilhante, assim é o Estado, antes de desaparecer, assumindo a forma de ditadura do proletariado, i.e., a mais cruel forma de Estado, que abraça a vida dos cidadãos autoritariamente em cada aspecto. . . Nenhuma organização exceto o exército controla o homem com uma coerção mais severa tornando possível a organização do Estado da classe trabalhadora no período mais difícil da transição. É exatamente por esta razão que falamos em militarização do trabalho".

Essas considerações foram escritas como uma política a ser seguida agora quando a "guerra civil interna chegava a seu fim". Isto não foi tido como uma política temporária imposta pelos bolshevikes em função da guerra, pelo contrário, tanto quanto se pode perceber, foi uma expressão de "princípio" (será que isto tem relação com o que Marx e Engels escreveram sobre o "estabelecimento de exércitos industriais" no Manifesto Comunista? [Selected Writings, p. 53]).

No mesma obra, Trotsky justifica a eliminação do poder soviete e da democracia pelo poder do partido e pela ditadura (veja as seções H.5.14 e H.5.15). Assim, vemos a aplicação da servidão pelo estado através do bolshevismo (na verdade, Trotsky pretendia aplicar suas idéias de militarização do trabalho na construção de ferrovias).

Esta visão de rígida centralização e estruturas militares topo-base serviu de esqueleto para a construção da política bolshevike desde os primeiros meses após a revolução de outubro. As tentativas dos trabalhadores de "auto-gestão" organizados através dos comitês de fábricas foram combatidas em favor de um sistema centralizado de capitalismo de estado. Lenin nomeava administradores com poderes "ditatoriais" (veja The Bolsheviks and Workers’ Control de Maurice Brinton para mais detalhes).

No Exército Vermelho e Marinha, princípios anti-democráticos foram novamente impostos. Dois meses antes da Guerra Civil, Trotsky nomeou elementos para atuarem ao lado de conselhos eleitos de soldados e de oficiais. Nos finais de março de 1918, Trotsky reportou ao Partido Comunista que o "o princípio da eleição é politicamente inútil e tecnicamente inadequado, o que significa, na prática, sua abolição por decreto". Os soldados não tinham o que temer desse sistema piramidal de topo-base pois "o poder político está nas mãos da mesma classe trabalhadora de onde as tropas do Exército foram recrutadas" (i.e. nas mãos do partido bolshevike). Não poderia haver "nenhum antagonismo entre o governo e as massas de trabalhadores, da mesma forma que não poderia haver nenhum antagonismo entre a administração de um sindicato e a assembléia geral de seus membros, portanto, não poderia haver nenhum  espaço para temer as determinações dos membros da cúpula de comando dos órgãos do Poder Soviete". [_Work, Discipline, Order_]. Naturalmente, conforme qualquer trabalhador em luta poderia dizer para você, ele muitas vezes entra em conflito com a burocracia do sindicato.

Na Marinha, ocorreu um processo semelhante — o que provocou o descontentamento e a oposição de muitos marinheiros. Conforme Paul Avrich destacou, "Os esforços bolshevikes para liquidar os comitês navais e impor sua autoridade através de comissários nomeados provocou uma tempestade de protestos na Frota Báltica. Para os marinheiros, cuja aversão a autoridades externas era proverbial, qualquer tentativa de restaurar disciplina significava supressão da liberdade pela qual tinham lutado em 1917". [_Kronstadt 1921_, p. 66]

No campo, o confisco de grãos resultou em um levante camponês pois o alimento era tomado dos camponeses através da força. Destacamentos armados foram "instruidos a tomar dos camponeses o suficiente para suprir suas necessidades pessoais, era comum o confisco por parte de pequenos pelotões armados que se apropriavam de grãos sob a força das armas visando consumo pessoal ou estabelecendo uma reserva para a próxima colheita". Os trabalhadores nos vilarejos naturalmente faziam uso de táticas evasivas omitindo a quantidade de terras que possuiam ou mesmo praticando a resistencia aberta. [Avrich, Op. Cit., pp. 9-10]

Assim, antes do início da Guerra Civil, o povo russo passou a ser, de fato, paulatinamente eliminado de qualquer processo participativo no que diz respeito ao desenvolvimento da revolução. Os bolshevikes debilitaram (quando não aboliram) a democracia dos trabalhadores, a liberdade e os direitos onde trabalhavam, nos sovietes, nos sindicatos, no exército e na marinha. Previsivelmente, a ausência de qualquer controle real a partir da base desencadeava os efeitos corruptores oriundos do poder. Desigualdade, privilégios e abusos proliferavam por toda parte onde estava o partido e a burocracia governante.

Com o fim da Guerra Civil em novembro de 1920, muitos trabalhadores esperavam uma mudança de política. Todavia, os meses se passaram e a política continuou a mesma. Finalmente, em meados de fevereiro de 1921, desencadeou-se "uma febre de encontros espontâneos dentro das fábricas" em Moscou. Os trabalhadores passaram a ser convocados para uma imediata avaliação do arocho provocado pelo Comunismo de Guerra. Tais encontros foram "sucedidos por greves e manifestações". Os trabalhadores tomaram as ruas reivindicando "livre comércio", mais rações e "a abolição do confisco de grãos". Alguns exigiam a restauração dos direitos políticos e das liberdades civís. Foi aí que as tropas foram chamadas para restaurar a órdem. [Paul Avrich, Op. Cit., pp. 35-6]

As mais sérias ondas de greves e manifestações ocorreram em Petrogrado. A revolta de Kronstadt foi o pavio dos protestos. Como em Moscou, aquelas "manifestações nas ruas anunciavam a proliferação de encontros e manifestações em muitas fábricas e lojas em Petrogrado". Como em Moscou, oradores "exigiam o fim do confisco de grãos, a remoção dos bloqueios nas estradas, a abolição de rações privilegiadas, e permissão para a troca de possessões de caráter pessoal por alimento. Em 24 de fevereiro, um dia após um encontro no local de trabalho, os trabalhadores da fábrica Trubochny abandonaram as máquinas e sairam para fora da fábrica. Outros trabalhadores das fábricas adjacentes se juntaram a eles. Uma aglomeração de 2.000 trabalhadores foi dispersa por cadetes militares armados. No dia seguinte, os trabalhadores da Trubochny novamente tomaram as ruas e visitaram outros pontos de trabalho, conclamando-os para que também se juntassem à greve. [Avrich, Op. Cit., pp. 37-8]

O governo nomeou um Comitê de Defesa e Zinoviev composto por três pessoas que "proclamou lei marcial" em 24 de fevereiro. [Avrich, Op. Cit., p. 39]. Foi proclamado toque de recolher às 23 horas e todos os encontros e reuniões (internos e externos) foram proibidos exceto se aprovados pelo Comitê de Defesa e todos aqueles que desobedecessem às órdens "seriam punidos de acordo com a leis militares". [Ida Mett, The Kronstadt Uprising, p. 37]

Como parte desse processo, o governo bolshevike confiou ao kursanty (escritório de cadetes comunistas) a função de polícia local por terem ficado à margem das agitações e pela obediência às órdens governamentais. Centenas de kursanty foram chamados das academias militares vizinhas para patrulhar a cidade. "Petrogrado tornou-se durante a noite um campo de guerra. Em cada quarteirão os pedestres eram revistados e seus documentos checados . . . o toque de recolher [era] rígidamente controlado". Enquanto isso a Cheka de Petrogrado efetuava inúmeras prisões. [Avrich, Op. Cit., pp. 46-7]

Aos trabalhadores "foi ordenado retornar para suas fábricas, sob a ameaça de que seriam retiradas suas rações. Embora estas ameaças não provocassem nenhum impacto nos trabalhadores, alguns sindicados se dispersaram e seus líderes e grevistas que insistiam em permanecer em greve foram lançados em prisões". [Emma Goldman, No Gods, No Masters, vol. 2, p. 168]

Os bolshevikes também fizeram uso de sua máquina de propaganda. Os grevistas eram alertados para que não caíssem nas mãos dos contra-revolucionários. Fazendo uso da imprensa, os membros dos partidos populares passaram a agitar nas ruas, fábricas e oficinas. Houve uma série de concessões como a distribuição de rações extras. Em primeiro de março (após a revolta do Kronstadt haver começado) o soviete de Petrogrado anunciou a retirada de todos bloqueios e desmobilizou os soldados do Exército Vermelho para exercerem funções produtivas em Petrogrado. [Avrich, Op. Cit., pp. 48-9]

Dessa forma, utilizou-se uma combinação de força, propaganda e concessões para enfraquecer as greves (que rapidamente tendiam a se generalizar). Contudo, conforme Paul Arvich destaca, "não havia nenhuma proibição com relação ao uso de forças militares e da proliferação de prisões, sem falar da incansável propaganda implementada pelas autoridades que se tornaram indispensáveis para restaurar a órdem". Nesse aspecto, foi particularmente interessante a disciplina mostrada pelos organismos partidarios locais. "Atuando à parte de suas disputas internas, os bolshevikes de Petrogrado rapidamente cerraram fileiras e se apressaram em executar a vergonhosa tarefa de reprimir com eficiência e presteza". [Op. Cit., p. 50]

Isto indica o contexto imediato da rebelião de Kronstadt. Por seu turno o trotskista J. G. Wright escreveu sobre o papel de Kronstad, "mentiram desde o primeiro momento . . . e inseriram uma manchete sensacional: ‘Insurreição Geral em Petrogrado’" e prossegue afirmando que as pessoas "espalhavam . . . mentiras sobre uma insurreição em Petrogrado". [Lenin e Trotsky, Kronstadt, p. 109]. Sim, é normal que a eminência de uma greve geral seja acompanhada de encontros de massa e manifestações, e que sejam reprimidas pela força e por lei marcial, isto é uma ocorrência corriqueira que nada tem a ver com uma "insurreição"! Mas se tais eventos tivessem acontecido em um estado que não fosse dirigido por Lenin e Trotsky é improvável que o Sr. Wright teria alguma dificuldade em reconhecer o significado de Kronstadt (quatro anos antes, protestos semelhantes foram reprimidos pelo Czar).

Foram exatamente estes protestos de trabalhadores e sua repressão que desencadearam os eventos em Kronstadt. Na medida em que muitos ouviam as reclamações de seus parentes e amigos pelos vilarejos vizinhos e se juntavam aos prostestos contra as autoridades soviéticas, as greves de Petrogrado tornaram-se catalizadoras da revolta. Todavia, eles tinham outras razões políticas para protestar contra a postura do governo. A democracia na Marinha havia sido abolida por decreto e o soviete tinha se transformado em um penduricalho da ditadura do partido.

Previsivelmente, a tripulação dos navios de guerra Petropavlovsk e Sevestopol decidiram agir diante das "notícias de greves, locautes, prisões em massa e lei marcial" que vinham de Petrogrado. Em "função daqueles protestos eles convocaram uma reunião de emergência, repreenderam seus comissários . . . [e] elegeram uma delegação de trinta e dois marinheiros que, em 27 de fevereiro, dirigiu-se a Petrogrado. Percorrendo as fábricas. . . eles encontraram os trabalhadores que procuravam e fizeram perguntas apesar do temor dos bandos de guardas comunistas nas fábricas, dirigentes de sindicatos oficiais, homens do comitê dos partidos e membros da Cheka." [Gelzter, _Kronstadt 1917-1921_, p. 212]

A delegação retornou no outro dia e fizeram o relato do que viram na reunião geral dos marinheiros do navio. Nessa reunião foram adotadas as resoluções que serviram de base à revolta (veja a próxima seção). Começava a revolta de Kronstadt.
 


H.5.3 Qual era o programa de Kronstadt?

É raro em nossos dias ver um trotskysta descrever integralmente as reais reivindicações de Kronstadt. John Rees, por exemplo, não proporciona nem mesmo um resumo dos 15 pontos do programa. Ele apenas afirma que "os marinheiros expressaram o desespero dos camponeses com o regime Comunista de Guerra" ao mesmo tempo em que apresenta a desculpa esfarrapada de que "nenhuma outra insurreição camponesa reproduziu as reivindicações de Kronstadt". ["In Defence of October", pp. 3-82, International Socialism, no. 52, p. 63]. Similarmente, elas constam apenas no "Prefácio Editorial" na obra trotskysta Kronstadt que apresenta apenas um resumo das exigências. Eis o resumo:

"A resolução reivindicava eleições livres nos sovietes com a participação de anarquistas e revolucionários sociais de esquerda, legalização dos partidos socialistas e anarquistas, abolição dos Departamentos Políticos [nas frotas] e dos Destacamentos com Propósitos Especiais, remoção do zagraditelnye ottyady [tropas armadas utilizadas para impedir comércio sem autorização], restauração do livre comércio, e liberdade aos presos políticos". [Lenin e Trotsky, Kronstadt, pp. 5-6]

No "Glossário" declaram que "exigiam mudanças econômicas e políticas, muitas das quais foram logo atendidas com a adoção do NPE." [Op. Cit., p. 148] Isso, ironicamente, contradiz Trotsky quando ele afirma ser "ilusão" pensar "que bastaria informar aos marinheiros sobre o decreto do NPE para pacificá-los". Além disso, os "insurgentes não tinham um programa consciente, e nem poderiam te-lo por causa de sua real natureza pequeno burguesa. Eles mesmos não tinham clareza de que seus pais e irmãos queriam acima de tudo comercializar livremente". [Op. Cit., p. 91-2]

Assim, temos um levante que foi camponês em sua natureza, mas cujas exigências não possuiam nada de comum com outras revoltas camponesas. Que aparentemente exigia liberdade de comércio mas não a reivindicava. Era semelhante ao NPE, mas o decreto do NPE não satisfazia. Produziu uma plataforma de exigências políticas e econômicas mas, aparentemente, não tinha um "programa consciente". As contradições são abundantes. Essas contradições se tornam ainda mais evidentes quando observamos a relação das 15 exigências (coisa que os trotskystas nunca revelam).

A lista completa dessas reivindicações são as seguintes:

"1. Novas e imediatas eleições para os Sovietes. Os atuais Sovietes não mais expressam a vontade dos trabalhadores e camponeses. As novas eleições devem ser efetuadas pelo voto secreto, e precedidas por propaganda eleitoral livre.

2. Liberdade de expressão e de imprensa para trabalhadores e camponeses, para anarquistas e partidos socialistas de esquerda.

3. Direito de assembléia, liberdade sindical e liberdade de organização camponesa.

4. Organização, para o próximo 10 de março de 1921, da Conferência dos trabalhadores não-partidários, soldados e marinheiros de Petrogrado, Kronstadt e Distrito de Petrogrado.

5. Libertação de todos os prisioneiros políticos dos partidos socialistas, e de todos os trabalhadores e camponeses, soldados e marinheiros pertencentes à classe trabalhadora e organizações camponesas.

6. Eleição de uma comissão para observar os dossiês de todos aqueles que estão detidos em prisões e campos de concentração.

7. Abolição de todas as seções políticas das forças armadas. Nenhum partido político poderá ter privilégios para a propagação de suas idéias, ou receber subsídios estatais para esse fim. Essas seções políticas serão substituídas por vários grupos culturais, subsidiados com recursos do estado.

8. Imediata abolição dos destacamentos de milícia postados na cidade e no campo.

9. Equalização das rações para todos os trabalhadores, exceto aqueles engajados em trabalho perigoso e insalubre.

10. Abolição dos destacamentos de combate do Partido em todos os grupos militares. Abolição da guarda do Partido nas fábricas e empresas. Se a guarda for necessária, ela será formada, levando em conta o ponto de vista dos trabalhadores.

11. Garantia de liberdade de ação aos camponeses em suas próprias terras, e direito ao seu próprio rebanho, desde que eles mesmos se encarreguem disso e não empreguem trabalho assalariado.

12. Exigimos que todas as unidades militares e associações grupos treinados de oficiais acatem essa resolução.

13. Reivindicamos que a Imprensa divulgue apropriadamente esta resolução.

14. Reivindicamos a instituição de grupos móveis de supervisão de trabalhadores.

15. Exigimos que a produção artesanal seja autorizada desde que não utilize trabalho assalariado". [citado por Ida Mett, _The Kronstadt Revolt_, pp. 37-8]

Este foi o programa descrito pelo governo Soviete como sendo uma "resolução dos Centenas Negras RS"! Este foi o programa que Trotsky sustentou como impregnado por "um punhado de camponeses e soldados reacionários". [Lenin e Trotsky, Kronstadt, p. 65 e p. 98]. Conforme pode ser visto, não existe nada disso. Na verdade, esta resolução está integralmente dentro do espírito dos slogans políticos dos bolshevikes antes deles subirem ao poder em nome dos sovietes. Além do mais, ela reflete os ideais delineados em 1917 e formalizados na Constituição do Estado Soviete em 1918. Nas palavras de Paul Avrich, "Com efeito, a resolução petropavlovsk foi um apelo ao governo Soviete para que cumprisse sua própria constituição, uma clara manifestação daqueles justos direitos e liberdade que o próprio Lenin professou em 1917. Em espírito, ela foi uma ressonância de outubro, evocando o velho lema leninista de 'Todo poder aos sovietes'". [Op. Cit., pp. 75-6]

Um triste exemplo de "reacionarismo" político, a menos que os slogans da constituição da URSS em 1918 também fossem "reacionários". A questão agora vem à tona, tanto quanto as implicações contidas naquelas exigências. Na visão dos trotskystas, foram os interesses dos camponeses que as motivaram. Para os anarquistas elas expressam os interesses de todo povo trabalhador (proletariado, campones e artesão) contra aqueles que pretendiam explorar seu trabalho e governá-los (sejam eles capitalistas privados, capitalistas estatais ou estado burocrático). Discutiremos este assunto na próxima seção.


H.5.4 Até que ponto a rebelião de Kronstadt refletiu "o desespero dos camponeses"?

Este é um argumento comum entre os trotskystas. Embora nunca tenham atendido as reivindicações de Kronstadt, sempre declaram que (usando as palavras de John Rees) aqueles marinheiros "representavam o desespero dos camponeses com o regime Comunista de Guerra". ["In Defence of October", International Socialism no. 52, p. 63]

Para Trotsky, as idéias da rebelião "foram profundamente reacionárias" e "refletiam a hostilidade do camponês obtuso para com o trabalhador, a auto-valorização do soldado e marinheiro em relação aos 'civís' em Petrogrado, a aversão do pequeno burguês à disciplina revolucionária". A revolta "representou as tendências dos camponeses proprietários de terras, o pequeno especulador, o kulak". [Lenin e Trotsky, Kronstadt, p. 80 e p. 81]

Até que ponto isso é verdade? Basta uma análise ligeira dos eventos ligados à revolta e à resolução Petropavlovsk (veja a última seção) para desmentir esta afirmação de Trotsky. Primeiramente, de acordo com a definição de "kulak" fornecida pelos próprios trotskystas, descobrimos que Kulak se refere ao "camponês abastado dono de terra e que contrata camponseses pobres para trabalhar para ele". [Op. Cit., p. 146]. Ora, o ponto 11 das reivindicações de Kronstadt explicita claramente sua oposição ao trabalho rural assalariado. Como poderia Kronstadt representar o "kulak" proclamando a abolição do trabalho contratado na terra? Claramente, a revolta não representava "o pequeno especulador, o kulak". Ela representava o camponês dono da terra? Retornaremos a esse assunto mais abaixo. Em segundo lugar, os revoltosos do Kronstadt enviaram delegados para investigar a condição dos trabalhadores em greve em Petrogrado. Suas ações foram inspiradas pela solidariedade para com aqueles trabalhadores e civis. Isto mostrava claramente que a afirmação de Trotsky de que ela "refletia a hostilidade do camponês obtuso para com o trabalhador, a auto-valorização do soldado e marinheiro em relação aos 'civís' em Petrogrado" é integralmente um total nonsense.

Se essa afirmação de Trosky é "profundamente reacionária", as idéias que motivaram a revolta certamente não o foram. Elas foram a consequencia da solidariedade com os trabalhadores em greve e uma chamada à democracia soviete, à liberdade de expressão, de assembléia e de organização dos trabalhadores e camponeses. Elas expressavam as necessidades da maioria, se não todos, dos partidos marxistas (incluindo o bolshevike em 1917) antes de tomarem o poder. Eles simplesmente repetiram as aspirações e os fatos do período revolucionário de 1917 e a Constituição Soviete. Conforme Anton Ciliga argumentou, esses desejos estavam "impregnados pelo espírito de outubro; e nenhuma calúnia do mundo pode colocar em dúvida a íntima conexão existente entre esta resolução e os sentimentos que guiaram as expropriações de 1917". ["The Kronstadt Revolt", The Raven, no, 8, pp. 330-7, p. 333]. Considerar as idéias da revolta de Kronstadt reacionárias, é o mesmo que considerar o slogan "todo poder aos sovietes" reacionário.

Até que ponto aquelas aspirações representavam os interesses dos camponeses? Para responder isso precisamos verificar se elas representavam os interesses dos trabalhadores industriais ou não. Se as exigências estavam, de fato, em harmonia com as aspirações dos trabalhadores em greve e outros setores do proletariado então podemos facilmente descartar essa afirmação. Além do mais, se as reivindicações da rebelião de Kronstadt refletiram as aspirações dos proletários então é impossível dizer que elas refletiam simplesmente as necessidades dos camponeses (naturalmente, os trotskystas argumentarão que aqueles proletários eram também "obtusos" mas, com efeito, o que eles queriam dizer mesmo é que qualquer trabalhador que não obedecesse cegamente às ordens bolshevikes não passava de "obtuso"!).

Basta uma passada de olhos para perceber que aquelas exigências já vinham ecoando desde Moscou e Petrogrado nas greves que precederam a revolta de Kronstadt. Por exemplo, Paul Avrich destaca que as exigências apresentadas nas greves de fevereiro incluiam "remoção dos bloqueios, permissão para efetuar colheitas no campo e para comercializar livremente nos vilarejos, [e] eliminação das rações privilegiadas para categorias especiais de homens trabalhadores". Os trabalhadores também "pediam que a guarda especial armada Bolshevique, restringisse suas atividades à função meramente policial, saindo fora das fábricas" e "apelando pela restauração dos direitos civis e políticos". Um certo manifesto que surgiu (anônimo mas com marcas de orígem menshevike) argumentava, "os trabalhadores e camponeses necessitam de liberdade. Eles não querem decretos dos bolshevikes. Querem controlar seus próprios destinos". Coisas assim levaram os grevistas a exigir libertação de todos os presos socialistas e trabalhadores apartidários, abolição da lei marcial, liberdade de expressão, de imprensa, de assembléia para todos os trabalhadores, eleições livres dos comitês de fábricas, sindicatos, sovietes. [Op. Cit., pp. 42-3]

Nas greves de 1921, de acordo com Lashevich (um comissário bolshevike) as "exigências básicas são sempre as mesmas: liberdade para comercializar, liberdade para trabalhar, liberdade de ir e vir, e assim por diante". Duas outras exigências chaves nas greves datam de antes de 1920. Elas pediam "pelo livre comércio e pelo fim dos privilégios". Em março de 1919, "Os operários da fábrica de carroçarias de veículos motorizados e vagões de trem de Rechkin exigiam rações iguais para todos os trabalhadores", uma das "exigências mais típicas dos trabalhadores em greve naquele tempo era a liberdade de providenciar seu próprio alimento". [Mary McAuley, _Bread and Justice_, p. 299 e p. 302]

Conforme pode ser visto, a maioria dessas exigências estão relacionadas diretamente com os pontos 1, 2, 3, 5, 8, 9, 10, 11 e 15 das reivindicações de Kronstadt. Conforme Paul Avrich argumenta, as exigências de Kronstadt "ecoam não apenas o descontentamento da Frota Báltica mas também o descontentamento das massas russas nas vilas e cidades através do país. Da mesma forma que o povo comum, os marinheiros estavam preocupados com a situação dos seus parentes camponeses e trabalhadores. Na verdade, daqueles 15 pontos da resolução, apenas um — a abolição dos departamentos políticos na frota  — tinha uma aplicação específica à sua própria condição. As demais . . . eram reclamações visando a política de Guerra Comunista, a justificação de que, aos olhos dos marinheiros e da população como um todo, [todas aquelas restrições à liberdade] tinham que desaparecer imediatamente". Avrich argumenta que muitos dos marinheiros que retornando para casa e vendo as más condições dos vilarejos pelos seus próprios olhos resolveram tomar a iniciativa formalizando uma resolução (particularmente no ponto 11, o único que menciona específicamente as exigências dos camponeses) mas "nessa mesma direção, a viágem de inspeção dos marinheiros nas fábricas de Petrogrado resultou na inclusão de suas principais exigências no programa — a abolição dos bloqueios nas estradas, o fim das rações privilegiadas, e dos esquadrões armados dentro das fábricas". [Op. Cit., pp. 74-5]

Ida Mett observa que a rebelião de Kronstadt não clamava simplesmente por "livre comércio" da forma como os trotskystas argumentam:

"O levante de Kronstadt em 14 de março foi marcado pelo seu principal objetivo. Os rebeldes proclamaram que Kronstadt não estava pedindo simplesmente por liberdade de comércio mas pelo genuíno poder dos sovietes. Os grevistas de Petrogrado exigiam a reabertura dos mercados e a abolição dos bloqueios nas estradas implementados pelas milícias armadas. Suas exigências deixaram claro que a liberdade de comércio por si só não resolveria seus problemas". [Op. Cit., p. 77]

Assim verificamos que os trabalhadores de Petrogrado (e de outros lugares) exigiam "livre comércio" (procurando, presumivelmente, expressar seus interesses econômicos tanto quanto os de seus pais e irmãos) ao passo que os marinheiros de Kronstadt reivindicavam acima de tudo o poder soviete! Seu programa exigia "Garantia de liberdade de ação aos camponeses em suas próprias terras, e direito ao seu próprio rebanho, desde que eles mesmos se encarreguem disso e não empreguem trabalho assalariado". Este foi o ponto 11 das 15 reivindicações, que mostrava o gráu de importancia diante de seus olhos. Esta reivindicação se baseava no comércio efetuado entre a cidade e os povoados, mas tratava-se de comércio entre trabalhadores e não entre trabalhadores e kulak.

Mencionando "livre comércio" em sentido abstrato (como os trabalhadores fizeram) o povo de Kronstadt (refletindo as necessidades tanto dos trabalhadores quanto dos camponeses) se referia à livre troca de produtos entre trabalhadores, não entre trabalhadores e capitalistas rurais (i.e. camponeses que contratavam escravos assalariados). Isto indica seu alto gráu de consciência política, a consciência do fato de que trabalho assalariado é a essência do capitalismo. Conforme disse Ante Ciliga:

"Muitas pessoas acreditaram que foi Kronstadt que forçou a introdução da Nova Política Econômica (NPE) — um profundo erro. A resolução de Kronstadt pronunciou-se em favor da defesa dos trabalhadores, não apenas contra o capitalismo burocrático do Estado, mas também contra a restauração do capitalismo privado. Esta restauração foi exigida — com a oposição de Kronstadt — pelos sociais democratas, que combinavam esta aspiração com um regime político democrático. Tanto Lenin quanto Trotsky em grande parte realizaram isso (mas sem a política democrática) na forma da NPE. A resolução de Kronstadt [por sua vez] declarou-se inteiramente oposta ao emprego de trabalho assalariado na agricultura e na pequena indústria. Esta resolução, e os movimentos subjacentes, procuravam estabelecer uma aliança revolucionária entre os trabalhadores proletários e os camponeses, os setores mais pobres entre os trabalhadores do país, de modo que a revolução pudesse se desenvolver em direção ao socialismo. O NPE, por outro lado, representava a união dos burocratas com os mandatários dos povoados contra o proletariado; o NPE representou a aliança do capitalismo de Estado com o capitalismo privado contra o socialismo. O NPE em muito se opõe às exigências de Kronstadt da mesma forma que, por exemplo, o programa socialista de vanguarda dos trabalhadores europeus pela abolição do sistema de Versalhes se opunha à anulação do Tratado de Versalhes desenvolvido por Hitler". [Op. Cit., pp. 334-5]

Com relação ao ponto 11, Ida Mett destacou, "ele reflete as exigências dos camponeses com os quais os marinheiros de Kronstadt tinham estreitas ligações — da mesma forma que tinham, e isso é um fato, com todo o proletariado russo . . . Em sua grande maioria, os trabalhadores russos tiveram uma orígem camponesa. E isso precisa ser levado em consideração. Os marinheiros do Báltico no ano de 1921 estavam, sem sombra de dúvida, estreitamente ligados com os camponeses. Eles eram, nada mais nada menos, os mesmos marinheiros de1917". Ignorar os camponeses em um país onde a vasta maioria veio do campo é uma atitude insana (como os bolshevikes provaram). Mett destaca isto quando argumenta que "[o bolshevismo] foi um regime baseado exclusivamente na mentira e no terror e que nunca levou em conta as aspirações dos trabalhadores e dos camponeses". [Op. Cit., p. 40]

Uma vez que a classe trabalhadora industrial russa estava também exigindo liberdade de comércio (e sem as cláusuras políticas, anti-capitalistas acrescentados por Kronstadt) sôa desonesto afirmar que os marinheiros expressavam puramente os interesse dos camponeses. Talvez isso explique porque os 11 pontos acabaram resumidos em "restauração do livre comércio" pelos trotskystas no "Prefácio Editorial" de Lenin e Trotsky. [Kronstadt, p. 6]. John Rees não menciona sequer uma das reivindicações (o que é surpreendente em uma obra que, em parte, tenta analizar a rebelião).

A natureza dessa resolução passou pelo crivo da classe trabalhadora para que pudesse concordar com ela. Passou pelos marinheiros nos navios de guerra,  pelos encontros de massa,  pelo encontro de delegados de trabalhadores, soldados e marinheiros. Em outras palavras, pelos trabalhadores e peloscamponeses.

J.G. Wright, acompanhando seu guru Trotsky (utilizando-o como única referência para seus "fatos", como um cego guiado por outro), mencionou "o fato incontestável" dos "marinheiros engrossando as forças insurgentes" enquanto que "a guarnição e a população civil permaneciam passivos". [Op. Cit., p. 123]. Dessa forma estaria caracterizada, aparentemente, a natureza camponesa da revolta. Vamos pois contestar esse "fato incontestavel" (i.e. as afirmativas de Trotsky).

O primeiro fato que é necessário mencionar é que afluiram ao encontro de 1o. de março "entre cincoenta e sessenta mil marinheiros, soldados e civis". [Getzler, Op. Cit., p. 215]. Isto representava mais de 30% da população total de Kronstadt. O que dificilmente indica uma atitude "passiva" por parte dos civis e soldados.

O segundo fato
é que a conferência de delegados teve uma "participação em cerca de duas ou tres centenas de marinheiros, soldados, e trabalhadores". Esta composição permaneceu existindo durante toda a revolta da mesma maneira que seu equivalente soviete de 1917, inclusive com delegados sovietes de Kronstadt representando "unidades militares e fabris". Na verdade, tudo aquilo representava, com efeito, um "protótipo dos 'sovietes livres' pelos quais os insurgentes se levantaram em revolta". Além disso, um novo Conselho Sindical acabara de ser formado, livre da dominação comunista. [Avrich, Op. Cit., p. 159, p. 157 e p. 157]. Será que Trotsky esperava que acreditassemos que os soldados e civis que elegeram estes delegados fossem "passivos"? O simples ato de eleger tais delegados envolveu discussão, tomada de decisão, além de uma ativa participação. Como é possível qualificar soldados e civis revoltosos de "apáticos e apolíticos"?

Isto foi confirmado posteriormente pelos historiadores. Baseado em tais fatos, Paul Avrich destaca que a população da cidade "ofereceu suporte ativo" e que as tropas do Exército Vermelho "logo se posicionou em linha". [Op. Cit., p. 159]. Getzler por sua vez, destaca que as eleições foram defendidas também pelo Conselho de Sindicatos em 7 e 8 de março e que "o comitê do conselho era formado por representantes de todos os sindicatos". Ele confirmou que a Conferência de Delegados "havia sido eleita pelos grupos políticos de Kronstadt para que pudesse funcionar em unidades armadas, fábricas, lojas e instituições sovietes". Além disso, destaca que os revolucionarios troikas (equivalente às comissões do Comitê Executivo do Soviete em 1917) foram também "eleitos pela base das organizações". O mesmo aconteceu com, "o secretariado dos sindicatos e o recém fundado Conselho de Sindicatos, ambos eleitos pelo conjunto dos membros dos sindicatos". [Op. Cit., pp. 238-9 e p. 240]. É muita atividade para ser implementada por pessoas "passivas".

Em outras palavras, a resolução Petropavlovsk não apenas refletia as exigências do proletariado de Petrogrado, como também ganhou apoio dos proletários de Kronstadt, da frota, do exército e dos trabalhadores civis. Aquele que, mesmo diante de todas essas evidências, ainda insiste na afirmação de que a resolução de Kronstadt refletiu puramente os interesses dos camponeses, assemelha-se a uma avestruz que enterra a cabeça no chão na recusa de enchergar a realidade.

Conforme vimos, o povo de Kronstadt (assim como os trabalhadores de Petrogrado) efetuaram exigências políticas e econômicas em 1921 da mesma maneira como fizeram quatro anos antes quando enfrentaram o Czar. Fato que, novamente, refuta a lógica dos defensores do bolshevismo. Por exemplo, Wright supera a si mesmo quando argumenta que:

"A suposição de que soldados e marinheiros poderiam aventurar-se em uma insurreição sob o abstrato slogan de "sovietes livres" é por si só absurdo. E é duplamente absurdo diante dos fato [!] de que o restante da guarnição de Kronstadt consistia de pessoas passivas e obtusas que não poderiam ser utilizadas em uma guerra civil. Tais pessoas só participariam de uma revolução se movidos por profundas necessidades e interesses econômicos. Eles representavam os interesses e necessidades dos pais e irmãos daqueles marinheiros e soldados, ou seja, de camponeses e comerciantes de produtos alimenticios e de matéria prima. Em outras palavras aquela multidão era a expressão da pequena burguesia reagindo contra as dificuldades e privações impostas pela revolução proletária. Ninguém pode negar esse traço característicos desses dois setores". [Op. Cit., pp. 111-2]

Naturalmente, dentro dessa perspectiva, nenhum trabalhador ou camponês participaria de um sindicato conscientemente pelos seus próprios esforços, conforme Lenin refletidamente argumentou em What is to be Done? Nem a experiência das duas revoluções poderia exercer impacto em ninguém. Estariam todos indiferentes à extensiva política de agitação e de propaganda de anos de luta? Seriam os marinheiros tão estúpidos a ponto de não ter nenhuma "profunda necessidade ou interesse econômico" próprios, adotando os interesses de seus pais e irmãos!? Na visão de Trotsky, eles ("não podiam compreender por si próprios que seus pais e irmãos queriam acima de tudo  liberdade de comércio". [Op. Cit., p. 92]). Era este o conceito dos bolshevikes sobre os marinheiros que formavam a tripulação de alguns dos navios de guerra mais avançados do mundo?

Essas lamentáveis  asserções históricas de Wright revelam em cada palavra um gritante equívoco. Ora, o povo trabalhador constantemente apresenta exigências políticas que estão muito à frente das apresentadas pelos revolucionários "profissionais" (como aquele alemão que com a Comuna de Paris na mente, pouco ligava para aquela Russia com seus sovietes). A verdade é que os marinheiros de Kronstadt não apenas "se aventuraram em uma insurreição sob o abstrato slogam por 'sovietes livres'" como realmente criaram um (a conferência de delegados), coisa que Wright não menciona. Acima de tudo, como provaremos na seção H.5.8, os marinheiros de 1921 foram virtualmente idênticos àqueles de 1917. Aqueles marinheiros não poderiam ser substituídos com tanta rapidez e facilidade devido à tecnologia requerida para operar as defesas e os navios de guerra de Kronstadt.

Considerando "a influência dos marinheiros de orígem camponesa nas tropas do Exército Vermelho contra o governo" é possível que os trotskystas argumentem que isso se dava devido aos "soldados rasos do Exército Vermelho . . . relutantes e desconfiados, que resistiam lutar contra o Kronstadt Vermelho, embora apontassem suas armas contra eles durante a batalha", isso também prova a natureza camponesa da revolta? [Sam Farber, Op. Cit., p. 192; Israel Getzler, _Kronstadt 1917-1921_, p. 243]. A fragilidade dos argumentos apresentados pelos trotskystas com relação a Kronstadt é tal que não resistem a qualquer análise séria!

Por exemplo, é evidente que os trotskistas sabiam da natureza não-camponesa das reivindicações de Kronstadt (conforme indicamos na última seção). Foi isto que John Rees pateticamente reconheceu quando afirmou que "nenhuma outra insurreição camponesa reproduziu as exigências de Kronstadt". [Op. Cit., p. 63] Conforme indicamos acima, tanto greves, resoluções como também as atividades proletárias, todas elas produziram exigências similares ou idênticas às exigências do Kronstadt. Tais fatos, por si só, revelam a verdade (ou mentira) das asserções trotskistas nesse assunto. Vasculham greves no passado, mas falham não reconhecendo que as exigências surgiram após a delegação de marinheiros retornar de Petrogrado. Em vez de "motivação ligada aos camponeses" e de "insatisfação com as classes trabalhadoras urbanas" os fatos revelavam exatamente o oposto (conforme pode ser visto quando as reivindicações vieram à tona). [Op. Cit., p. 61]. O motivo da resolução teve suas orígens nas greves em Petrogrado, incluindo naturalmente também a insatisfação dos camponeses (exposta no ponto 11). Para o povo de Kronstadt, a revolta dizia respeito a todos os trabalhadores e a resolução refletia tanto as necessidades e as exigências dos trabalhadores quanto dos camponeses.

Agora, afirmar que Kronstadt refletia únicamente as condições e os interesses dos camponeses revela-se um monumental nonsense. Aliás, não foram as exigências econômicas que alarmaram as autoridades bolshevikes. Zinovioev estava para remover os destacamentos de bloqueio das estradas (ponto 8) enquanto que o governo desenhava aquilo que mais tarde tornou-se conhecido como Nova Política Econômica (NPE) que, diga-se de passágem, atendia parcialmente o ponto 11 (a NPE, diferentemente do que desejava o povo de Kronstadt, além de não abolir o trabalho assalariado, ironicamente, atendia aos interesses dos Kulaks!). O problema estava nas exigências políticas. Elas representavam um claro desafio ao poder bolshevike pela proclamação do "poder soviete".



kulak. fazendeiro russo, próspero do séc. XIX



H.5.5 Que mentiras os bolsheviks espalharam sobre Kronstadt?

Desde o começo os bolshevikes mentiram sobre o levante. Na verdade, Kronstadt proporciona um clássico exemplo de como Lenin e Trotsky utilizavam a difamação e calúnia para destruir seus oponentes. Ambos procuraram pintar a revolta como sendo organizada e conduzida pelos brancos. Em cada um dos estágios da rebelião, eles faziam questão de afirmar que ela fora organizada e dirigida por elementos da guarda branca. Conforme Paul Avrich escreveu, "fizeram de tudo para que os rebeldes fossem desacreditados" quando o "o principal objetivo da propaganda bolshevike era mostrar que o motim não foi uma explosão espontânea das massas em revolta mas uma nova conspiração contra-revolucionária, seguindo o modêlo estabelecido durante a Guerra Civil. De acordo com a imprensa Soviete (governo), os marinheiros, influenciados pelos menshevikes e pelos RSs, tinham desavergonhadamente se vendido aos 'guardas brancos' subordinando-se um general do Tzar chamado Kozlovksy . . . Tomando parte em uma cuidadosa conspiração de desmantelamento [da Revolução] desenvolvida em Paris por imigrantes russos em conexão com a contra-inteligência francesa". [Op. Cit., p. 88 e p. 95]

Lenin, por exemplo, argumentou no Décimo Congresso do Partido Comunista em 8 de março que "Generais da Guarda Branca tiveram uma participação bastante ativa alí. Existem muitas provas disso" e que ela foi "obra de Revolucionários Sociais [RSs direitistas] e emigrantes da Guarda Branca". [Lenin e Trotsky, Kronstadt, p. 44]

O primeiro comunicado do governo sobre os eventos do Kronstadt trazia o título de "A Revolta do Ex-General Kozlovsky  e o Navio de Guerra Petropavlovsk" declarando, em parte, que a revolta foi "determinada, e  indubitavelmente preparada pela contra-inteligência francesa". A descrição continua, afirmando que pela manhã do dia 2 de março "o grupo dirigido pelo ex-general Kozlovsky . . . entrou em ação . . . [ele] juntamente com tres de seus oficiais . . . assumindo a direção dos insurgentes. Sob sua comando . . . uma quantidade de . . . indivíduos responsáveis, foram presos. . . Na retaguarda dos RSs havia um general tzarista". [Op. Cit., pp. 65-6]

Victor Serge, um anarquista francês que se tornou bolshevike, lembrou que ele foi a primeira pessoa a receber a notícia de que "Kronstadt estava nas mãos dos brancos" e que "pequenos cartazes pregados nos muros nas ruas proclamavam que o contra-revolucionário general Kozlovsky submetera Kronstadt através de conspiração e traição". Com o passar dos dias, a "verdade pouco a pouco começou a aparecer, diluindo a cortina de fumaça vinculada pela imprensa, um amontoado de mentiras". (na verdade, ele afirmou que a imprensa bolshevike "mentia sistematicamente"). Ele descobriu que a versão oficial bolshevique era "uma mentira atroz" e que, na verdade, "tratava-se de um motim de marinheiros, uma revolta naval dirigida pelo soviete". Contudo, o "pior de tudo foi a paralização provocada pela fraude oficial. Isso nunca havia acontecido antes, o Partido mentindo assim para nós. ‘Isto é necessário para o benefício do público' alguém disse . . . a greve [em Petrogrado] agora é praticamente geral" (importante destacar que Serge, nas páginas anteriores, referindo-se a Nestor Makhno, menciona "a extrema calúnia vinculada pela imprensa comunista" sobre ele, "insistindo em acusá-lo de assinar pactos com os brancos num momento em que ele estava engajado em uma luta de vida ou morte contra eles", sugerindo que Kronstadt foi desgraçadamente a primeira vez que o Partido mentiu para ele). [_Memoirs of a Revolutionary_, pp. 124-6 e p. 122]

Da mesma forma, Isaac Deutscher, o biógrafo de Trotsky, disse que os bolshevikes "acusaram os homens amotinados de Kronstadt de contra-revolucionários conduzidos por um general branco. Uma denúncia que aparentava ser infundada". [_The Prophet Armed_, p. 511]

A afirmação de que a rebelião de Kronstadt era obra de brancos e conduzida por um general tzarista branco foi uma mentira — uma mentira deliberada e conscientemente espalhada. Ela foi forjada visando enfraquecer o apoio à rebelião em Petrogrado e no Exército Vermelho, e para evitar que se espalhasse. O próprio Lenin admitiu em seu discurso em 15 de março na Décima Conferência do Partido que em Kronstadt (contrariando o que dissera em 8 de março) "eles não necessitavam dos guardas brancos, nem de nosso poder tampouco". [citado por Avrich, Op. Cit., p. 129]

Se você concordar com o marxista italiano Antonio Gramsci quando ele diz que "falar a verdade é um ato comunista e revolucionário" então fica claro que os bolshevikes em 1921 (e previamente) não foram nem comunistas nem revolucionários.

Os editores trotskystas de Kronstadt mostram a mesma versão dos bolshevikes como sendo expressão da verdade. Nesta obra, eles apresentam uma "introdução" de Pierre Frank que argumenta que os bolshevikes simplesmente "declararam que generais[brancos] contra-revolucionários empenharam-se na manipulação de insurgentes" e que os anarquistas "por sua vez proclamavam que tais generais tinham dado início à rebelião e que Lenin, Trotsky juntamente com toda liderança do Partido sabiam que não se tratava de uma mera revolta de 'generais'". [citado por Ida Mett]. Pelo que se pode apreender de tais autores, aparentemente, procuravam justificar que "alguma coisa tinha que ser feita diante desses fatos" . Ele declara que Mett e outros "simplesmente distorceram as posições bolshevikes". [Op. Cit., p. 22]

Esta mesma obra estabelece que aquilo que Lenin realmente queria dizer em 8 de março de 1921 era que, "a imagem familiar dos generais da guarda branca" veio "rapidamente à tona", e que "os generais brancos eram muito ativos" alí, e que era "totalmente claro que aquilo era obra de Revolucionários Sociais (RSs) e emigrantes da guarda branca" e que Kronstadt  tinha "ligações" com "a guarda branca". [Op. Cit., pp. 44-5]. Isto foi declarado a despeito da presença das declarações governamentais que mencionamos acima em que o governo bolshevike claramente se refere à prisão de dois líderes comunistas sob o "comando" de Kozlovsky que, por sua vez, "demonstrava" apoio à direita-RSs cujas movimentações originaram à revolta (de acordo com os bolshevikes).

Primeiramente, é incorreto associar Ida Mett às declarações de Lenin e Trotsky sobre o general que "iniciara" a revolta. Em segundo lugar, ela apenas repetiu a versão da rádio de Moscou sobre a revolta ("apenas mais uma insurreição da guarda branca"), que se tratava de "um motim do ex-general Kozlovsky e a tripulação do navio de guerra ‘Petropavlovsk’". Uma trama organizada por espiões, enquanto os Revolucionarios Socialistas (SRs) "preparavam" o terreno. Uma grande armação que tinha como real comandante um "general tzarista". Na página anterior mencionada por Frank, consta a versão bolshevike sobre quem teria iniciado a revolta. Estranho a queixa de Frank sobre outros "distorcendo" a posição bolshevike quando, além da pessoa que ele cita não ter feito isso, ele distorce seu real posicionamento. [Mett, Op. Cit., p. 43]

Mett simplesmente tomou conhecimento das mentiras bolshevikes na medida em que a verdade com o tempo vinha à tona. O que ela disse foi que "Lenin, Trotsky juntamente com toda liderança do Partido sabiam que não se tratava de uma mera revolta de 'generais'" [Op. Cit., p. 43]. Quem era esse tal general Kozlovsky que os bolshevikes tanto insistiam em apontar como o líder da revolta? O que teve a ver com tudo isso? Mett explica o que aconteceu:

Embora fosse um "general da artilharia, e o primeiro a desertar das linhas bolshevikes, parecia destituido de qualquer capacidade de liderança. Quando eclodiu a insurreição esperava-se que assumisse o comando da artilharia do Kronstadt, [pois] o comandante comunista da fortaleza havia desertado. De acordo com as regras que prevaleciam na fortaleza [quem] deveria substituí-lo [era] Kozlovsky". Ele, na verdade, recusou o cargo, declarando que  as velhas regras não poderiam mais ser aplicadas pois a fortaleza agora estava sob a jurisdição do Comitê Revolucionário Provisório. Kozlovsky permaneceu, e isto é verdade, em Kronstadt, mas apenas enquanto perito em artilharia. Todavia, após a queda de Kronstadt, em uma entrevista concedida à imprensa finlandesa, Kozlovsky acusou os marinheiros de gastarem um precioso tempo com outros assuntos em vez de defender a fortaleza. Ele explicou isso em termos de sua relutancia em tomar parte de um eventual banho de sangue. Posteriormente, outros oficiais da guarnição também passaram a acusar os marinheiros de incompetencia militar, e de mão darem a devida atenção a suas observações técnicas. Kozlovsky era o único general presente em Kronstadt. Isto foi suficiente para que o Governo fizesse uso de seu nome.

"Os homens de Kronstadt, até certo ponto, utilizaram os conhecimentos militares de alguns oficiais antigos da fortaleza. Alguns desses oficiais avisaram os homens de que seriam completamente hostilizados pelos bolshevikes. Mas em seu ataque a Kronstadt, as forças do Governo também utilizaram oficiais ex-tzaristas. De um lado estavam Kozlovsky, Salomianov, e Arkannihov; do outro, também oficiais ex-tzaristas e peritos do velho regime, tais como Toukhatchevsky. Kamenev, e Avrov. Em nenhum dos lados havia forças independentes". [Op. Cit., p. 44]

Todas as versões não-leninistas concordam com isso. Paul Avrich destacou que quando surgiu o nome de Kozlovsky "os bolshevikes passaram a denunciá-lo como o genio do mal do movimento" transformaram-no num "proscrito" e passaram a hostilizar seus familiares. Ele confirmou que peritos militares "recebiam incumbencias na tarefa de planejar operações militares em favor da insurreição". Embora se recusando assumir o comando da fortaleza depois da fuga do oficial mais graduado para o continente, "os oficiais o consideravam um competente conselheiro para a rebelião. . . [mas no que diz respeito ao] início ou à direção da revolta, à construção de seu programa político, [todas estas coisas] estavam alienadas de sua maneira de pensar". Sua função "se restringia em prover considerações técnicas, da mesma forma que procedera com os bolshevikes". É necessário mencionar também, que "diante de todas as acusações de que Kronstadt era uma conspiração de generais de guardas brancos, os oficiais ex-tzaristas exerceram uma importancia maior no ataque do que na defesa da fortaleza". [Op. Cit., p. 99, p. 100, p. 101 e p. 203]

Contudo, nada disso é suficiente para os trotskystas. Wright, por exemplo, não toca nesse assunto. Ele apenas menciona a declaração de Alexander Berkman, sobre "um general, Kozlovsky, em Kronstadt. Nomeado por Trotsky como perito em artilharia. E que não exerceu nenhum papel nos eventos de Kronstadt". [_The Kronstadt Rebellion_]. Diante disso, Wright protesta dizendo não corresponder à verdade e, como prova, apela para a entrevista de Kozlovsky afirmando que "dos próprios lábios do general contra-revolucionário . . . adquirimos uma declaração clara de que desde o primeiro dia, ele e seus colegas haviam se associado abertamente com os amotinados, tinham elaborado os 'melhores' planos para capturar Petrogrado . . . Se o plano falhasse teria sido apenas porque Kozlovsky e seus colegas foram incapazes de convencer os 'líderes políticos', i.e. seus aliados SR [!], e de que o momento era propicio para expor os verdadeiros aspectos de seu programa". [Lenin e Trotsky, Kronstadt, p. 119].

Será que a  recusa do Comitê Revolucionário Provisório em considerar os conselhos do perito militar seriam uma prova de que, de fato, eles tinham ligação entre si!? Isso é bastante comovente! Será que se o povo de Kronstadt tivesse aceito seu conselho isso provaria que eles não estariam ligados? O fato de Kozlovsky não assumir o comando da fortaleza se constitui numa prova de que ele tinha ligações com a revolta conforme a versão da rádio bolshevike!?
Berkman estava certo? Kozlovsky foi o comandante da revolta?
Ora, a único vínculo de Kozlovsky com os rebeldes foi oferecer sua perícia aos amotinados de Kronstadt (da mesma forma que fizera com os bolshevikes) e desenvolver planos que foram rejeitados. Será que o simples fato de oferecer sua perícia e fazer planos que são rejeitados pelos envolvidos equaliza seu papel naquele evento? Se isso for verdade então o papel de Trotsky na revolução equivale ao papel de Durruti na revolução espanhola!

Na medida em que as óbvias falsificações em torno desse tema tornaram-se mais e mais conhecidas, Trotsky e seus seguidores apelaram para outros argumentos num contínuo processo de calúnia e difamação dos rebeldes. O mais famoso foi afirmar que os "marinheiros de Kronstadt eram completamente diferentes dos heróicos grupos revolucionários de 1917". [Wright, Op. Cit., p. 129]. Retornaremos a esta questão na seção H.5.8, refutando-a pelas evidencias (e mostrando como os trotskystas abusam de pesquisas apresentando um quadro drasticamente falsificado dos fatos reais).



Centenas Negras-RS. RS significa "Revolucionários Sociais", um partido com uma tradicional base camponesa e cuja ala direita havia feito uma composição com os brancos; os reacionários "Centenas Negras" eram proto-fascistas que já atuavam antes da revolução atacando judeus, militantes operários, radicais e daí por diante.



H.5.6 A revolta de Kronstadt foi um complô branco?

Os bolshevikes sempre retrataram a revolta de Kronstadt como um complô branco, organizado pela contra-revolução (veja mais detalhes na última seção). Em particular, associavam a revolta a uma conspiração, dirigida por espiões estrangeiros e executada pelos RSs e pelos aliados da vanguarda branca.

Lenin, por exemplo, argumentou em 8 de março que "os generais da guarda branca eram muito ativos" em Kronstadt. "Existem amplas provas disso. Duas semanas antes do evento de Kronstadt, os jornais de Paris publicaram um motim em Kronstadt. É evidente que se trata da ação de Revolucionários Sociais e emigrantes da guarda branca". [_Kronstadt_, pp. 44]

Em 16 de março, Trotsky fez outra observação semelhante, destacando que,  "alguns jornais estrangeiros . . . noticiaram que haveria um levante em Kronstadt em meados de fevereiro . . . Como explicar isso? Muito simples . . . Os organizadores da Rússia contra-revolucionária planejaram desencadear o motim no momento propício, enquanto que um impaciente jornal amarelo e a imprensa financeira branca publicam que ele já está acontecendo de fato". [Op. Cit., p. 68]

Estas parecem ser as grande "evidências" de Lenin e Trotsky com relação à natureza branca-vanguardista da revolta. Na verdade, Trotsky com "base nesse despacho . . . enviou um aviso a Petrogrado para meus companheiros navais". [Ibid.]

Todavia, para averiguar a verdade (ou inverdade) dessas afirmações basta verificar como os bolshevikes reagiram ao anúncio do levante em Kronstadt. Eles não fizeram nada. Os proprios editores trostkystas de um livro produzido para justificar a repressão declararam que "o comando do Exército Vermelho foi apanhado de surpresa pela rebelião". [Op. Cit., p. 6]. J.G. Wright, defendendo a posição de Trotsky (uma defesa encomendada pelo próprio Trotsky), confessa que o "comando do Exército Vermelho" foi "pego de surpresa pelo motim". [Op. Cit., p. 123]. Isto mostra claramente a pouca importancia que os jornais davam à situação antes da rebelião. Naturalmente, durante e depois a rebelião recebeu várias e diferentes abordágens que rápidamente se tornaram foco da sujeira bolshevike.

Agora, usar essas coisas como evidência de um complô branco, é simplesmente patético. Conforme Ida Mett argumentou, a "publicação de falsas notícias sobre a Rússia nada tinha de excepcional. Tais notícias eram [corriqueiramente] publicadas antes, durante e depois dos eventos de Kronstadt. . . Basear acusações em 'provas' dessa espécie é inadmissível e imoral". [Mett, Op. Cit., p. 76]

Trotsky, ao mesmo tempo em que admitia, por um lado, que "a imprensa imperialista . . . publicava . . . um grande número de reportagens fictícias sobre a Rússia" sustentava, por outro, que as reportagens sobre Kronstadt eram exemplos de "tramas" visando "provocar transtornos nos centros expecíficos da Rússia Soviética". (na verdade, aqueless "agentes jornalísticos  do imperialismo apenas ‘adiantaram’ aquilo que estava sendo preparado para ser executado pelos outros agentes do imperialismo".). [_Kronstadt_, p. 69]. Lenin também observou, em um artigo entitulado "A Campanha das Mentiras", que "a imprensa ocidental, nas duas últimas semanas, mergulhara em uma orgia de mentiras engajando-se na produção massiva de invenções fantásticas sobre a Rússia Soviética" e relacionou (coisas tipo "Petrogrado e Moscou nas mãos dos insurgentes"). [Op. Cit., p. 50 e p. 51]

Ora, se essa imprensa não era confiável como é que podia ser utilizada como prova de uma conspiração branca em Kronstadt? A resposta é previsível. Conforme Mett observou, "em 1938 o próprio Trotsky fez esta acusação". [Op. Cit., p. 76]. Em outras palavras, num primeiro momento a imprensa é a mais pura expressão da mentira, num segundo momento aquela mesma imprensa torna-se o mais valoroso arauto da verdade, um documento incontestavel. Algo milagroso, para não dizer patético! Contudo, nem isso impediu que seu leal seguidor John G. Wright se referisse a aquelas coisas como "fatos irrefutáveis" determinantes da "conecção entre a contra-revolução e Kronstadt".) [Op. Cit., p. 115]. Além disso, se há uma conspiração em curso, por que diabos esses conspiradores contra-revolucionários divulgariam notícias antecipadas sobre seus planos? Isso também nunca foi explicado.

Como pode ser visto, em tempo algum nenhuma evidência foi apresentada provando que os brancos organizaram ou mesmo tomaram parte na revolta. Conforme Ida Mett argumenta:

"Se, o governo bolshevike tinham mesmo provas dessas supostas ligações entre Kronstadt e contra-revolucionários porque não as apresentaram? Por que não mostraram às massas trabalhadoras da Rússia o 'real' motivo do levante? Se isso não foi feito é porque nunca houve qualquer prova". [Op. Cit., p. 77]

Todavia, décadas depois o historiador Paul Avrich ter descoberto um documento firmado como "altamente secreto" escrito a mão e entitulado "Memorandum sobre a Questão da Organização do Levante em Kronstadt". O trotskysta Pierre Frank considerou-o "tão convincente" que o "reproduziu integralmente" para provar que existiu uma conspiração branca por trás da revolta de Kronstadt. Na verdade, ele considerou isto uma "incontestável" revelação e que Lenin e Trotsky "não estavam errados em suas análises sobre Kronstadt". [Op. Cit., p. 26 and p. 32]

Contudo, uma rápida leitura do documento revela, de fato, que Kronstadt nada teve a ver com uma conspiração branca, e muito menos foi fruto dela. Pelo contrário o que o documento mostrou com clareza foi que o "Centro Nacional" branco tencionava experimentar e fazer uso de "levantes" espontâneos objetivando "eclodir eventos futuros" para poder atingir seus próprios fins. O documento relata que "podia ser observado nas massas e entre os marinheiros, numerosos e inconfundíveis sinais de insatisfação com a ordem vigente". Na verdade, o "Memorandum" declarava que "não podemos esquecer que mesmo que o comando frances e as organizações anti-bolshevikes não tomem parte na preparação e na direção do levante, a revolta em Kronstadt será como as outras, depois de um breve período de sucesso estará condenada ao fracasso". [_Kronstadt 1921_, p. 235 e p. 240]

Conforme Avrich destaca, an "o assunto fundamental do Memorandum é que a revolta não ocorreria antes do degelo da primavera, quando o gelo derrete e Kronstadt fica imune à uma invasão pelo continente". [_Kronstadt 1921_, pp. 106-7]. Voline dizia o óbvio quando argumentou que a revolta "eclodiu espontaneamente" pois se ela "fosse resultado de um plano concebido e preparado anteriormente, ela certamente não teria acontecido no começo de março, num momento desfavorável. Algumas semanas depois, com Kronstadt livre do gelo, teria se tornado uma fortaleza inexpugnável . . . A grande vantágem do governo bolshevike foi precisamente a espontaneidade do movimento e a ausência de qualquer organização prévia, qualquer cálculo, na ação dos marinheiros". [_The Unknown Revolution_, p. 487]. Conforme pode ser visto, o "Memorandum" também reconheceu a necessidade do gelo derreter e esta era a questão básica que estava por trás do documento. Em outras palavras, a revolta foi realmente espontânea e isto  permeia todo o "Memorandum."

Avrich rejeita a idéia de que o "Memorandum" explique a revolta:

"Nada vem à luz revelando que o memorando secreto tenha sido sequer posto em prática ou que havia alguma ligação entre os emigrantes e os marinheiros antes da revolta. Pelo contrário, o levante caracterizou-se pela espontaneidade . . . não havia nenhum traço no comportamento dos rebeldes que sugerisse qualquer cuidado maior nos preparativos da revolta. Se tivessem arquitetado um plano, os marinheiros certamente teriam esperado o gelo derreter . . . Além disso,os rebeldes autorizaram Kalinin [um líder comunista] retornar a Petrogrado, embora ele houvesse feito importantes ameaças. Mais adiante, não fizeram qualquer tentativa no sentido de tomar a ofensiva . . . Também é muito significante, a grande quantidade de comunistas que tomaram parte no movimento. . .

"Os marinheiros não necessitavam de nenhum incentivo externo para levantar a bandeira da insurreição. . . Kronstadt estava claramente pronta para a rebelião. E todas estas coisas nada tinham a ver com maquinações de emigrantes conspiradores e de agentes da inteligência estrangeira, mas com a onda de levantes camponeses através do país e com as movimentações dos trabalhadores na vizinha Petrogrado. Da forma como a revolta se desencadeou, ela seguiu o modelo das primeiras eclosões contra o governo central em 1905 através da Guerra Civil". [Op. Cit., pp. 111-2].

Voline argumenta explicitamente que essa "antecipação" da revolta pelo Centro Nacional, na verdade "desmantelava os planos para ajudar organiza-la", eles não dedicaram "nenhum tempo para por tais planos em prática". A "eclosão ocorreu cedo demais, muitas semanas antes que as condições básicas da trama . . . se estabelecessem". E ele continua destacando que "não foi verdade que emigrantes desenharam a rebelião". A revolta foi "um movimento espontâneo e auto-controlado do começo ao fim". [Op. Cit., pp. 126-7]

Além disso, mesmo se o memorandum tivesse alguma ligação com algum aspecto da revolta seria em conexão com a reação do 'Centro Nacional' branco. Em primeiro lugar, nem eles nem os franceses proporcionaram qualquer tipo de ajuda aos revoltosos. Em segundo lugar, o professor Grimm, agente chefe do Centro Nacional em Helsingfors e os oficiais representantes do general Wrangel na Finlandia, declararam para um colega, depois da revolta ter sido esmagada, que se ocorresse uma nova eclosão o grupo não seria pego de surpresa novamente. Avrich também afirma que a revolta "pegou os emigrantes num ponto de desequilibrio" e que "nada . . . tinha sido feito para implementar um Memorandum Secreto, e que as admoestações do autor eram altamente recomendaveis". [Paul Avrich, Op. Cit., p. 212 e p. 123]

Com efeito, as tentativas encaminhadas por certos trotskystas de última hora para justificar as difamações e calúnias de seus heróis contra Kronstad são patéticas. Nunca houve qualquer evidência da existencia de um plano por parte da vanguarda branca. Quando, em 1970, Paul Avrich divulgou suas pesquisas sobre a revolta, o único documento em questão claramente não sustentava qualquer hipótese sobre brancos organizando a revolta. Pelo contrário, os brancos queriam mesmo era se aproveitar do "levante" dos marinheiros em proveito próprio, o "levante"por eles prognosticado ocorreria na primavera (com ou sem eles). A revolta de fato ocorreu mais cedo do que eles esperavam e não foi produto de uma conspiração. Na verdade, a história revelada por este documento não comprova outra coisa a não ser que a revolta foi espontânea.

Portanto, a afirmação de que Kronstadt foi um complô branco é destituída de qualquer base lógica ou documental. Não existe nenhuma evidência que sustente tal afirmação.


H.5.7 Qual foi o real comprometimento de Kronstadt com os brancos?

Conforme demonstramos na última seção, a revolta de Kronstadt não foi uma conspiração branca. Desde o princípio foi uma revolta popular. Apesar disso, alguns trotskystas ainda tentam manchar a revolta argumentando que ela foi, de fato, real ou "objetivamente" pró-brancos. Vamos analisar essa questão agora.

Primeiramente, devemos destacar que o povo de Kronstadt assumira uma postura de completa rejeição a qualquer oferta ou ajuda que viesse do Centro Nacional e óbviamente de qualquer outro grupo pró-branco (aceitaram ajuda da Cruz Vermelha Russa já no fim da rebelião quando a situação alimentar se tornara crítica). Historiadores como Israel Getzler destacam que "o povo de Kronstadt encarou como um profundo insulto todos os gestos de simpatia e de promessas de ajuda oriúndos dos emigrantes das guardas-brancas". [Getzler, Op. Cit., p. 235]. Avrich relata o "profundo ódio" que o povo de Kronstadt nutria pelos brancos e que "tanto antes quanto depois no exílio" eles "rejeitaram indignados todas as acusações governamentais de colaboração com grupos contra-revolucionários domésticos ou externos". Conforme os próprios comunistas puderam constatar, não veio nenhuma ajuda externa para os insurgentes. [Op. Cit., p. 187, p. 112 e p. 123]

Em outras palavras, não há qualquer relação entre a revolta e os brancos.

É evidente que os brancos ficaram extremamente felizes com a revolta do povo de Konstradt. Ninguém pode negar isso. Mas daí afirmar que a revolta em si foi estruturada por reacionários contra as lutas sociais não possui qualquer fundamento político. Na verdade, a verdadeira contra-revolução estava latente dentro do partido bolshevike e revelou-se integralmente com a subida do estalinismo em 1929 que representou a mais feroz supressão das forças populares que se posicionavam contra uma forma específica de capitalismo (sabidamente o capitalismo de estado). Indo mais fundo veremos que muitos trotskystas ortodoxos assumiram essa posição reacionária (apoiando a seção da burocracia estalinista reforçando sua ditadura).

Na verdade, o próprio povo de Kronstadt sabia que os brancos estavam dispostos a apoir suas ações (quaisquer ações contra os bolshevikes) mas este apoio nada tinha a ver com aquilo que motivava a população, vinha por razões diferentes daquelas pelas quais o povo lutava:

"Vocês, . . . marinheiros e trabalhadores de Kronstadt tomaram na marra o leme das mãos dos comunistas e assumiram a direção . . . Camaradas, não se descuidem desse leme pois os inimigos tentarão retomá-lo novamente. Ao menor descuido reassumirão a direção, e tudo isso irá provocar triunfantes gargalhadas nos lacaios tzaristas e nos seguidores da burguesia.

"Camaradas, neste momento voces estão alegres pela grande e pacífica vitória sobre a ditadura dos comunistas. Contudo, nossos outros inimigos também celebram.

"O motivo da alegria deles, e completamente diferente dos motivos de nossa alegria.

"Voces foram movidos pelo ardente desejo por restaurar o autêntico poder dos sovietes, pela nobre esperança de ver o trabalhador exercendo livremente seu trabalho e o camponês alegrando-se pelo direito de dispor, em sua terra, do produto de sua labuta. Enquanto que eles sonham em recuperar o chicote tzarista e os privilégios de seus generais.

"Seus interesses são diferentes. Eles nunca foram seus companheiros de jornada.

"Sua ação foi para libertar-se do poder dos comunistas para poderem desenvolver seu trabalho fecundo de paz construtiva. Ao passo que eles desejam forçar os trabalhadores e camponeses a voltar a ser seus escravos.

"Vocês estão à procura de liberdade. Eles querem submetê-los a correntes. Estejam vigilantes! Não permitam que retomem o leme das tuas mãos". [_No Gods, No Masters_, vol. 2, pp. 187-8]

Claro que isso não é suficiente para os seguidores de Lenin e Trosky. John Rees, por exemplo, menciona Paul Avrich em defesa de sua asserção de que a revolta de Kronstadt foi, de fato, pró-brancos. Ele argumenta o seguinte:

"Paul Avrich . . . disse que é uma ‘evidência inegável’ que a liderança da rebelião resultou de um acordo com os brancos após eles [rebeldes] terem sido esmagados e que 'não pode ser desconsiderada a possibilidade de que isso tenha sido continuidade de um relacionamento anterior'". [Op. Cit., p. 64].

O que Rees esquece de mencionar é aquilo que Avrich acrescenta em seguida, "contudo, uma cuidadosa análise não fornece qualquer fundamento a essa crença". Ele próprio afirma que "nada veio à luz no sentido de mostrar que . . . houvesse qualquer ligação entre emigrantes e marinheiros antes da revolta". [Avrich, Op. Cit., p. 111]. Notável essa falha na citação de Rees ou mesmo em mencionar a conclusão de Avrich sobre suas próprias especulações! Ress simplesmente isolou a situação pós-revolta fora do contexto geral e passou a sugerir ligações entre "lideranças" da rebelião e os brancos. Avrich corretamente argumenta que "não há qualquer prova que revele que havia alguma ligação entre o Centro [Nacional] e o Comitê Revolucionário tanto antes como depois da revolta. Em vez disso, tudo que se constatou foi uma experiência mútua de amargura e frustração. E isso, mesmo que tivessem, no calor da batalha, em um momento ou outro juntado forças contra o regime bolshevike". [Op. Cit., p. 129]. O desespero em ver nossos amigos e companheiros sendo assassinados por ditadores pode perfeitamente afetar nosso julgamento, isso é previsível e compreensível.

Vamos supor, por um momento, que certos elementos na "liderança" dos revoltosos fossem, de fato, patifes. Qual o peso que isso representa na avaliação da revolta do Kronstadt? Primeiramente, precisamos destacar que esta "liderança" havia sido eleita pela e sob o controle da "conferência de delegados", que foi por sua vez eleita por e sob controle de marinheiros e soldados rasos juntamente com gente comum do povo. Este grupo se reunia durante a revolta "para receber e debater as informações que vinham do Comitê Revolucionário e para propor  medidas e providências". [Getzler, Op. Cit., p. 217]. As ações das "lideranças" não se processaram de uma forma independente do conjunto da população, indiferente à sua agenda, elas funcionavam sob o controle da base. Em outras palavras, a revolta não estava subordinada ao resultado de discussões entre "lideranças" fossem elas "homens maus" ou não. Na realidade, esse tipo de atitude apenas reflete o elitismo da história da burguesia.

Em segundo lugar, a questão que se coloca é se os trabalhadores estavam participando da luta e o que desejavam conquistar, e definitivamente não se os "líderes" eram honrados cidadãos. Ironicamente, Trotsky indicou o porquê. Em 1934, ele argumentou, "qualquer um que diga que não apoiamos os mineiros britânicos na greve de 1926 ou nas recentes grandes greves nos Estados Unidos com todos os meios que tinhamos à nossa disposição será um traidor dos trabalhadores britânicos e americanos, embora os líderes das greves tenham sido em sua maior parte patifes". [_No Compromise on the Russian Question_].

O mesmo se aplica a Kronstadt. Mesmo se assumissemos a ligação de alguns dos "líderes" da revolta com o Centro Nacional (uma mera hipótese sem base consistente), isso de forma alguma invalida a revolta de Kronstadt. O movimento não foi produzido por assumidos "líderes" na revolta, pelo contrário, surgiu da base e refletiu as exigências e a política de todos aqueles que estavam envolvidos. Afirmar que o movimento estava nas mãos de "líderes", conforme a KGB e outras fontes bolshevikes argumentaram, é o mesmo que dizer que alguns "líderes" do levante húngaro de 1956 tinham ligações como a CIA ou com agitadores plantados pela CIA, tornando aqueles que fizeram a revolução juntamente com os conselhos de trabalhadores um amontoado de coisas sem valor. Claro que não foi assim. Se alguns dos "líderes" foram patifes, conforme Trotsky argumentou, isso por si só não invalida a revolta. O fator chave aqui é o critério da classe trabalhadora.

(Como esclarecimento, queremos destacar que Trotsky estava argumentando contra aqueles que afirmavam que para defender incondicionalmente a União Soviética tinham que dar apoio ao Stalinismo. Ele afirmou imediatamente em seguida as palavras que citamos acima: "Exatamente a mesma coisa se aplica à URSS!". Contudo, existem algumas óbvias diferenças que invalidam sua analogia. Primeiro, as lideranças stalinistas estavam explorando e oprimindo os trabalhadores através do poder do estado. Burocratas sindicais, apesar de todas suas falhas, não eram carniceiros assassinos nas mãos de ditadores sob a cobertura de tropas e da polícia secreta. Em segundo lugar, as greves são exemplos da ação direta do proletariado que podem fugir e escapar do controle das estruturas e burocracias sindicais. Elas podem se tornar o ponto focal na criação de novas formas de organização e de poder da classe trabalhadora que pode dar um fim no poder e nas burocracias sindicais e substituí-los por greves e conselhos auto-geridos. O regime stalinista era integralmente organizado no sentido de reprimir qualquer tentativa de desmontá-lo e e não uma forma de defesa da classe trabalhadora, o mesmo se pode dizer com relação à sua organização sindical submetida a ferros).

John Rees continua argumentanto que:

"Com o isolamento da revolta Petrichenko foi forçado a reconhecer a realidade do balanceamento das forças de classe. Em 13 de março Petrichenko telegrafou a David Grimm, o chefe do Centro Nacional e representante oficial do general Wrangel na Finlândia, para ajudá-lo enviando alimento. Em 16 de março Petrichenko aceitou a oferta da ajuda do Barão P. V. Vilkin, um sócio de Grimm que os bolshevikes acertadamente chamavam de agente branco. As tropas foram esmagadas antes que qualquer ajuda chegasse, mas no desenrolar dos eventos chegaram armas dos brancos para as mãos dos marinheiros, como sempre se suspeitou que estava ocorrendo". [Op. Cit., p. 64]

Diante da repressão que a ditadura bolshevike implementava contra a classe trabalhadora de Petrogrado, o povo de Kronstadt não teve outra opção a não ser aceitar ajuda. O argumento de Rees lembra a "lógica" da direita em seus argumentos com relação à Guerra Civil Espanhola e às Revoluções Cubana e Sandinista. Isoladas, cada uma dessas revoltas estava inclinada a aceitar auxílio da União Soviética revelando aquilo que a direita "sempre sabia desde o começo", ou seja, sua objetiva "natureza comunista" e suas ligações com uma "Conspiração Comunista Internacional". Poucos revolucionários avaliariam estas lutas em bases tão estreitas e ilógicas mas é isso que Rees faz com relação a Kronstadt.

Além do mais, a lógica desses argumentos de Rees foi posteriormente utilizada pelos stalinistas. Na verdade, sua concordancia com os stalinistas, no que diz respeito à revolução húngara de 1956 é bastante esclarecedora. Bastou os revoltosos hungaros pedirem auxílio ao Ocidente contra o Exército Vermelho, para que Rees qualificasse esse ato como objetivamente contra-revolucionário e pró-capitalista, exatamente como os burocratas do Partido Comunista haviam argumentado. O fato de chegarem muitas menságens de apoio aos rebeldes durante a revolta, de acordo com a lógica de Rees, era uma prova de que todos os revoltosos estavam impregnados de valores burgueses, condenando a revolta aos olhos de todos os socialistas. Similarmente, o fato do sindicato polonês Solidariedade ter recebido apoio Ocidental contra o regime estalinista não significa que sua luta foi contra-revolucionária. Assim, os argumentos usados por Rees são idênticos àqueles utilizados pelos stalinistas para apoiar a repressão que dirigiram contra a classe trabalhadora no Império Soviético. Na verdade, os trotskystas ortodoxos também chamaram a  "Solidarnosc" de uma corporação ligada à CIA, banqueiros, Vaticano, Wall Street, capitalistas contra-revolucionários na Polônia, e responsável pela queda da União Soviética em prejuízo da classe trabalhadora e do socialismo, em outras palavras, uma contra-revolução. Como prova para essas argumentações eles apontam a alegria e a disposição generalizada de apoio nos círculos de elite Ocidentais (ignorando completamente a natureza popular daquela revolta).

Na realidade, o fato de que outros se aproveitem tomando vantagem dessas (e de outras) situações é inevitável e irrelevante. O que importa mesmo é se a classe trabalhadora detém o controle da revolta e quais são seus principais objetivos. Por este critério de classe, é claro que a revolta de Kronstadt foi uma revolta revolucionária, como também o foi na Hungria em 1956, onde o miolo da revolta estava na classe trabalhadora e em seus conselhos. Eles tanto controlavam quanto davam o ritmo. A vantágem que os brancos tentaram tirar dela é tão irrelevante na avaliação da revolta de Kronstadt quanto a tentativa stalinista de tirar vantágem da luta espanhola contra o fascismo.

Por fim, é bom não esquecer o fato de que os membros do comitê revolucionário de Kronstadt se refugiaram na Finlândia juntamente com "cerca de 8.000 pessoas (alguns marinheiros e a parte mais ativa da população civil)". [Mett, Op. Cit., p. 57]. Foi assim que os bolshevikes vaticinaram o dia 5 de março ("No último minuto, todos aqueles generais, Kozlovskvs, Bourksers, e toda aquela ralé, Petrichenkos, e os Tourins voaram para a Finlandia, para as guardas brancas". [citado por Mett, Op. Cit., p. 50]). Contudo, isto não indica qualquer conexão com "guardas brancas". Afinal das contas, para onde mais eles poderiam ter ido? Qualquer um deles que permanecesse na Rússia Soviética restava apenas uma prisão bolshevike ou a morte. O fato de que ativos participantes na revolta tivessem im único refúgio para ir para evitar a morte não tira o mérito da natureza da revolta nem pode ser usado como "evidencia" de uma "conspiração branca".

Em outras palavras, a tentativa dos trotskystas de manchar os marinheiros de Kronstadt acusando-os de ligações com os brancos é simplesmente falsa. As ações de alguns rebeldes depois que os bolshevikes esmagaram a revolta não podem ser usadas para desmerecer a revolta em si. A real relação da revolta com os brancos claramente foi ódio e oposição.
 


H.5.8 A rebelião envolveu novos marinheiros?

A desculpa trotskysta mais usada para justificar a repressão à revolta de Kronstadt é a do próprio Trotsky. Afirmar que os marinheiros em 1921 eram diferentes dos marinheiros de 1917. Trotsky declara que em 16 de março a Frota do Báltico estava "destituída de seu pessoal" e que "muitos dos marinheiros revolucionários" de 1917 tinham sido "transferidos" para outros locais. "Por questões acidentais foram substituídos em larga escala". Isto "facilitou" o trabalho da "organização contra-revolucionária" que "escolheu" Kronstadt [_Kronstadt_, pp. 68-9].

Ele repetiu este argumento em 1937 e 1938. [Op. Cit., p. 79, p. 81 e p. 87]. Seus discípulos repetiram suas afirmações. Wright argumenta que "o pessoal da fortaleza não pode ter permanecido estático durante todo o período entre 1917 e 1921". Duvidando que aqueles marinheiros revolucionários de 1917, aqueles bravos camaradas que enfrentaram os brancos, eram os mesmos que estavam por trás da revolta de 1921. [Op. Cit., pp. 122-3]. John Rees argumenta que como "a composição da guarnição havia mudado . . . tudo indica que os camponeses concentraram seus esforços em Kronstadt, conforme Trotsky sugeriu". [Op. Cit., p. 61]

Como pode ser visto, essa alegação de que os marinheiros de Kronstadt constituiam uma "massa amorfa" cuja composição social se modificara é muito comum nos círculos trotskystas. O que fazer com alegações como estas?

Primeiramente, vamos averiguar os fatos relacionados com a composição social e a rotação do pessoal em Kronstadt. Depois, veremos como os trotskystas abusam destas alegações para distorcer a verdade.

Graças às modernas pesquisas, é fácil constatar que a composição social dos trabalhadores e camponeses não se modificou. Em Kronstadt 20.000 marinheiros compunham a Frota Báltica, uma mão-de-obra que preenchia os requisitos tecnológios necessários para a operação daqueles modernos navios. Desse total, 31% vieram das fábricas entre 1904 e 1916 [The Truth About Kronstadt]. Em 1921 mais de três quartos dos marinheiros eram de orígem camponesa. [Avrich, Op. Cit., p. 89]. Em outras palavras, o "peso" dos camponeses em Kronstadt aumentou cerca de 10% comparado com 1917 (i.e. para 5-7 pontos percentuais acima dos 71% em 1917). Em outras palavras, o aumento foi irrisório. O mesmo aconteceu no que diz respeito à composição de classe. A maioria dos marinheiros em 1921, tanto quanto em 1917, eram de orígem camponesa.

Como saber se aqueles aqueles marinheiros camponeses eram novos recrutas ou veteranos de 1917? A resposta é que os veteranos predominavam. O acadêmico Israel Getzler investigou os registros soviéticos do período e constatou que daqueles que serviram nos navios do Báltico em janeiro de 1921 pelo menos 75,5% foram recrutados antes de 1918. Mais de 80% vieram de áreas da Grande Rússia, 10% da Ucrania e 9% da Finlandia, Estônia, Latvia e Polônia. Ele concluiu que o "os politizados veteranos marinheiros vermelhos predominavam em Kronstadt no final de 1920" e baseia tais conclusões na "frieza dos dados estatísticos" acima citados. Ele investigou a tripulação dos dois maiores navios de guerra, o Petropavlosk e o Sevastopol (ambos de renome desde 1917 pelo zêlo revolucionário e pela fidelidade aos bolshevikes, nas palavras de Paul Avrich, "o terror do levante". [Avrich, Op. Cit., p. 93]). Suas descobertas são conclusivas:

"Dos 2.028 marinheiros alistados, nada menos que 1.904 ou 93,9% foram recrutados na marinha antes e durante a revolução de 1917. O grupo maior, 1.195, se agregou em 1914-16. Apenas 137 marinheiros ou 6.8% foram recrutados nos anos de 1918-21, incluindo três que foram recrutados em 1921, e eles foram os únicos que não estavam lá durante a revolução de 1917". [_Kronstadt 1917-1921_, pp. 207-8]

Além do mais, A maioria dos comitês revolucionários eram veteranos do soviete de Kronstadt e da revolução de outubro. [Ida Mett, Op. Cit., p. 42]. "Em virtude de sua maturidade e experiência, sem falar de sua profunda desilusão enquanto participantes na revolução, era natural que aqueles marinheiros sazonais estivessem à frente do levante". [Avrich, Op. Cit., p. 91]. Em outras palavras, a magnitude dos marinheiros em 1921 permaneceu sendo a mesma que em 1917.

Os resultados dessa pesquisa refutam as afirmações de trotskystas como Chris Herman. Da mesma forma que Trotsky ele argumentou que "A Kronstadt de 1921 não era a mesma de 1917 pois a composição de classe de seus marinheiros havia mudado. Os melhores elementos socialistas dos velhos tempos haviam parado de lutar na linha de frente do exército e foram substituídos principalmente por camponeses cuja devoção à revolução era a mesma de sua classe". [citado por Sam Farber, Before Stalinism, p. 192]. Contudo, como é fácil verificar, a composição de classe não mudou em sua essência e a tripulação dos navios permaneceu praticamente inalterada durante o período em questão. Retomaremos estas questões mais tarde de forma a demonstrar a estreiteza que permeia os círculos trotskystas.

Herman, fervoroso discípulo de Trotsky, escreveu em 1937 que Kronstadt estava "completamente destituída dos elementos proletários" devido a "todos os marinheiros" que compunham a tripulação dos navios "terem se tornado comissários, comandantes, presidentes de sovietes locais". Posteriormente, renunciando à estupidez de sua afirmação, ele deu uma guinada qualificando Kronstadt como "privada de suas forças revolucionárias" desde "o inverno de 1919". Embora admitindo "um certo número de trabalhadores qualificados e peritos" que permaneceu para "cuidar do maquinário" conclui que eles eram "politicamente não confiáveis" pelo fato de não terem sido escolhidos para lutar na guerra civil. [Lenin e Trotsky, Kronstadt, p. 87 e p. 90]

Como prova, ele menciona um telegrama seu solicitando "no final de 1919, ou em 1920, licença para transferir um grupo de marinheiros de Kronstadt" ao que foi respondido: "licença negada" [Op. Cit., p. 81]. Ora, nessa linha de raciocínio o comando comunista em Kronstadt deveria deixar a fortificação totalmente desprovida de tripulação! O bom senso é deploravelmente deficiente em Trotsky, tanto quanto em seus discípulos.

Wright, pondera que era "impossível" acreditar que os marinheiros de 1917 pudessem ser aqueles mesmos camaradas que lutaram contra os brancos em Kronstadt. Isso teria sido um argumento válido se  as forças armadas soviéticas fossem democráticamente constituídas. Contudo, conforme indicaremos na seção H.5.13, ela fôra típicamente organizada sob o modêlo burguês. Trotsky aboliu os conselhos democráticos de soldados e marinheiros da mesma forma que aboliu a eleição de oficiais em favor da indicação de oficiais dentro de estruturas militares hierárquicas piramidais. O fato de terem que defender Petrogrado e o nível técnico de conhecimento requerido para operar os navios de guerra e as defesas de Kronstadt implica que os marinheiros de 1917 eram insubstituíveis e tinham que permanecer em Kronstadt. E foi isso o que, de fato, ocorreu. Nas palavras de Israel Gelzter:

"Uma razão para a permanencia em Kronstadt desses veteranos marinheiros, embora em número bem reduzido, foi precisamente a dificuldade em treinar, devido às condições impostas pela guerra, uma geração nova e competente. A operação dos ultra-modernos navios da frota russa requeria em geral tanto destreza como técnicas sofisticadas". [Op. Cit., p. 208]

Trotsky, em sua afirmação de que foram os guardas brancos que organizaram a revolta, obviamente percebeu que aquele argumento (agora refutado) de mudança na composição social dos marinheiros faria água rapidamente . E continuou enveredando por outros caminhos:

"Os melhores, os mais dedicados marinheiros estavam ausentes de Kronstadt, por exercerem um importante papel nos fronts e nos sovietes locais pelo país afora. Aquilo que pudemos observar foi uma pretenciosa massa amorfa ('Somos de Kronstadt'), mas sem educação e preparação política para o sacrifício revolucionário. O país estava faminto. Enquanto que povo de Kronstadt exigia privilégios. O levante foi ditado pelo desejo de obter rações alimentares privilegiadas". [_Kronstadt_, p. 79].

Este primeiro comentário de Trotsky diante do levante contém uma mentira. Conforme Ida Mett escreveu, "tal exigência nunca foi feita pelos homens de Kronstadt". Trotsky "deu início a suas acusações públicas através de uma mentira". [_The Kronstadt Uprising_, p. 73]. Ele repetiu essa mesma afirmação novamente, seis meses depois [Op. Cit., p. 92]. Na verdade, o que aconteceu foi exatamente o contrário. O ponto 9 das reivindicações de Kronstadt se referia explicitamente ao fim dos privilégios pedindo "equalização das rações para todos os trabalhadores".

No que se refere à "ausência de educação política", a resolução dos 15 pontos votados pelos marinheiros expõe o nonsense desta afirmação. Isso fora o fato dos marinheiros enfrentarem o Exército Vermelho para alcançar esse objetivo. Eles estavam preparados para morrer pelos seus ideais. Continuando em suas ambiguidades Trotsky argumenta que "em 1917-18, ganhavam consideravelmente bem mais que a média do Exército Vermelho" mas que em 1921 eles passaram a "receber, geralmente, . . . um índice consideravelmente menor, que a média do Exército Vermelho". Na realidade, conforme indicaremos na seção H.5.12, o programa político da revolta foi fundamentalmente o mesmo da democracia soviete de 1917 e, conforme podemos observar, se opunha à introdução de trabalho assalariado, uma idéia básicamente socialista (idéia ausente na política bolshevike do NPE). Além do mais, foram  encontros em massa que chegaram a essa resolução, e por unanimidade, significando que tanto os velhos como os novos marinheiros concordaram com ela. Totalmente diverso das asserções de Trotsky.

É patente a debilidade dos argumentos de Trotsky inclusive quando se referem à alteração da natureza dos marinheiros. Considerando a avaliação de Emma Goldman com relação às afirmações de Trotsky, veremos que ele apenas fazia uso de meros expedientes (que absolutamente nada tinham a ver com a revolta):

"Não me atrevo argumentar quem foram os marinheiros de 1918 ou 1919. Até janeiro de 1920 eu não estava na Rússia. Naquele tempo [contudo], Kronstadt, que havia 'liquidado' os marinheiros da frota do Báltico, era considerado o glorioso exemplo do valor e da corágem inabalável. Naquele tempo eu ouvia não apenas de anarquistas, menshevikes e revolucionários sociais, mas também de muitos comunistas, que a verdadeira espinha dorsal da Revolução foram os marinheiros. Em 1o. de maio de 1920, durante a celebração e outras festividades organizadas pela primeira Missão de Trabalhadores Britânicos, os marinheiros de Kronstadt receberam um grande contingente de homenágens, que os colocava como grandes heróis, que haviam salvo a Revolução de Kerensky e Petrogrado de Yudenich. Durante o aniversário de outubro os marinheiros foram novamente para a frente dos soldados, representaram a tomada do Palácio de Inverno e foram vívidamente aclamados pela multidão.

"Será que os membros da direção do partido, inclusive Leon Trotsky, tinham consciência da imágem de corruptos e desmoralizados que Kronstadt fazia deles? Acredito que não. Contudo, duvido que o próprio Trotsky tenha exercido qualquer controle sobre os marinheiros de Kronstadt até março de 1921. Sua história [posterior] foi, portanto, uma tardia reflexão, uma racionalização para justificar a estúpida 'liquidação' de Kronstadt". [_Trotsky Protests Too Much_]

Ante Ciliga menciona o testemunho a respeito de Kronstadt prestado por um companheiro prisioneiro político na Rússia Soviética:

"'É um mito [considerar], do ponto de vista social, que Kronstadt de 1921 tivesse uma população completamente diferente de 1917'. Essas foram as palavras de D., um homem de Petrogrado, para mim na prisão. Em 1921 ele pertenceu à juventude comunista e em 1932 foi preso como 'decista' (membro do grupo dos Centralistas Democráticos de Sapronov)" [Op. Cit., pp. 335-6].

Desde então, tanto Paul Avrich quanto Israel Gelzter tem analizado esta questão. A outra razão relacionada a esse assunto, ou seja, o abuso destes argumentos para defender sua causa, que revelam com perfeição a natureza da ética bolshevike. "Distantes dos revolucionários", declara Ciliga, "eles não ficaram apenas nas palavras, e tornaram realidade as tarefas da reação e da contra-revolução, [após isso] passaram, inevitavelmente, a fazer uso do recurso da mentira, da calúnia e da falsificação" [Op. Cit., p. 335]. Defender tais atos é pagar tributo àqueles que seguem sua tradição.

Desnecessário dizer que tal evidência é raramente mencionada pelos defensores do bolshevismo. Todavia, ao mesmo tempo que ignoram novas evidências, os trotskistas, surpreendentemente, procuram utilizá-las à sua maneira, em seu próprio benefício, para seus próprios propósitos. Cada nova obra sobre Kronstadt passa a ser seletivamente citada pelos trotskystas para apoiar seus argumentos, sempre desprezando a verdade. Podemos destacar duas obras, Kronstadt 1921 de Paul Avrich e Kronstadt 1917-21 de Israel Getzler, que, surrealisticamente, foram utilizadas pelos trostskystas para apoiar as conclusões bolshevikes quando, na realidade, elas concluem o oposto. A distorção de tais referências chega às raias do absurdo e mostra a natureza da mentalidade trotskysta.

Pierre Frank argumenta que a obra de Paul Avrich possui "conclusões" que são "similares às de Trotsky" e que "confirmam as alterações na composição das guarnições de  Kronstadt que se processaram durante a guerra civil, embora faça isso com algumas reservas" [Op. Cit., p. 25]. Basta uma rápida olhadela para estas reservas para a falsidade de Frank vir à tona. Vamos ler novamente esta passágem de Avrich:

"Não há qualquer dúvida de que durante os anos da Guerra Civil ocorreu uma grande rotatividade na Frota Báltica, e que muitos dos veteranos foram substituídos por recrutas dos distritos rurais  que trouxeram consigo o profundo sentimento de descontentamento do camponês russo. Em 1921, de acordo com dados oficiais, mais de tres-quartos dos marinheiros tinham origem camponesa, uma proporção substancialmente mais alta que em 1917 . . . Contudo isto não significa necessariamente que o comportamento padrão da frota tivesse sofrido alterações fundamentais. Pelo contrário, pelo que se pode observar tanto pela uso da técnica como da estatística. . ., o traço rebelde do campones que sempre prevaleceu entre os marinheiros. . . Na verdade, em 1905 e 1917 foram aqueles muitos jovens oriundos do interior que deram a Kronstadt sua reputação de cadeira quente do extremismo revolucionário. E através da Guerra Civil o povo de Kronstadt manteve sua independente e obstinada sina, difíceis de controlar e arredios em dar apoio ao governo. Foi por esta razão que muitos deles . . . acabaram transferidos para novos postos longíquos dos centros de poder bolshevike. Daqueles que permaneceram, muitos anelavam pela liberdade alcançada em 1917 antes do novo regime começar a estabelecer-se como ditadura do partido único através do país.

"Verdadeiramente, há pouca diferença entre os veteranos e os recrutas. Ambos em grande parte tiveram orígem camponesa . . . Não surpreende que quando a rebelião eclodiu, foram os velhos homens do mar, veteranos de muitos anos de serviço (datando em alguns casos de antes da Primeira Grande Guerra Mundial) que tomaram a iniciativa . . . Diante da maturidade e experiência, sem falar de sua profunda desilusão enquanto efetivos partícipes da revolução, era natural que esses marinheiros sazonais estivessem à frente do levante . . . Além disso, a proximidade de Petrogrado, com sua intensa vida intelectual e política, contribuiu para aguçar sua perspicácia política, fazendo com que muitos se engajassem em atividades revolucionárias durante o ano de 1917 e posteriormente. . ." [Op. Cit., p. 25].

Conforme verificamos, As "reservas" de Avrich são tais que deixam claro ele não chegou às mesmas conclusões que Trotsky com relação à atuação da classe trabalhadora de Kronstadt e, na verdade, isto é percebido pela orientação ideológica desta "explanação".

Contudo, o pior exemplo da deslealdade trotskysta para com a verdade é providenciada por John Rees. Essa evidente revisão de Rees afirmando que a "alteração" na "composição" dos marinheiros de Kronstadt "havia mudado" entre 1917 e 1921, em muito se assemelha ao método do general leninista quando ele se refere à revolução russa. Rees argumenta o seguinte:

"Em setembro e outubro de 1920 o escritor e conferencista do partido bolshevike Ieronymus Yasinksky foi até Kronstadt para dar uma preleção para 400 recrutas 'honrados pelo arado'. Yasinksky revelou-se chocado por encontrar tantos, 'inclusive uns poucos membros de partidos, iletrados politicamente, bem distantes daqueles veteranos marinheiros altamente politizados de Kronstadt que lhe impressionara tão produndamente no passado'. Yasinsky estava preocupado pela substituição daquele vigor de fogo revolucionário por aqueles 'inexperientes recem recrutados jovens marinheiros'". [p. 61]

Esta passágem é citada por Israel Getzler em Kronstadt 1917-1921. A narrativa de Rees é uma acabada versão da primeira metade do relatório de Yasinskys. Contudo, a passágem continua exatamente como vemos a seguir:

"Yasinsky estava apreensivo quanto ao futuro quando, 'cedo ou tarde, os marinheiros veteranos de Kronstadt, aquele vigor de fogo revolucionário, seriam substituído por aqueles inexperientes recem mobilizados jovens marinheiros'. Contudo ele estava esperançoso de que os marinheiros de Kronstadt gradualmente voltassem a ser possuídos por aquele ‘nobre espírito de dedicação revolucionária' tão caro à União Soviética. Mas ele se sentia tranquilizado 'pelo predomínio dos marinheiros vermelhos em Kronstadt'" [Op. Cit., p. 207].

Rees habilmente 'editou' aquela passágem de forma a parecer que, tres meses antes do levante, Kronstadt estava destituído de seu espírito revolucionário devido à substituição das tropas.

Rees tentou produzir "evidências de alteração na composição de classe". Todavia, acabou tropeçando em suas próprias contradições. Na página 61 ele expõe a composição do partido bolshevike em 1921 da seguinte forma: "28,7% camponeses, 41% trabalhadores e 30,8% colarinhos brancos e outros". Na página 66, todavia, ele descreve a composição no final da guerra civil (inclusive 1921), 10%  nas fábricas, 25% no exército e 60% no "governo ou na máquina do partido". Uma observação ao lado classifica também como trabalhadores aquela "maioria [que ocupava] postos de administração". Aqueles primeiros dados são os mais utilizados para atacar Kronstadt.

Qual é a base de Rees para suas "provas adicionais"? Simplesmente que em "setembro de 1920, seis meses antes da revolta, os bolshevikes tinham 4.435 membros em Kronstadt. Cerca de 50% deles eram camponeses [mais precisamente, de famílias camponesas], 40% trabalhadores e 10% intelectuais. . . . Este percentual de camponeses no partido era consideravelmente mais alto que o nacional. . . " [p. 61]. Assim, com base nessa asserção, ele conclui que "provavelmente" Trotsky estava correto!

Ora, vemos que essa "evidência" de mudança na composição de classes não tem utilidade alguma porque não estabelece comparações entre os bolshevikes em Kronstadt em 1917 e em 1921. Se Kronstadt sempre teve um alto percentual de camponeses em sua composição, conclui-se apenas que em 1917 o percentual de bolshevikes de orígem camponesa era mais alto que o normal.

Seria muito mais fácil para Rees informar seus leitores dos fatos reais relativos à alteração da composição da guarnição de Kronstadt. Ele poderia ter mencionado o trabalho de Getzler sobre esse tema, que demonstra que os navios de guerra Petropavlovsk e Sevastopol constituiram o miolo do levante.

Ele poderia, também, ter mencionado o resumo de Samuel Farber sobre as provas de Getzler (e outros). Em vez disso Rees erradamente afirma que Getzler "não observou os números da composição bolshevik" [Op. Cit., p. 62]. Mas o que Rees fez quando teve diante de si os números apropriados que revelavam a composição dos marinheiros? Veja o que Farber diz a respeito disso:

"esta interpretação é falha diante do análise histórica do crescimento e das lições proporcionadas pela Revolução Russa. . . . Na realidade, em 1921, uma pequena proporção de marinheiros de Kronstadt de origem social camponesa fazia parte das tropas do Exército Vermelho que apoiavam o governo . . . dados publicados recentemente revelam que a composição de classe nos navios e na base naval tinha provávelmente permanecido inalterada desde antes da Guerra Civil. Sabemos que as dificuldades provocadas pela guerra praticamente impediam o treinamento de novos contingentes para que se tornassem capacitados e habilitados nas técnicas requeridas para operar os navios ultra-modernos da frota russa. Houveram muito poucas substituições em Kronstadt. Exceto aquelas para substituir marinheiros mortos ou feridos. Assim, no final da Guerra Civil por volta de 1920, verificamos que nada menos que 93,9% dos membros das tripulações do Petropavlovsk e do Sevastopol . . . foram recrutados pela marinha antes e durante a revolução de 1917. Na realidade, 59% daquela tripulação entrou para a marinha nos anos 1914-16, ao passo que apenas 6,8% foram recrutados nos anos 1918-21. . . dos aproximadamente 10.000 recrutas admitidos para ser treinados para preencher as vagas na guarnição de Kronstadt, apenas pouco mais de 1.000 permaneceram até o fim de 1920, e aqueles que foram aceitos não foram para Kronstadt, mas para Petrogrado, onde continuaram o treinamento" [_Before Stalinism_, pp. 192-3].

E Rees ainda lamenta que Farber não notasse os números bolshevikes! Ora, hipóteses e conclusões "prováveis" que surgem de hipóteses seriam mais importantes que evidências? Rees ainda tenta salvar sua causa afirmando que a posição de Farber "só teria validade se considerássemos as estatísticas isoladamente. . . Particularmente, os marinheiros de Kronstadt haviam recebido licença pela primeira vez desde a guerra civil. Muitos retornaram para suas vilas e deram de cara com as condições no interior do país, como a situação enfrentada pelos camponeses com os destacamentos que lhes retirava o alimento". [p. 62]. Naturalmente, tal argumento nada tem a ver com a questão original de Rees. Não podemos esquecer que ele armentava, como Trotsky, que "a composição da guarnição havia se alterado" não sua composição política. Diante da esmagadora evidência contra sua causa, ele não apenas negou aqueles informes aos seus leitores, como fez alterações no argumento original!

Afinal, qual era seu argumento?
A revolta foi uma resposta à onda de greves em Petrogrado, não a uma revolta camponesa. Além disso, as exigências da revolta refletiam as exigências dos trabalhadores, não as exigências dos camponeses (o próprio Rees reconheceu que as exigências de Kronstadt não foram reproduzidas por nenhuma outra insurreição "camponesa"). Os aspectos políticos dessas idéias refletiram as tradições políticas de Kronstadt, que não foram, na essência, bolshevikes. Os marinheiros apoiaram o poder soviete em 1917, não o poder do partido, e eles novamente levantaram essa exigência em 1921 (veja a seção H.5.3 para detalhes). Em utras palavras, a composição política da guarnição foi a mesma de 1917.

Diante do fato de que a composição de classe dos marinheiros era similar em 1917 e 1921 e de que a tripulação era composta por veteranos de 1917, os trotskystas passaram a tropeçar em suas definições de classe, envolvendo a definição de uma específica posição política "proletária" (i.e. a política do bolshevismo). Passaram a argumentar que qualquer um que não subscrevesse sua posição seria um "pequeno-burguês" revelando sua posição real na sociedade (i.e. sua posição de classe).
 


H.5.9 A Kronstadt de 1921 diferia políticamente da Kronstadt de 1917?

Conforme ficou demonstrado na última seção, a composição de classe das guarnições não apenas permaneceram fundamentalmente inalteradas em 1921 como a vasta maioria de seus membros eram os mesmos de 1917. Todavia, em virtude da maioria dos leninistas confundirem seu "apoio ao partido" com o termo "política de classe" torna-se útil comparar a perspectiva política de Kronstadt em 1917 expressa na revolta de 1921. Conforme iremos demonstrar, as idéias políticas expressas em 1921 foram essencialmente as mesmas de 1917.

Primeiramente, temos que destacar que Kronstadt em 1917 nunca foi um baluarte bolshevike. Politicamente, o ambiente em Kronstadt era "fechado em torno da política Socialista Maximalista Revolucionária, uma dissidência à esquerda do partido SR e politicamente localizada entre as esquerdas SRs e os anarquistas". [Farber, Op. Cit., p. 194] Ela era dirigida por Anatolii Lamanov e segundo Getzler, "rejeitava a dissenção partidária" e "apoiava o sovietismo puro". Eles almejavam uma imediata revolução social agrária e urbana, exigindo uma "socialização do poder, da terra e das fábricas" a ser organizada por uma federação de sovietes baseada em eleições diretas e para aplicação imediata, como primeiro passo em direção ao socialismo. [Getzler, Op. Cit., p. 135] As semelhanças com anarquismo são evidentes.

No final de 1917, os bolshevikes não prevaleciam no soviete de Kronstadt. Pelo contrário, a maioria era formada por maximalistas, esquerdistas SRs e anarquistas. Foi apenas nas eleições de janeiro em 1918 que os bolshevikes melhoraram sua situação, passando de 96 para 139 deputados. Seu maior índice de votos alcançado durante a era dos sovietes multi-partidos representou apenas 46% do soviete. Naquela eleição os SRs pegaram 64 votos (21%), maximalistas (19), delegados sem partido (7%), 15 anarquistas (5%) e 6 menchevikes (2%). O soviete elegeu como presidente do soviete um esquerdista SR. Nas eleições de abril, os bolshevikes começaram a perder força. Apenas 53 bolshevikes foram eleitos (29%), ao passo que os maximalistas SR pegaram 41 vagas (22%), os esquerdistas SRs 39 (21%), os menshevikes internacionalistas 14 (8%), os anarquistas 10 (5%) e os delegados sem partido 24 (13%). [Gelzter, Op. Cit., p. 179, p. 183 and p. 186]

Na verdade, a influencia bolshevike em Kronstadt enfraqueceu tanto que em 18 de abril, o soviete Kronstadt denunciou (através uma moção) em 12 de abril por 81 votos a 57, o ataque dos bolshevikes contra os anarquistas em Moscou.

Era o "sovietismo", perspectiva política dominante em 1917  —  ou seja, todo poder para os sovietes e não para os partidos. Esta também foi a principal exigência do levante de 1921. Politicamente, Kronstadt não mudara desde 1917.

Além do soviete, haviam as "assembléias gerais em Anchor square, que ocorriam quase todo dia." [Avrich, Op. Cit., p. 57] O próprio soviete Kronstadt era constantemente pressionado pelos encontros de massa, geralmente celebrados na praça Anchor. Em 26 de maio de 1917, por exemplo, a grande multidão, inspirada por oradores bolshevikes e anarquistas, marchou para a Assembléia Naval e forçaram os líderes do soviete a cancelar um acordo celebrado com o soviete Petrogrado, mais moderado que Kronstadt.

Em fevereiro de 1921, os rebeldes de Kronstadt se reuniram na praça Anchor para aprovar a resolução Petropavlovsk — exatamente como aconteceu antes, em 1917, eles elegeram uma "conferência de delegados" para administrar as questões de Kronstadt. Em outras palavras, os marinheiros reintroduziram exatamente o mesmo modelo político praticado em 17.

As insinuações de que esses fatos indicam que a maioria dos marinheiros, soldados e trabalhadores em Kronstadt alteraram políticamente suas idéias são infundadas. Isto, por ironia, é confirmado por Trotsky.

A memória de Trotsky (que, acima de tudo, aparenta ser a base da maioria dos argumentos de seus seguidore) pregou-lhes uma peça. Ele declara que alí "estava não os menshevikes mas todo o Kronstadt". No que dizia respeito aos anarquistas, a "maioria" deles "representava a pequena burguesia da cidade e tinha um nível inferior aos SRs". As esquerdas SRs "tinha sua base na parte camponesa da frota e nas guarnições". Em suma, "nos dias da insurreição de outubro os bolshevikes constituiam menos da metade do soviete Kronstad. A maioria consistia de SRs e de anarquistas". [_Kronstadt_, p. 86]

Mesmo assim, vemos Trotsky argumentando que a maioria do "orgulho e glória" da revolução de 1917 fora eleita por grupos de "nível inferior" aos bolshevikes (quanto ao partido menshevike, Trotsky disse não existir alí!). Observando as políticas desses grupos, descobrimos uma estranha inconsistencia na validade das alegações de Trotsky.

No começo de 1918, por exemplo, "a população de trabalhadores de Kronstadt, após debater o assunto em muitos encontros, decidiu proceder a socialização dos locais de moradia. . . Um monstruoso encontro por fim instruiu muitos membros do soviete — esquerdistas Social-Revolucionários e anarco-sindicalistas — levantar essa questão na próxima sessão plenária [soviete]". Enquanto que os delegados bolshevikes tentavam postergar a decisão (argumentando no soviete que a decisão era muito importante e que precisava ser decidida pelo governo central) os "esquerdistas Social-Revolucionários, maximalistas e anarco-sindicalistas pediram uma discussão imediata e ganharam a votação". [Voline, The Unknown Revolution, pp. 460-1]

Isto afinava perfeitamente com o programa comunista-anarquista de socialização mas dificilmente era uma expressão de representantes da "pequena burguesia da cidade". Veja esta nota dos "representantes" da "pequena burguesia da cidade":

"Eu sou anarquista porque a sociedade contemporânea está dividida em duas classes opostas: os trabalhadores despojados e empobrecidos, os camponeses . . . e os homens ricos, reis e presidentes . . .

"Eu sou anarquista porque desprezo e detesto toda autoridade, pois toda autoridade é fundada na injustiça, na exploração e na coerção sobre a personalidade humana. A autoridade desumaniza o indivíduo e faz dele um escravo.

"Eu sou um oponente da propriedade privada quando ela é possuída por indivíduos capitalistas parasitas, pois a propriedade privada é um roubo.

". . .

"Eu sou anarquista porque creio apenas no poder criativo e independente do proletariado unido e não de líderes dos vários tipos de partidos políticos.

"Eu sou anarquista porque creio que a presente luta entre as classes apenas terá um fim quando as massas trabalhadoras, organizadas enquanto classe, alcancem seus próprios interesses e conquistem, através de uma violenta revolução social, todas as riquezas da terra . . . pela abolição de todas as instituições de governos e de autoridades, as classes oprimidas proclamarão uma sociedade de livres produtores . . . As próprias massas populares conduzirão seus assuntos de forma igualitária e comunal em suas comunidades livres". [N. Petrov, citado por Paul Avrich, Anarchists in the Russian Revolution, pp. 35-6]

Grande "pequena burguesia"! Claro que para Trotsky eles representavam a minoria dos "reais revolucionarios", aqueles "elementos mais estreitamente ligados aos bolshevikes", mas tal análise não pode ser levada a sério considerando a influência dos anarquistas em Kronstadt. [Op. Cit., p. 86] Por exemplo, um membro do Comitê de Petrogrado e o partido Helsingfors em 1917 lembrou que os anarquistas-comunistas exerciam grande influência em Kronstadt. Além disso, conforme o historiador Alexander Rabinowitch, eles possuiam uma "inegável capacidade de influenciar o curso dos eventos" e fez referência à "influência dos comnistas anarco-sindicalistas [de Kronstadt] sob Iarchuk". Na verdade, os anarquistas "exerceram um significante papel no desencadeamento do levante de julho" de 1917. [_Prelude to Revolution_, p. 62, p. 63, p. 187 e p. 138]

Um análise semelhante dos maximalistas revela como pensava e agia o povo de Kronstadt. Paul Avrich provê um resumo importante de suas políticas. Ele destaca que os maximalistas ocupavam "no espectro revolucionário uma posição entre os esquerdistas SRs e os anarquistas ao mesmo tempo que compartilhavam elementos de ambos". Eles "pregavam a doutrina da revolução total" e clamavam por uma "república soviética de trabalhadores" foundada em sovietes eleitos livremente, com um mínimo de autoridade estatal central:

"Politicamente, este foi o mesmo objetivo do povo de Kronstadt [em 1921], e 'Poder aos sovietes não aos partidos' originalmente foi uma contribuição maximalista". Economicamente, eles denunciaram o confisco de grãos e exigiram "todas as terras de volta aos camponeses". Na indústria eles rejeitaram a teoria e a prática bolshevike de "controle dos trabalhadores" por administradores burgueses em favor da "organização social da produção e sua sistemática direção por representantes de trabalhadores". Se opunham ao estado gestor nacionalista e centralizado em favor da socialização e auto-gestão da produção pelos trabalhadores. Não foi por acaso que "os SR maximalistas constituiam um grupo político fechado com os rebeldes em temperamento e pontos de vista". [Op. Cit., pp. 171-2] Isso pode ser constatado tanto na leitura da resolução Petropavlovsk como no jornal Izvestia de Kronstadt (veja No Gods, No Masters, vol. 2, pp. 183-204). Na verdade, "cada um dos pontos mais importantes do programa de Kronstadt, publicados pelo rebelde Izvestiia, coincidia com os defendidos pelos Maximalistas." [Avrich, Op. Cit., p. 171]

Como pode ser visto, os maximalistas estavam bem à frente dos bolshevikes. Eles defendiam o poder soviete, não o poder do partido. Eles defendiam a auto-gestão dos trabalhadores, não o capitalismo de estado dos bolshevikes.
Evidentemente, a visão política dos rebeldes de Kronstadt não se alterara dramaticamente. Altamente influenciados pelos anarquistas e semi-anarquistas em 1917, em 1921 as mesmas idéias políticas tomaram mais uma vez a dianteira, com marinheiros, soldados e civís se levantando para libertarem a si próprios da ditadura bolshevike formando uma "conferencia de delegados".

Pela lógica dos argumentos de Trotsky, os marinheiros de Kronstadt eram revolucionários simplesmente através das ações da minoria bolshevike, pois uma "revolução é 'feita' diretamente por uma minoria. O sucesso de uma revolução é possível, portanto, apenas onde essa minoria encontra mais ou menos apoio . . . por parte da maioria. A alteração nos diferentes estágios na revolução . . . é diretamente determinada pela mudança nas relações políticas entre a minoria e a maioria, entre a vanguarda e a classe". Esta é a razão da necessidade "da ditadura do proletariado" pois o nível das massas não pode ser "igual . . . extrema e altamente desenvolvido". [Op. Cit., p. 85 e p. 92]

Trotsky defendeu que a "composição política do soviete Kronstadt refletiu a composição da da guarnição e da frota". [Op. Cit., p. 86] Em outras palavras, com a vanguarda (minoria bolshevike) anulada, a maioria do povo de Kronstadt bateria em retirada pelos seus métodos menos desenvolvidos. Em outras palavras, se a composição política da revolta refletiu a composição da tripulação, pelas palavras de Trotsky isso significa que sua composição fora drásticamente alterada!

Da mesma forma, John Rees contradiz seu principal argumento ao mencionar que a "ideologia da guarnição de Kronstadt foi um fator" na revolta porque "em seus dias heróicos a guarnição teve um ar de ultra-esquerda". [Op. Cit., p. 62] Se, conforme ele sustentou, se tratasse de novos marinheiros, como é que teriam tempo para exercer influência pela sua ideologia, uma ideologia de marinheiros que ele afirmou não existir? E se os novos recrutas aos quais ele se refere foram influenciados pelos marinheiros de 1917 fica difícil sustentar que a revolta estava alienada do espírito de 1917.

Aqui surge uma questão interessante. Se é verdade que as revoluções são feitas por uma minoria que ganha o apoio da maioria, então o que acontece quando a maioria rejeita a vanguarda? Conforme indicado nas seções H.5.14 e H.5.15, Trotsky não receou prover a resposta — a ditadura do partido. Nesse aspecto ele apenas seguiu a lógica dos argumentos de Lênin. Em 1905, Lenin defendeu que (usando Engels como uma autoridade na qual se apoiava) "o princípio, 'apenas pela base' é um princípio anarquista". [Marx, Engels e Lenin, Anarchism and Anarcho-Syndicalism, p. 192] Para Lenin, os marxistas deveriam ser favoráveis às pressões "De cima tanto quanto as de baixo" e "renunciar pressionar também de cima é anarquismo". Segundo Lenin, "pressionar de cima é pressionar pelos cidadãos em um governo revolucionário. Pressionar de cima é pressionar pelo governo revolucionário nos cidadãos". [Op. Cit., p. 196 e pp. 189-90]

Kronstadt revela que a "pressão de cima" teve um grande desprezo pela "pressão de baixo". Em outras palavras, a semente da ditadura bolshevike e a repressão de Kronstadt repousa nos argumentos de Trotsky e em argumentos como estes. (veja seções H.5.5 e H.5.12 para mais detalhes).

Em têrmos simples, as evidências revelam que as idéias políticas dominantes em Kronstadt, como as próprias pessoas, não mudaram. A revolta de 1921 refletiu as políticas e aspirações daqueles que participaram ativamente em 1917. Aqueles que fizeram de Kronstadt "orgulho e glória" da revolução e, que quatro anos depois, tornaram-se um perigo para os bolshevikes.
 
 


H.5.10 Por que os trabalhadores de Petrogrado não apoiaram  Kronstadt?

Para os trotskystas, a inação dos trabalhadores de Petrogrado durante a revolta é um fator significante por revelar sua característica "base camponesa". Trotsky, por exemplo, argumentou que do "ponto de vista de classe" é "extremamente importante comparar o comportamento de Kronstadt com Petrogrado naqueles dias críticos". Ele defende que "o levante não atraíu os trabalhadores de Petrogrado. Foi repelido por eles. A estratificação prossegue ao longo da linha de classe. Os trabalhadores imediatamente sentiram que os amotinados de Kronstadt se posicionaram do lado oposto das barricadas — e apoiaram o poder soviete. O isolamento político de Kronstadt foi a causa de sua vacilação interna e de sua fraqueza militar". [Lenin and Trotsky, Kronstadt, pp. 90-1]

É desnecessário dizer que estes argumentos de Trotsky deixam muito a desejar. Por exemplo, ele falha em mencionar (usando as palavras de Victor Serge — veja seção H.5.X) que o estado e a imprensa comunista "positivamente se constituíram um frenesi de mentiras". A campanha de rádio e jornal dirigida contra Kronstadt dizia que a revolta fora organizada por espiões estrangeiros sob a liderança de generais ex-czaristas. Tal fato, naturalmente, alienou muitos trabalhadores em Petrogrado. Duas centenas de emissários foram enviados de Kronstadt para divulgar suas reivindicações mas apenas uns poucos conseguiram evitar de ser presos. [Avrich, Op. Cit., p. 140] Como vemos, os bolshevikes prevaleceram em sua propaganda de guerra com suas mentiras.

Em 5 de março o Comitê de Defesa de Petrogrado convocou os insurgentes, pedindo rendição. Veja os termos:

"Vocês estão narrando um conto de fadas quando dizem que Petrogrado está com vocês ou que a Ukrania os apóia. São mentiras impertinentes. O último marinheiro em Petrogrado abandonou vocês quando percebeu que eram conduzidos por generais como Kozlovskv. A Sibéria e a Ukrania apóia a poder Soviético. A Petrogrado Vermelha dá gargalhadas devido a seus miseráveis esforços em ajudar as guardas brancas e os socialistas revolucionários". [cited by Mett, Op. Cit., p. 50]

Os insurgentes em Petrogrado não forneceram apoio ativo nem por parte dos trabalhadores nem dos marinheiros. O Partido colocou para funcionar sua máquina de propaganda para desmoralizar, mentir sobre a revolta e aqueles que tomaram parte nela. O governo também dedicou uma "cuidadosa atenção" aos "trens de Petrogrado nas principais estações em direção a Kronstadt para evitar qualquer contato com os insurgentes". [Avrich, Op. Cit., p. 141] Previsivelmente, sob tais circunstancias muitos trabalhadores e marinheiros relutaram em apoiar Kronstadt. Isolados da revolta, os trabalhadores de Petrogrado foram cobertos de propaganda oficial (i.e. mentiras) e rumores sem qualquer base verídica.

Contudo, esta não foi a única razão da ausência de um apoio efetivo. Outro fator, naturalmente, foi a repressão do estado. Emma Goldman relata a situação de Petrogrado daqueles dias:

"Foi imposto um excepcional estado de lei marcial em todas as províncias de Petrogrado, e ninguém, exceto os oficiais com passes especiais, poderia deixar a cidade. A imprensa bolshevike lançou uma campanha de calúnias e difamação contra Kronstadt, anunciando que os marinheiros e soldados tinham feito uma aliança com o 'general czarista Kozlovsky'; e por causa disso o povo de Kronstadt foi declarado fora da lei". [_No Gods, No Masters_, vol. 2, p. 171]

Como ninguém sabia o que aconteceria com todo aquele povo proscrito pelos bolshevikes, surpreende o fato dos trabalhadores de Petrogrado (mesmo se soubessem eles também estavam sob ameaça) não terem agido? Contudo, conforme Ida Mett reporta parte do proletariado de Petrogrado continuou em greve mesmo durante os eventos de Kronstadt, "em 7 de março os trabalhadores organizaram um grande encontro (o dia do início do bombardeio a Kronstadt). Este encontro adotou uma resolução dos marinheiros amotinados! Ele elegeu uma comissão que iria de fábrica em fábrica chamando por uma greve geral". [Op. Cit., p. 52]

As greves se espalharam pelas maiores fábricas de Petrogrado: Poutilov, Baltisky, Oboukhov, Nievskaia Manoufactura, etc. Contudo, os bolshevikes agiram rapidamente fechando algumas fábricas e iniciaram um recadastramento de trabalhadores. Para os trabalhadores, ser demitido significava ser "automaticamente privado de suas rações". [Avrich, Op. Cit., p. 41]

Apenas em 22 de março foi finalmente revogado o estado de sítio.

Naquelas circunstancias, surpreende os trabalhadores de Petrogrado não terem se juntado à rebelião?

Além do mais, os trabalhadores de Petrogrado estavam começando a experimentar o poder do estado bolshevike. Conforme notamos na seção H.5.3, os eventos em Kronstadt foram em solidariedade à onda de greves em Petrogrado desde o fim de fevereiro. Foi quando os bolshevikes passaram a reprimir os trabalhadores com "prisões, uso de patrulhas armadas nas ruas e nas fábricas, e a demissão e o cadastramento de trabalhadores temporários". [Op. Cit., p. 409]

O triunvirato recem-formado que compunha o Comitê de Defesa encabeçado por Zinoviev "proclamou lei marcial" em 24 de fevereiro (posteriormente foram "investidos com poder absoluto através de toda provincia" em 3 de março). [Avrich, Op. Cit., p. 39 e p. 142] Como parte desse processo, eles confiaram ao kursanty (cadetes comunistas) o papel de guarnição local. Pegos no calor da batalha eram forçados a cumprir as órdens governamentais. Centenas de kursanty foram chamados pelas academias militares da vizinhança para patrulhar a cidade. "Durante a noite Petrogrado tornava-se um campo de guerra. Em cada quarteirão os pedestres eram parados e tinham seus documentos checados . . . o toque de recolher foi imposto pela força". A Checa de Petrogrado multiplicou as prisões. [Avrich, Op. Cit., pp. 46-7]

Além disso, os bolshevikes intensificaram sua propaganda dirigida e passaram a distribuir seus jornais fazendo uso de membros populares do partido que agitavam de pelas ruas, fábricas e oficinas. Fizeram isso fornecendo uma série de concessões tipo uma quantidade extra de rações. Em 1 de março (depois do início da revolta de Kronstadt) o soviete Petrogrado exigiu a remoção de todos os bloqueios nas estradas e a desmobilização dos soldados do Exército Vermelho para assumirem suas obrigações em Petrogrado. [Avrich, Op. Cit., pp. 48-9]

Como pode ser visto, Trotsky insulta a inteligencia de seus leitores quando diz que a ausência de apoio de Petrogrado para Kronstadt refletiu uma "linha classista". Ida Mett declara o óbvio:

"Aqui novamente Trotsky está dizendo coisas que são inteiramente falsas. Primeiramente estava patente que a onda de greves tinha começado em Petrogrado e que Kronstadt imediatamente deu seu apoio. E foi contra as greves de Petrogrado que o governo formou um grupo especial de elite militar: O Comitê de Defesa. A repressão foi primeiramente dirigida contra os trabalhadores de Petrogrado e contra suas manifestações, pelo envio dos destacamentos armados de Koursantys.

"Mas os trabalhadores de Petrogrado não tinham nenhum armamento. Eles não poderiam defender a si mesmos como os marinheiros de Kronstadt. A repressão militar dirigida contra Kronstadt certamente intimidou os trabalhadores de Petrogrado. Não houve qualquer demarcação 'ao longo da linha de classe', o que prevaleceu mesmo foi a força dos órgãos de repressão. O fato dos trabalhadores de Petrogrado não seguirem seus companheiros de Kronstadt não prova que não simpatizavam com eles. Nem mesmo, no último momento, quando o proletariado russo falhou . . .  provou que eles concordavam com Stalin! Em tais instantes o que falava mais alto era o poder e o confronto de forças". [Op. Cit., p. 73]

Assim, diferentemente dos marinheiros de Kronstadt os trabalhadores de Petrogrado não tinham armas e não poderiam tomar parte em uma "revolta armada" contra o bem armado Exército Vermelho, naquelas circunstancias o máximo que poderiam fazer era exercer um papel enquanto grevistas. Os líderes comunistas reconheceram este perigo, tanto que as tropas indignas de confiança foram confinadas em seus acampamentos e no lugar das tropas regulares providenciaram o kursanty (eles tinham óbviamente aprendido as lições da revolução de 17 de fevereiro!). Finalmente, a cidade cede "apaziguada por concessões e pela presença de tropas". [Avrich, Op. Cit., p. 200]

Não foi apenas desta vez que Trotsky confundiu força com classe. Em sua infame obra Communism and Terrorism ele defendeu a realidade da ditadura do Partido Comunista (i.e. "ter substituido a ditadura dos Sovietes pela ditadura de nosso partido"). Ele argumenta que "pode ser dito com completa justiça que a ditadura dos Sovietes tornou-se possível apenas através da ditadura do partido" quando o "poder do partido" substituiu o poder da classe trabalhadora. O partido "proporciona aos Sovietes a possibilidade de sair da condição de parlamento disforme de trabalhadores para transformar-se em aparato da supremacia do trabalho". Ele continua argumentando:

"Mas onde está nossa garantia, certos homens sábios nos perguntam, se é justamente nosso partido que expressa os interesses do desenvolvimento histórico? Destruindo ou dirigindo secretamente os outros partidos, você se vê livre de competições políticas, e consequentemente você priva a si mesmo da possibilidade de testar sua linha de ação.

"Esta idéia é ditada por uma concepção puramente liberal do curso da revolução. Em um período em que todo antagonismo assume uma característica aberta, a força política rápidamente passa para uma guerra civil, o partido dirigente tem suficiente suporte material para testar sua linha de ação. Sem a possibilidade de circulação dos jornais menshevikes. Noske esmaga os comunistas, mas eles crescem. Nós acabamos com os menshevikes e os SRs -- e eles desapareceram. Este critério é suficiente para nós". [_Communism and Terrorism_]

Um critério interessante, para dizer o máximo. Essa errônea lógica que expõe com relação a Petrogrado e Kronstadt tem uma longa história. Por esta mesma lógica Hitler expressou os "interesses do desenvolvimento histórico" quando os comunistas alemães e os trotskystas "desapareceram" em desabalada carreira para salvar seus trazeiros. Similarmente, o número de trotskystas na Rússia "desapareceram" sob Stalin. Dizer isso é uma justificação do stalinismo? Tudo isso prova apenas e tão somente o poder de um sistema repressivo — aquela passividade dos trabalhadores de Petrogrado durante a revolta de Kronstadt tem a ver com o poder do regime bolshevike e não com a base classista da revolta.

O hábito trostkysta de reescrever a história pode ser visto na "Introdução" da obra Kronstadt. Ele decide citar a obra de Paul Avrich (após, naturalmente, assinalar que Avrich "não é nem Bolshevike nem Trotskyista" o que torna "sua posição política obscura"). Frank declara que Avrich "faz seu trabalho conscientemente, sem saltar sobre os fatos". É uma vergonha que o mesmo não possa ser dito de Frank! Frank diz que Avrich "discute as greves em Petrogrado que precederam Kronstadt e chega à seguinte conclusão":

"os bolshevikes, com todas suas falhas, foram a mais efetiva barreira contra a ressurgencia branca e a queda da revolução".

Por essas razões, as greves em Petrogrado estavam fadadas a uma breve existencia. Na verdade, elas terminaram tão rápido quanto começaram, nunca chegariam ao ponto de uma revolta armada contra o regime". [Lenin and Trotsky, Op. Cit., pp. 24-35]

Este "além disso" no primeiro parágrafo prepara o caminho para o que virá pela frente. Avrich relaciona mais algumas razões que não constam na lista de Frank. Aqui está o que Avrich realmente lista como as razões para o fim da onda de greves:

"após muitos dias de tensa agitação, os disturbios de Petrogrado enfraqueceram . . . As concessões cumpriram sua tarefa, mais do que qualquer coisa foram a fome e o frio que mais estimulou a alienação popular. Ninguém pode negar que a aplicação das forças militares e das prisões em massa, sem falar na incansável onda de propaganda pelas autoridades foram indispensáveis para restaurar a ordem. Particularmente marcante nesse aspecto foi a disciplina mostrada pela organização do partido local. Deixando de lado suas disputas internas, os bolshevikes de Petrogrado deram-se as mãos e dedicaram-se a triste tarefa de reprimir com eficiência e presteza . . .

"Assim, portanto, o colapso do movimento não viria sem a completa desmoralização dos habitantes de Petrogrado. Os trabalhadores estavam simplesmente exauridos demais para continuarem sustentando suas atividades políticas . . . Além disso, eles careciam de uma liderança efetiva e de um coerente programa de ação. No passado eles haviam sido supridos por uma intelligentsia radical . . . por si próprios não tinham qualquer condição de proporcionar aos demais companheiros trabalhadores algum tipo de ajuda, nem mesmo uma direção ativa . . . eles agora se sentiam por demais fatigados e aterrorizados . . . para levantar suas vozes em protesto. Com a maior parte de seus camaradas na prisão ou no exílio, e alguns já executados, os poucos sobreviventes corriam o risco de sofrerem o mesmo, especialmente quando as desvantágens contra eles eram tão irresistíveis e quando o mais desprezível protesto poderia privar seus familiares de suas rações. Para muitos intelectuais e trabalhadores, portanto, os bolshevikes, com todas suas falhas, foram a mais efetiva barreira contra a ressurgencia branca e a queda da revolução.

"Por essas razões, as greves em Petrogrado estavam fadadas a uma breve existencia. Na verdade, elas terminaram tão rápido quanto começaram, nunca chegariam ao ponto de uma revolta armada contra o regime". [Paul Avrich, Kronstadt, pp. 49-51]

Como pode ser visto, Frank "salta" a maioria dos argumentos de Avrich e a base de suas conclusões. Na verdade, aquilo que Frank chama de "conclusão" de Avrich não pode ser compreendida como, conforme Frank faz, a última razão que Avrich dá para ela.

A desonestidade é clara, proposital e repetida.

Conforme pode ser visto, qualquer tentativa de usar a relativa inação dos trabalhadores de Petrogrado como evidência  da natureza classista da revolta só pode ser feita ignorando todos os fatos relevantes da situação. Isto pode ser feito selecionando citações de passágens acadêmicas para apresentar uma conclusão radicalmente falsa e diferente daquela que o autor apresentou.
 


H.5.11 Qual a ameaça os brancos representavam durante a revolta de Kronstadt?

A ausencia de intervenção estrangeira durante a revolta de Kronstadt sugere mais que apenas o fato de que a revolta não foi uma "conspiração branca". Ela também mostra que as forças brancas não tinham como tirar proveito da rebelião nem mesmo como apoiá-la.

Isto é significante simplesmente porque os bolshevikes e seus defensores defendem que a revolta tinha que ser reprimida simplesmente porque o Estado Soviético estava em perigo pela intervenção branca e/ou estrangeira. Havia mesmo este perigo? De acordo com John Rees, bastante:

"Os brancos, embora com seus exércitos derrotados no campo, não estavam extintos — como revelou o levante dos emigrantes de Kronstadt . . . Eles planejaram um levante em Kronstadt e o Centro Nacional Branco arrecadou um total próximo a 1 milhão de francos franceses, 2 milhões de marcos finlandeses, £5000, $25,000 e 900 tonelas de provisões em apenas duas semanas; Na verdade, o Centro Nacional já planejava mobilizar forças da marinha francesa e do general Wrangel, que tinha sob seu comando 70.000 homens na Turkia, para desembarcar em Kronstadt se a revolta fosse bem sucedida". [Op. Cit., pp. 63-4]

Para sustentar seus argumentos, Rees novamente apela para o livro de Paul Avrich. Nós, novamente, consultamos aquela obra para verificar esse argumento. Primeiramente, observamos que Petrichenko contatou Grimm pela "fome em Kronstadt . . . crescer desesperadamente". [Avrich, Op. Cit., p. 121] Se a revolta tivesse se alastrado por Petrogrado com a adesão dos trabalhadores, tais pedidos teriam sido desnecessários. O isolamento não ocorreu devido "à realidade do balanceamento das forças de classe" ele ocorreu pela realidade das forças coercitivas — o sucesso dos bolshevikes em reprimir as greves de Petrogrado e difamarar a revolta de Kronstadt (veja seção H.5.5).

Em segundo lugar, conforme dito acima, a revolta de Kronstadt explodiu meses após o fim da Guerra Civil na Rússia Ocidental. Wrangel fugiu da Crimea em novembro de 1920. No começo de 1921 os bolsheviques já não temiam uma invasão branca tanto que desmobilizaram metade do Exército Vermelho (cerca de 2.500.000 homens). [Paul Avrich, Op. Cit., p. 13]

Em terceiro lugar, os emigrantes russos "permaneciam divididos e inertes, com nenhuma perspectiva de cooperação em vista". No que se refere a Wrangel, o último dos generais brancos, suas forças não tinham qualquer condição de retomar a Rússia. Suas tropas estavam "dispersas e sua moral estava baixa" e levaria "meses . . . só para mobilizar seus homens e transportá-los do Mediterrâneo para o Báltico". Um segundo front no sul "certamente resultaria em um desastre:" [Paul Avrich, Op. Cit., p. 219] Na verdade, em um relatório divulgado pelo Comitê de Defesa de Petrogrado, encontramos o seguinte: "Vocês não ouviram sobre o que aconteceu com os homens de Wrangel? Eles foram transportados para Constantinopla. Eles estão morrendo como moscas, aos milhares, de fome e doenças". E continuava "é isto que espera por vocês, a menos que vocês imediatamente compreendam por vocês mesmos". [citado por Mett, Op. Cit., p. 50]

Claramente, o perspectiva de uma invasão branca era remota. Isto descarta a possibilidade de uma reação czarista. Veja o que Avrich diz a respeito:

"Em vez de retomar uma política de intervenção na Guerra Civil, tornou-se surdo a esses apelos. Fora seus esforços na campanha para levantamento de fundos, os emigrantes procuravam ajuda de Entene. . . do governo dos Estados Unidos. As perspectivas de ajuda britânica eram precárias . . . A maior esperança de ajuda estrangeira vinha da França . . . [mas] a França recusava-se interferir tanto política como militarmente na crise". [Op. Cit., pp. 117-9]

Além disso, esses governos tinham que levar em conta a classe trabalhadora de seus países. Era duvidoso que depois de todos aqueles anos de guerra, fossem capazes de interferir, particularmente quando havia uma clara revolta socialista se desenvolvendo a partir das bases. A classe trabalhadora, em tal situação, teria impedido uma intervenção.

O único perigo real para o poder bolshevike era interno — representado pelas exigências dos trabalhadores e camponeses. Alguns dos ex-soldados pretendiam se unir às forças guerrilheiras camponesas, enfrentando os repressivos (e contra produtivos) esquadrões de confisco de mantimentos. Na Ukrania, os bolshevikes estavam enfrentando os remanecentes do exército Mackhovista (uma iniciativa, incidentalmente, tomada pelos próprios bolshevikes traindo os acordos feitos com as forças anarquistas que passaram a ser atacadas assim que Wrangel fora derrotado).

Na verdade, em sua análise do "balanço das forças de classe", Rees falha em mencionar qual classe detinha o poder real (e privilégios) na Rússia daquele tempo — o estado e a burocracia do partido. A classe trabalhadora e os camponeses estavam oficialmente enfraquecidos. A única influência que exerceram nesse "estado dos trabalhadores" foi quando se rebelaram, forçando o estado a fazer concessões ou a reprimi-los (algumas vezes ambos aconteceram). A balança das forças de classe estava entre os trabalhadores e os camponeses por um lado e a burocracia governante por outro. Ignorar este fator significa não compreender os problemas enfrentados pela revolução.

E, naturalmente, Rees reduz a revolta de Kronstadt e sua "ideologia" a apenas uma pessoa (Petrichenko). Podemos avaliar o bolshevismo com este método? Ou o Socialismo Italiano? É inegável que algumas figuras que influenciaram ambos os movimentos acabaram fazendo contatos e ligações com organizações (e movimentos que se espalharam depois) extremamente suspeitas às quais passaram a se opor posteriormente. Qual a relação disso com a natureza das atividades promovidas mais tarde por pessoas como Stalin e Mussolini? Há algum conteúdo revolucionário na natureza de tais indivíduos ou de tais atitudes? Claro que não. Na verdade, Rees com seu artigo tenta defender que foram mais as circunstancias objetivas do que o boshevismo que conduziram ao stalinismo. E no que diz respeito a Kronstadt, ele prefere se concentrar em apenas um indivíduo. Ida Meet fala da perspectiva burguesa dominante no bolshevismo:

"O desenrolar da história do socialismo é muitas vezes apenas a imágem espelhada da historiografia burguesa. A implantação de métodos de pensar tipicamente burgueses nos movimentos da classe trabalhadora. Um universo infestado de líderes 'históricos' que substituem reis e rainhas do mundo burguês . . . [onde] as massas nunca aparecem fazendo sua própria história de forma independente no estágio histórico. [Dentro dessa perspectiva burguesa] o melhor que podem fazer é apenas 'apoiar o esforço', enquanto outros dirigem a locomotiva, como Stalin tão delicadamente sabia fazer . . . Esta tendência de identificar a história da classe trabalhadora com a história de suas organizações, instituições e líderes não é apenas inadequada — mas também reflete uma típica visão burguesa da humanidade, dividida geralmente em formas pré-ordenadas onde poucos administram e decidem, enquanto que muitos, a massa maleável, [torna-se] incapaz de agir conscientemente em torno de seus próprios interesses . . . A maior parte da história da degeneração da Revolução Russa segue nessa direção". ["Solidarity’s Preface" por Ida Mett, The Kronstadt Uprising, pp. 18-9]

Diante do slogan chave levantado pelo povo de Kronstadt (pediam todo poder aos sovietes e não para os partidos, que Rees distorceu para "sovietes sem partidos") é difícil concordar com Rees de que sem a ditadura dos bolshevikes os brancos inevitavelmente tomariam o poder. Afinal das contas, os encontros de Kronstadt possuiam terço de delegados comunistas.

Além disso, a lógica do argumento de Rees tem um duplo sentido. Ele defende, por um lado, que os bolshevikes representam a "ditadura do proletariado". Por outro, ele defende que nas eleições dos sovietes livres os bolshevikes seriam substituídos por "socialistas moderados" (e eventualmente os brancos). Em outras palavras, isso significa que os bolshevikes, na verdade, não representavam a classe trabalhadora russa e sua ditadura foi sobre o proletariado e não do proletariado. O argumento básico de Rees, portanto, é falho. Rees e seus amigos trotskystas, na verdade, querem nos fazer crer que a ditadura não se tornou corrupta e burocrática, mas que ela poderia funcionar no interesse de seus súditos e, portanto, reformar-se a si mesma. Ao passo que qualifica o povo de Kronstadt de "utopicos"!
 
 


H.5.12 O país estava mesmo por demais exaurido para consentir a democracia soviete?

Os trotskystas, geralmente, apresentam duas principais desculpas para justificar a repressão à revolta de Kronstadt. A principal desculpa é dizer que a guarnição em 1921 não tinha a mesma composição de classe de 1917. O que significa dizer que a revolta de 1921 foi a expressão de uma contra-revolução camponesa, logo tinha que ser destruída. Conforme indicamos anteriormente, em primeiro lugar, a guarnição em 1921 foi essencialmente a mesma de 1917 (veja seção H.5.8). Em segundo lugar, já mostramos como as idéias políticas expressas em seu programa foram as mesmas de 1917 (veja seção H.5.9). Em terceiro lugar, seu programa teve os mesmos pontos que as resoluções das greves em Petrogrado. Na verdade, em muitos aspectos, os rebeldes de Kronstadt foram ainda mais socialistas por darem mais ênfase à democracia soviete do que à assembléia constituinte (veja seção H.5.2).

A segunda desculpa, é de que o país estava muito exaurido e a classe trabalhadora dizimada. Diante de tais circunstancias, as condições objetivas tornaram impossível a democracia soviete. O trotskista Pat Stack da SWP britânica defende esta abordagem. Vejamos o que ele alega:

"O repúdio à importancia da realidade material em ocorrencias como o levante de Kronstadt em 1921 contra o governo bolshevike na Rússia, transforma tais eventos em um muro de lamentações. O revolucionário Victor Serge que não foi um crítico indiscriminado da ação bolshevike no levante, revelou desdém pelas afirmações anarquistas quando menciona coisas como '. . . a terceira revolução como costuma ser chamada por certos anarquistas de cabeças de estufadas por ilusões infantís'.

"Esta terceira revolução, conforme argumentam, seguiu-se à primeira em fevereiro de 1917 e à segunda em outubro. A segunda caracterizou-se por varrer qualquer tentativa de criar o poder capitalista, deu terra aos camponeses e retirou a Rússia da horrível carnificina imperialista da Primeira Grande Guerra. A revolução introduziu um imenso programa de alfabetização, outorgou direitos de aborto às mulheres, introduziu o divórcio e concedeu direitos de auto-determinação às várias repúblicas russas. Tudo isso foi feito, em oposição à uma sangrenta e horrenda guerra civil através da qual a velha ordem tentava reconquistar o poder. Sessenta poderosos imperialistas enviaram exércitos contra o regime, e forçaram um embargo comercial.

"A realidade de tais ações causou um grande sofrimento por toda a Rússia. O regime ficou privado de matérias primas e combustivel, as redes de transporte foram destruídas, e começou a faltar alimento nas cidades. Em 1919 o regime tinha apenas 10% do combustível disponível de 1917, e a produção de minério de ferro no mesmo ano chegou a l,6% dos níveis de 1914. Em 1921 Petrogrado perdera 57% de sua população e Moscou 44,5%. Os trabalhadores quando não estavam mortos na linha de frente da guerra civil, perambulavam famintos pela cidade. Aquela força que tornara a revolução possível fora dizimada. . .

"O regime na Rússia tinha diante de si duas alternativas, ou esmagar o levante e salvar a revolução, ou render-se ao levante e proporcionar às forças da reação marchar sob sua retaguarda. Não havia nenhuma base material para uma terceira opção. Uma economia e infraestrutura destroçados, uma população pressionada pela fome e pela guerra sangrenta, e um mundo hostil que não possibilitava nenhum avanço à revolução. Grandes esforços foram feitos para resolver estes problemas. Não havia nenhuma solução de última hora e era crucial preservar o regime revolucionário. Soluções reais de emergência seriam encontradas apenas se a revolução se espalhasse internacionalmente, mas até lá para ter alguma chance de sucesso o regime teria que sobreviver. Apenas a direita e o poder imperialista se beneficiariam desta destruição". ["Anarchy in the UK?", Socialist Review, no. 246, novembro 2000]

A despeito das afirmações de Stack, os anarquistas tinham e tem uma perfeita consciência dos problemas enfrentados pela revolução. Alexander Berkman (que estava em Petrogrado naquele tempo) comentou estes "longos anos de guerra, revolução, e guerra civil" que "que sangraram a Russia à exaustão e que levaram seu povo à beira do desespero". [_The Kronstadt Rebellion_] Como cada trabalhador, marinheiro e soldado na Rússia, os anarquistas sabiam (e sabem) que a reconstrução não seria feita "de última hora". O povo de Kronstadt sabia muito bem destes problemas, veja essa passagem no jornal Isvestia:

"Camaradas e cidadãos, nosso país está passando por momentos difíceis. Por tres anos seguidos, a fome, o frio e o caos econômico nos cercaram como um firme alçapão. O Partido Comunista que governa o país está alienado das massas e provou sua incompetência em resgatá-la deste estado de ruína generalizada . . . Todos os trabalhadores, marinheiros e soldados hoje podem claramente ver que apenas esforços concentrados, apenas uma determinação concentrada das pessoas pode permitir ao país alimento, madeira e carvão, pode vestir e calçar o povo e resgatar a República do impasse em que se encontra". [citado em No Gods, No Masters, vol. 2, p. 183]

Mais tarde destaca que a "nova revolução será a alvorada das massas trabalhadoras do Oriente e do Ocidente. Isso proporcionará um exemplo de sadia construção socialista oposta à mecânica da construção 'comunista' governamental". [Op. Cit., p. 194] No Kronstadt Isvestia de 8 de março lia-se:

"No que diz respeito a Kronstadt sua pedra fundamental esta escorada na Terceira Revolução. Estas muralhas quebrarão definitivamente as cadeias que prendem as massas trabalhadoras e abrirá novos caminhos para a criação socialista". [citado por Ida Mett, Op. Cit., p. 80]

A experiência da revolta proporciona evidências de que esta análise estava longe de se constituir numa "utopia". O último clamor de Kronstadt foi marcado pelo "entusiasmo" de seus habitantes, pelo seu renovado senso de propósito e missão. Avrich argumenta que por um "repentinamente Kronstadt foi sacudida de sua languidês e desespero". [Op. Cit., p. 159] Os marinheiros, soldados e civis movimentavam seus delegados, reorganizavam seus sindicatos e daí por diante. A liberdade e a democracia soviete permitiram às massas começar a reconstruir sua sociedade e elas aproveitaram essa oportunidade. A confiança do povo de Kronstadt na "democracia direta das massas e nas pessoas comuns do povo dirigindo seus sovietes livres" tornou-se patente pela resposta do povo de Kronstadt. Tudo indicava que uma política similar era implementada pelos trabalhadores que começavam a se organizar para uma greve geral. As manifestações e protestos que pipocavam por todos os centros industriais através da Russia foram uma forte indicação de que esta reconstrução não era impossível nem estava condenada ao fracasso.

Na verdade, esta onda de greves refuta a alegação de Stack de que "Os trabalhadores quando não estavam mortos na linha de frente da guerra civil, perambulavam famintos pela cidade. Aquela força que tornara a revolução possível estava dizimada". Evidentemente, um considerável percentual de trabalhadores estava trabalhando e não morto no front ou perambulando pelas cidades. Conforme discutiremos abaixo, aproximadamente um terço dos trabalhadores das fábricas permaneceram em Petrogrado enquanto que a população trabalhadora urbana de toda a Rússia reduziu-se a menos de 50%. [Avrich, Op. Cit., p. 24] Em outras palavras, a classe trabalhadora permanecia viva e capaz de organizar a si própria organizando greves e preparando encontros. O fato, naturalmente, é que a maioria daqueles que compunham a classe trabalhadora não tinham eleito os comunistas através de eleições em sovietes livres. Tais considerações políticas tem que ser levadas em conta diante dos argumentos de Stack.

Stack também falha, de forma incrível, não mencionando o poder e os privilégios da burocracia daquele tempo. Funcionarios públicos usufruiam da melhor comida, casa e daí por diante. A ausência de um controle ou influência efetivos da base fazia com que a corrupção tomasse conta e se espalhasse por toda parte. Um dos líderes da oposição dos trabalhadores explica como as coisas funcionavam naquele tempo:

"O povo simples trabalhador vê tudo. Enchergam longe . . . vêem como na escala de valores da política do governo eles ocupam o último lugar . . . Todos nós sabemos que os problemas domésticos não podem ser resolvidos em poucos meses, ou mesmo anos, e que devido à nossa pobreza, não se chega a nenhuma solução sem que antes enfrentemos sérias dificuldades. Mas o fato do contínuo aumento das desigualdades entre os grupos privilegiados da população da Rússia Soviética e o restante do povo comum da classe trabalhadora, 'a viga-mestra da ditadura', provoca e alimenta a insatisfação.

"O povo simples trabalhador vê como o funcionário público Soviético vive e como o homem comum vive. Como o homem prático vive e como o funcionário público vive . . . [Alguém pode dizer] 'Não podemos atender a todos; agradeça por não estar no front militar'. Quando é necessário fazer reparos nas casas ocupadas pelas instituições soviéticas, eles são capazes de encontrar [prontamente] tanto o material como a mão de obra". [Alexandra Kollontai, The Workers’ Opposition, p. 10]

E tudo isso acontecia sob a aspereza das condições materiais enfrentadas pela Rússia naquele tempo, sem falar na burocracia que se aproveitava de sua posição para tomar recursos para si. Na verdade, parte dos fatores que resultaram em Kronstadt foram devidos "a privilégios e abusos de comissários, funcionários do partido e funcionários dos sindicatos que recebiam rações especiais, privilégios e casas". [Getzler, Op. Cit., p. 210] Stack também falha quando além de não mencionar estas coisas ainda insiste na necessidade de defender um "estado de trabalhadores" no qual os trabalhadores são desprovidos de poder e onde proliferam os abusos. Se alguém está desligado da realidade, é ele mesmo! Ciliga escreveu:

"O Governo Soviético e a alta esfera do Partido Comunista aplicaram suas próprias soluções [para os problemas enfrentados pela revolução] aumentando o poder da burocracia. As atribuições dos sovietes foram assumidas pelos 'comitês executivos', a ditadura da classe foi substituída pela ditadura do partido, a autoridade dos membros do partido foi substituída pela autoridade da estrutura do partido, o poder dos trabalhadores nas fábricas foi substituída pelo exclusivo poder da burocracia - fazer todas estas coisas significava 'salvar a Revolução!' [. . .] A burocracia frustrou a restauração burguesa . . . eliminando o caráter proletário da revolução". [Op. Cit., p. 331]

À luz destes fatos, é significativo que, em sua listagem dos ganhos revolucionários de outubro de 1917, Stack falhe não mencionando aquilo que os anarquistas consideram mais importante, o poder, a democracia e os direitos dos trabalhadores. Mas, novamente, os bolshevikes, em vez de garantir e fortalecer o poder, a democracia e os direitos dos trabalhadores, preferiram sacrificá-los para assegurar aquilo que consideravam mais importante, o poder estatal (veja seção H.5.15 para uma mais completa discussão desse assunto). Novamente, a imágem da revolução prevalece sobre seu conteúdo!

Quando Stack argumenta que foi necessário esmagar Kronstadt para "salvar a revolução" e "preservar o regime revolucionário" somos forçados a perguntar: salvar e preservar o quê? A ditadura e os decretos dos líderes "Comunistas"? O poder do partido? Sim, suprimindo Kronstadt, Lenin e Trotsky salvaram a revolução, salvaram a revolução para Stalin. Dificilmente alguém se orgulharia disso.

A questão para os anarquistas, como para os marinheiros de Kronstadt, era quais seriam as pré-condições necessárias para esta reconstrução. Poderia a Rússia ser reconstruída no caminho socialista debaixo de uma ditadura que esmagou cada sinal de manifestação da classe trabalhadora e da ação coletiva? Sem qualquer sombra de dúvida, conforme Kronstadt mostrou, nenhuma outra coisa a não ser a reintrodução da democracia e do poder dos trabalhadores traria à tona a expressão do poder criativo das massas e seu interesse pela reconstrução do país. A continuação da ditadura do partido não levaria a outra coisa exceto a escravidão da classe trabalhadora:

"pela sua essência a ditadura destrói a capacidade criativa do povo . . . A conquista revolucionária poderia apenas ser aprofundada através da genuína participação das massas. Qualquer tentativa de substituir as massas por uma 'elite' torna-se uma atitude profundamente reacionária.

"Em 1921 a Revolução Russa chegou a uma bifurcação. A democracia ou a ditadura, esta foi a questão. Diante de uma união burguesa e de uma democracia proletária os bolshevikes de fato condenaram ambos. Optaram por construir o socialismo a partir do topo, completamente dirigido por peritos de um Estado-Maior Revolucionário. Na expectativa de uma revolução mundial que não viria da periferia, eles construiram uma sociedade capitalista estatal, onde a classe trabalhadora não teria o direito de tomar aquelas decisões que mais intimamente lhe dizia respeito". [Mett, Op. Cit., pp. 82-3]

A revolução russa enfrentou crises econômicas durante os anos de 1917 e 1918, mas durante estes anos em lugar algum encontramos os trotskystas argumentando que a democracia soviete era impossível (evidentemente, os bolshevikes tornaram a democracia soviete impossível pela supressão dos sovietes que elegiam pessoas "erradas" a partir do início de 1918). Por fim, os argumentos de Stack (e de outros como ele) são tais que ignoram a "realidade material" qualificando o estado de Lenin como um "regime revolucionário" e que a reconstrução não poderia se dar de outra forma a não ser através de uma burocracia privilegiada e sem a ativa participação da classe trabalhadora. Os problemas enfrentados pela classe trabalhadora russa foram dificultados ao extremo, mas eles jamais seriam resolvidos com alguém impedindo que milhares de trabalhadores levassem em frente uma ação de greve por todo o território da Rússia naquele tempo: "E se o proletariado estava tão exaurido como é virtualmente pode ser capaz de articular uma greve geral nas maiores cidades e nos centros mais altamente industrializados?" [Ida Mett, Op. Cit., p. 81]

Se há alguma "realidade material" ela é ignorada por Stack, não pelos anarquistas ou pelos rebeldes de Kronstadt. Tanto os anarquistas quanto o povo de Kronstadt reconheceram que o país estava diante de um medonho dilema e que um enorme esforço seria requerido para sua reconstrução. A base material daquele tempo oferecia duas possibilidades de reconstrução — por cima ou pela base. Tal reconstrução poderia ter uma natureza socialista apenas se envolvesse uma participação direta das massas trabalhadoras determinando o que era necessário e como deveria ser feito. Em outras palavras, o processo tinha que começar pela base, coisa que nenhum comitê central utilizando uma ínfima fração do poder criativo do país poderia levar a cabo. Essa reconstrução burocrática, faria surgir uma sociedade onde poucos seriam beneficiados. E foi, naturalmente, exatamente isso que aconteceu.

John Rees junta-se a seus amigos membros do partido argumentando que a base da classe trabalhadora no estado dos trabalhadores tinha se "desintegrado" em 1921. A classe trabalhadora fora reduzida "a uma massa individualizada, atomisada, uma fração de seu tamanho original, e não mais capacitada a exercer o poder coletivo da mesma forma que fazia em 1917." A "burocracia do estado dos trabalhadores elevou-a a seu ponto culminante, a base da classe ficou corroída e desmoralizada". [Op. Cit., p. 65] Rees afirma que Kronstadt foi "utópica" na medida em que "voltou seus olhos para as instituições de 1917 quando a classe que tornou tais instituições possíveis perdeu a capacidade coletiva para dirigir a vida política". [Op. Cit., p. 70]

Existem dois problemas com esse tipo de argumento. O primeiro envolve problemas factuais. O segundo envolve problemas ideológicos. Vamos analisar um de cada vez.

Os problemas factuais são claros. Em fevereiro de 1921 por toda a Rússia, a classe trabalhadora entrava em greve, organizando encontros e manifestações. Em outras palavras, praticando a ação coletiva com base em reivindicações coletivamente acordadas em reuniões nos locais de trabalho. Uma fábrica enviava delegados para outras, incentivando-as a se juntarem ao movimento que logo se transformou em uma greve geral em Petrogrado e Moscou. Em Kronstadt, os trabalhadores, soldados e marinheiros deram um passo adiante e organizaram uma conferencia de delegados. Qualquer afirmação de que a classe trabalhadora não tinha nenhuma capacidade para a ação coletiva torna-se inválida diante de tais fatos.

Naturalmente, aqueles trabalhadores em greve jamais teriam votado em massa para os comunistas se fossem organizadas eleições em sovietes livres (em Kronstadt, os comunistas detinham um terço da conferencia de delegados). Em vez da impossibilidade objetiva o que prevaleceu mesmo para a negação de eleições livres foi a razão política. Além disso, as ações do Estado Soviético tinham o propósito de quebrar a resistencia coletiva da força trabalhadora. O uso de patrulhas armadas nas ruas e nas fábricas, o fechamento e o cadastramento de força de trabalho temporário pretendia desmobilizar a greve e atomizar a força de trabalho. Tais ações não teriam sido necessárias se a classe trabalhadora russa estivesse, de fato, atomizada e incapacitada de efetuar ações coletivas e de tomar decisões.

O tamanho da classe trabalhadora em 1921 era menor que em 1917. Todavia, os personagens de maio de 1918 e de 1920 eram praticamente os mesmos. Em 1920, o número de trabalhadores nas fábricas de Petrogrado era de 148.289 (que constituía 34% da população). [Mary McAuley, Op. Cit., p. 398] Em janeiro de 1917, o número era de 351.010 e em abril de 1918, era de 148.710. [S.A. Smith, Red Petrograd, p. 245] Essa quantidade de trabalhadores fabrís representava cerca de 40% do período pré-Guerra Civil e permaneceu a mesma durante a Guerra Civil. Um núcleo proletário permaneceu em cada centro industrial ou cidade na Rússia. Durante todo o tempo em que durou a guerra civil eles organizaram greves e protestos por demandas específicas (e sofreram a repressão bolshevike por fazerem isso). Em março de 1919, por exemplo, as greves em Petrogrado envolveram 35.000 trabalhadores. Tais greves foram reprimidas por tropas. O mesmo ocorreu novamente em 1920. Em 1921, a onda grevista ressurgiu tornando-a quase que geral em muitas cidades, incluindo Petrogrado e Moscou. Se os trabalhadores podiam organizar greves (e uma greve quase geral em 1921) e grandes manifestações, o que os impediria de tomar em suas mãos seu próprio destino? Como invalidar a democracia soviete em favor de uma ditadura de burocratas?

Diante de tais fatores, é bastante provável que a real razão da supressão da democracia soviete, da liberdade e dos direitos políticos foi o fato dos bolshevikes saberem que seriam derrotados em eleições livres caso elas fossem implementadas. Como podemos notar na seção H.5.15, eles tiveram a cautela de dispersar os sovietes com as maiorias não-bolsheviques antes do começo da guerra civil. Com efeito, os bolshevikes exerceriam a ditadura do proletariado à revelia e acima da vontade do proletariado caso fosse necessário.

O problema ideológico deste argumento é que tanto Lenin quanto Trotsky argumentavam que a revolução inevitavelmente implicava em gerra civil, "circunstancias excepcionais" e crise econômica. Por exemplo, em Terrorism and Communism Trotsky argumentou que "todos os períodos de transição se caracterizam pelos . . . aspectos trágicos" de uma "depressão econômica" tais como exaustão, pobreza e fome. Cada classe social "é violentamente atingida por uma intensa luta, que imediatamente traz a seus participantes maiores privações e sofrimento que aquelas contra as quais lutam". Ele dá o exemplo da Revolução Francesa "que expandiu-se a titânicas dimensões sobre a pressão das massas exauridas pelo sofrimento, por si só provocando e gerando ainda mais infortúnios pelo seu prolongamento e pela sua extraordinária duração". Ele pergunta: "Isso poderia ser diferente?".

Na verdade, enfatiza ele as "revoluções arrastam em sua enchurrada milhões de trabalhadores" que passam a ser automaticamente afetados pela "vida econômica do país". Essa "enchurrada arrasta as massas para fora de seus locais de trabalho, levando-as a um prolongado período de luta, destruindo assim sua conecção com a produção, a revolução com todas suas variadas greves fatalmente golpeia a vida econômica, e inevitavelmente ataca o modelo que inspirou seu nascimento". Isto afeta a revolução socialista, quanto"mais perfeita a revolução, mais as massas a reduzem; e quanto mais se prolonga, maior é a destruição dos aparatos de produção, e mais terrível se torna a usurpação dos recursos públicos. De tudo isso vem uma conclusão que não requer prova — que a guerra civil é nociva à vida econômica".

Lenin em 1917 argumentou de forma semelhante, zombando daqueles que defendiam que a revolução estava fora de questão porque "as circunstancias eram excepcionalmente complicadas".  Ele destacou que a revolução, "em seu desenvolvimento, complica excepcionalmente as circunstancias" e que ela se torna "a mais violenta, a mais furiosa, a mais desesperada guerra civil e de classes. Nenhuma grande revolução na história escapou de uma guerra civil. A não ser que viva isolado do mundo ninguém pode imaginar que a guerra civil seja concebível fora de circunstancias excepcionalmente complicadas. Se não houver circunstancias excepcionalmente complicadas não existe revolução". [_Will the Bolsheviks Maintain Power?_, p. 80 e p. 81]

Alguns meses antes, Lenin argumentava que "quando o inevitável desastre se aproxima, a tarefa mais útil e indispensável que surge diante do povo é a organização. Viva a organização proletária — este é nosso slogan para o presente, e deve tornar-se nosso slogan por muito tempo, quando o proletariado já estiver no poder. . . Existem vários tipos de talentos [i.e. organizadores] no meio do povo. Tais forças repousam dormentes nos camponeses, por falta de uso. Elas precisam ser mobilizadas desde abaixo, pelo trabalho prático . . ." [_The Threatening Catastrophe and how to avoid it_, pp. 49-50]

O problema em 1921, naturalmente, foi que quando o proletáriado começou a se organizar, passou a ser reprimido por contrarevolucionários como os bolshevikes. A reconstrução desde abaixo, a organização do proletariado, automaticamente entrou em conflito com o poder do partido. Os trabalhadores e camponeses foram impedidos de agir porque a ditadura bolshevique havia destruído a democracia soviete e sindical.

Assim, por não serem convincentes, os argumentos de Stack caem por terra um a um. Conforme notamos, seus gurus ideológicos claramente argumentaram que era impossível uma revolução sem guerra civil e exaustão econômica. Lamentavelmente, os meios para mitigar os problemas da Guerra Civil e as crises econômicas (com o poder e a autogestão dos trabalhadores) inevitavelmente entraram em conflito com o poder do partido e não podiam ser encorajados. Se o bolshevismo não podia conciliar os inevitáveis problemas da revolução e manter seus principios declarados (democracia e poder soviete) então isso claramente não funcionaria e deveria ser evitado. Em outras palavras, o argumento de Stack representa mais a truculencia da ideologia bolshevike do que um argumento sério contra a revolta de Kronstadt.
 


H.5.13 A "terceira revolução" era uma alternativa real para  Kronstadt?

Na última seção discutimos o argumento de que o país estava exaurido utilizado para justificar a repressão bolshevike contra Kronstadt. Tal argumento encontra sua mais clara expressão em Victor Serge:

"O país estava exaurido e a produção praticamente paralizada; não havia estoque de espécie alguma, nem mesmo no coração das massas havia reserva de resistencia. A elite da classe trabalhadora moldada na luta contra o velho regime fora literalmente dizimada. O Partido, inchado pelo influxo da sêde pelo poder, inspirava pouca confiança . . . À democracia soviete faltava liderança, instituições e inspiração . . .

"A contra-revolução popular traduziu a demanda por sovietes livremente eleitos, por um 'soviete sem comunistas'. Se a ditadura bolshevike caisse, seria apenas o primeiro passo em direção ao caos, e pelo caos viria o levante camponês, o massacre dos comunistas, o retorno dos emigrantes, o fim, e esta mudança forçaria a vinda de outra ditadura, um tempo anti-proletário". [_Memoirs of a Revolutionary_, pp. 128-9]

Serge apoiou os bolshevikes, considerando-os o único meio possível de defender a revolução. Alguns leninistas modernos seguem esta linha de raciocínio e querem que acreditemos que os bolshevikes foram os defensores daquilo que havia restado da revolução. O que restara, exatamente? Na verdade, as únicas coisas que permaneceram foram o poder bolshevike e uma indústria nacionalizada — ambas estas coisas excluiram o ganho real da Revolução Russa (ou seja, o poder soviete, sindicatos livres e o direito de greve, liberdade de assembléia, de expressão popular e de associação dos trabalhadores, a auto-gestão da produção nas fábricas e daí por diante). Na verdade, essas coisas que "permaneceram", o poder bolshevike e a indústria nacionalizada, foram a base do poder da burocracia stalinista.

Os anarquistas e marxistas libertários que defendem a revolta de Kronstadt e que se opõem às ações dos bolshevikes jamais seriam loucos de argumentar que a "terceira revolução" tinha definitivamente acontecido em Kronstadt. Cada revolução é um jogo onde se pode ganhar ou perder.

Ante Ciliga coloca essa questão com precisão:

"Consideremos, finalmente, uma última acusação correntemente veiculada: que ações tais como a de Kronstadt poderiam indiretamente favorecer a contra-revolução. Sem dúvida, é possível que mesmo situando-se numa democracia dos trabalhadores, a revolução pode estar sendo liquidada; mas o certo é que ela morreu, e morreu por conta da política de seus líderes. A repressão de Kronstadt, a supressão da democracia dos trabalhadores e sovietes pelo partido bolchevique russo, a eliminação do proletariado da gestão da indústria e a introdução da NEP já significavam a morte da revolução. " [Op. Cit., p. 335]

A única alternativa para a "terceira revolução" seria a auto-reforma da ditadura do partido e, portanto, do estado soviético. Tal alerta foi feito depois de 1923 pela "trotskyista" (nome dado pelos stalinistas porque Trotsky era seu principal líder) esquerda opositora. John Rees relata que a esquerda opositora, defendia que "sem um reavivamento da luta na Rússia ou o sucesso revolucionário em outros rincões" tudo "estava condenado ao fracasso". [Op. Cit., p. 68] Dentro dessa lógica de Sergue, existia apenas uma opção à esquerda dos leninistas.

Quão viável poderia ser esta alternativa? A ditadura soviética poderia mesmo reformar a si mesma? A história dá a resposta com a subida de Stalin.

Infelizmente para a esquerda opositora, a burocracia acumulou experiência com a repressão às lutas, como o combate à onda de greves em 1921 e o massacre na rebelião de Kronstadt. Na verdade, Rees observa incrédulo  que em 1923 "a nascente da renovação e de uma reforma completa — a atividade dos trabalhadores — havia secado inteiramente" contudo, ainda não percebe que este declínio foi reforçado por aquilo que aconteceu em Kronstadt e pela repressão à onda de greves de 1921. A esquerda opositora colheu aquilo que Trotsky semeou com as sementes de 1921. Estranhamente, Rees não percebe isso.

Ironicamente, Rees argumenta que a burocracia stalinista não poderia trair a revolução sem "capturar o poder armado contra-revolucionário" (e portanto "sem lei marcial, sem toque de recolher ou sem batalhas nas ruas") por causa da "atomização da classe trabalhadora". Todavia, essa atomização foi produto das atividades contra-revolucionárias de Lenin e Trotsky em 1921 quando reprimiram as greves e esmagaram Kornstadt através da lei marcial, do toque de recolher e das batalhas nas ruas. Os trabalhadores não tinham qualquer interesse em uma burocracia que os governasse, explorasse e os tornasse passivos. Rees falha em não ver que o golpe stalinista simplesmente foi construído sobre a plataforma contra-revolucionária de Lenin. A lei marcial, o toque de recolher e as batalhas de rua ocorreram em 1921, não em 1928. A subida do stalinismo foi a vitória de uma nova classe burocrática sobre outra.

Quanto à idéia de que uma revolução externa regeneraria a burocracia soviética, isto também foi fundamentalmente uma utopia. Nas palavras de Ida Mett:

"Alguns afirmam que os bolshevikes empreenderam tais ações (como a supressão de Kronstadt) na esperança de uma futura revolução mundial, da qual eles se consideravam a vanguarda. Mas qual revolução em algum outro país seria influenciada pela Revolução Russa? Quando alguem considera a enorme autoridade moral da Revolução Russa através do mundo esse alguém pode perguntar a si mesmo se os desvios desta revolução não teriam deixado uma marca nos outros países. Muitos fatos históricos conduzem a tal julgamento. Embora seja fragrante a impossibilidade da genuina construção socialista em apenas um país, dificilmente as deformações burocráticas do regime bolshevike influenciariam positivamente os ventos revolucionários em outros países". [Op. Cit., p. 82]

A esquerda opositora jamais poderia salvar a revolução. Além do mais tratava-se de uma plataforma contraditória e utópica convocar o partido e o estado burocrático para se auto-reformarem. A raiz do problema estava na própria ideologia bolshevike. Isto pode ser visto na própria plataforma da oposição escrita em 1927.

Ela almeja um "consistente desenvolvimento da democracia dos trabalhadores no partido, nos sindicatos, e nos sovietes" visando "converter os sovietes urbanos em reais instituições do poder proletário". Ela estabelece que "Lenin, desde a revolução de 1905, desenvolveu o slogan dos sovietes como sendo órgãos da ditadura democrática do proletariado e dos camponeses". Os marinheiros de Kronstadt argumentavam o mesmo, naturalmente, e foram estigmatizados como "defensores dos brancos" e "contra-revolucionários". Ao mesmo tempo que os trotskystas clamam por democracia, encontramos os "princípios leninistas" ("inviolavel por cada bolshevique") de que "a ditadura do proletariado é e pode ser realizada apenas através da ditadura do partido". Repetindo o princípio mencionado de que "a ditadura do proletariado exige um único e unitário partido que assume a posição de líder das massas trabalhadoras e dos pobres camponeses". Isto destaca que uma "divisão em nosso partido, a formação de dois partidos, representará um enorme perigo à revolução". e isto porque:

"Ninguém que sinceramente defende a linha de Lenin pode sustentar a idéia de 'dois partidos' ou jogar com a possibilidade de uma cisão. Apenas aqueles que desejam substituir o método de Lenin por algum outro pode advogar uma divisão ou um movimento ao longo de uma rua de duas direções.

"Lutaremos com todo nosso poder contra a idéia de dois partidos, porque a ditadura do proletariado exige como seu verdadeiro miolo um único partido proletário. Isso exige um só partido. Isto exige um partido proletário — que é, um partido cuja política é determinada pelos interesses do proletariado e conduzido pelo núcleo proletário. A correção da linha de nosso partido, o aperfeiçoamento de sua composição social — não é uma rua de duas direções, mas o fortalecimento e a garantia de sua unidade como partido revolucionário do proletariado".

Podemos notar, de passágem, a interessante noção de partido (e portanto, do estado "proletario") politicamente "determinado pelos interesses do proletariado e conduzido por um núcleo proletário" mas que não é determinado pelo proletariado em si.

Tudo isso significa que a política do "estado dos trabalhadores" precisa ser determinado por algum outro (não específico) grupo e não pelos trabalhadores. Quem pode garantir que este outro grupo realmente sabe o que é do interesse do proletariado? Ninguém, naturalmente. Qualquer decisão democrática pode ser ignorada quando aqueles que determinam a política consideram que as manifestações do proletariado não estão de acordo "com os interesses do proletariado".

Foi isto que Trotsky fez quando argumentou contra a facção oposição dos trabalhadores do Partido Comunista que desejava reintroduzir alguns elementos de democracia na Décima Conferência no tempo do levante de Kronstadt. Conforme ele destaca, eles "chegaram com slogans perigosos. Fizeram dos princípios democráticos um fetiche. Eles colocaram o direito dos trabalhadores elegerem representantes acima do partido. Como se o Partido não fosse capacitado para exercer sua ditadura esmagando os humores passageiros da democracia de trabalhadores!" Ele continua afirmando que o "Partido é obrigado a manter sua ditadura . . . indiferente às vacilações temporárias que surgem da classe trabalhadora . . . A ditadura não se baseia em si mesma num determinado momento de um princípio formal de uma democracia de trabalhadores". [citado por M. Brinton, _The Bolsheviks and Workers’ Control_, p. 78]

Diante disso a chamada por democracia é totalmente anulada por outros argumentos na Plataforma, argumentos que logicamente eliminam a democracia resultando em atos como o massacre de Kronstadt (veja também a seção H.5.15).

A questão que, naturalmente, vem à tona é como a democracia pode ser introduzida em sovietes e sindicatos quando a ditadura do partido é essencial para a "realização" da ditadura do "proletariado" e onde pode haver apenas um partido? Que acontece se o proletariado vota por algo diverso (como ocorreu em Kronstadt)? Se a ditadura do "proletariado" é impossível sem a ditadura do partido então, claramente, a democracia proletária torna-se sem sentido. Tudo o que os trabalhadores poderiam fazer seria votar nos membros do mesmo partido, todos aqueles que desobedecessem a disciplina do partido seriam expulsos pelas ordens da liderança do partido. Em outras palavras, o poder repousa na hierarquia do partido e definitivamente não na classe trabalhadora, seus sindicatos ou seus sovietes (não passam de meros figurantes submissos ao governo do partido). Em suma, a única garantia fornecida pela ditadura do partido é governar no interesse do proletariado, que por sua vez confia nas boas intenções do partido. Contudo, alienada da vontade real das massas, tal garantia torna-se imprestavel — como a história revela.

Kronstadt é o resultado óbvio de tais políticas. O ponto de partida foi dispersar os sovietes que elegiam os partidos "errados" (como os bolshevikes fizeram no começo de 1918, antes do começo da guerra civil). A plataforma trotskysta tinha utilidade apenas ecomo expressão do usual duplo-pensar leninista do seu "estado dos trabalhadores", em termos de sugestões práticas é inteiramente inútil. Diferente da plataforma apresentada pelos trabalhadores de Kronstadt, a plataforma trotskysta estava condenada ao fracasso desde o começo. A nova classe burocrática poderia ser removida apenas através de uma "terceira revolução", qualquer uma outra opção, resultaria em uma alternativa burguesa contra-revolucionária, como a ditadura bolshevike que inevitavelmente desaguaria no stalinismo. Quando os defensores do bolshevismo argumentaram que Kronstadt abrira o portão da contrarevolução, eles não compreendiam que o bolshevismo era a própria contra-revolução em 1921, suprimindo Kronstadt os bolshevikes não apenas escancararam as portas para o stalinismo como também convidaram-no e lhe entregaram as chaves da casa.

A plataforma trotskysta, portanto, é Trotsky reescrevendo a história, e passando a atacar o monstro do stalinismo que ele próprio ajudou a criar, inclusive pelo massacre de Kronstadt.

Ele argumenta, por exemplo, que o soviete urbano "tem perdido importancia nos anos recentes. Isto reflete sem dúvida um deslocamento na relação das forças de classe em desvantágem para o proletariado". De fato, os sovietes perderam sua importancia imediatamente após a revolução de outubro (veja seção H.5.9 para detalhes). O "deslocamento" na relação das forças de classe começou imediatamente após a revolução de outubro, quando os ganhos reais de 1917 (i.e. a democracia soviete, os direitos dos trabalhadores e a liberdade) foram paulatina e resolutamente eliminados pela classe burocrática formada em torno do novo estado — uma classe que procurava justificar suas ações proclamando que aquilo que fazia era no "interesse" das massas cuja vontade ignorava.

Em relação ao próprio Partido Comunista, ele o qualifica como ("em ação e não em palavras") "um regime democrático. Que age através de táticas administrativas. Que impede a perseguição e expulsão daqueles que exercem opiniões independentes sobre as questões do partido". Nenhuma menção, naturalmente, às táticas usadas por Lenin e Trotsky contra os dissidentes esquerdistas depois da revolução de outubro.

A esquerda comunista nos princípios de 1918 estava sujeita a tais pressões. Por exemplo, eles foram expulsos pelas posições adotadas no Conselho Supremo de Economia em março de 1918. Depois que apresentaram seus pontos de vista passaram a ser perseguidos por Lenin "uma manobra feita em Leningrado obrigou o Kommunist [seu jornal] a transferir sua publicação para Moscow . . . Depois que o assunto apareceu pela primeira vez no jornal uma reunião feita às pressas pela Conferência do Partido em Leningrado produziu uma maioria favorável a Lenin e 'obrigaram os simpatizantes do Kommunist a por um fim em sua atividade dissidente'". O jornal ainda teve quatro edições, sendo que a última teve que ser publicada como jornal privado de facção. Esta edição referia-se à alta pressão dirigida contra eles pela direção do Partido, sustentada por um boicote implementado pela imprensa e pelos pronunciamentos dos líderes do Partido. [Maurice Brinton, Op. Cit., pp. 39-40]

Similarmente, tres anos depois a oposição dos trabalhadores também passou por essa experiência. No Décimo Congresso do partido, A. Kollontai (autor da plataforma trotskysta) denunciou que a circulação de seu panfleto havia sido deliberadamente impedida. Foi considerada irregular pelo Comitê do Partido em Moscou, que imediatamente votou uma resolução censurando públicamente a organização de Petrogrado 'por não observar as regras relativas a controvérsias'."O sucesso da facção leninista no controle da máquina do partido foi tal que 'provavelmente utilizaram o artifício da fraude'". [Brinton, Op. Cit., p. 75 e p. 77] O testemunho de Victor Serge sugere que uma votação fraudulenta garantiu a vitória de Lenin no debate do sindicato. [_Memoirs of a Revolutionary_, p. 123] O próprio Kollontai menciona (no começo de 1921) que camaradas que "manifestarem desacordo com os decretos que venham de cima serão reprimidos". [The Workers’ Opposition, p. 22]

A plataforma trotskysta declara que "a morte da democracia interna conduz à morte da democracia dos trabalhadores em geral — nos sindicatos, e em todas as organizações de massa não partidárias". De fato, essa causa é factualmente correta. A morte da democracia dos trabalhadores geralmente precede à morte da democracia interna. A ditadura do partido necessita esmagar a "ditadura democrática das massas trabalhadoras e dos camponeses pobres". A ditadura do partido substitui a classe trabalhadora, eliminando a democracia pela ditadura do partido único, democracia que o partido precisa fazer definhar. Se os trabalhadores pudessem entrar no partido e influenciar sua política então os mesmos problemas que surgem nos sovietes e nos sindicatos apareceriam no partido (i.e. a escolha de políticas e de pessoas "erradas"). Por isso necessitam uma centralização no poder dentro do partido tanto quanto nos sovietes e nos sindicatos, tudo em detrimento da participação do povo simples e da massa trabalhadora.

Para terminar, vamos estabelecer alguns paralelos entre os marinheiros de Kronstadt e a esquerda opositora.

John Rees argumenta que a esquerda opositora tinha "toda aquela vasta máquina de propaganda da burocracia . . . voltada contra ela", aquela mesma máquina usada por Trotsky e Lenin em 1921 contra Kronstadt. Até que finalmente, a esquerda opositora "foi exilada, aprisionada e morta", da mesma forma que fizeram contra o povo de Kronstadt e contra aquela multidão de revolucionários que defenderam a revolução mas se opunham à ditadura bolshevike. [Op. Cit., p. 68]

Assim, pois, o argumento de que Kronstadt foi uma "utopia" é falso. A terceira revolução era a única real alternativa à Russia bolshevike. Qualquer luta que surgisse de baixo nos anos pós 1921 enfrentaria os mesmos problemas que Kronstadt enfrentou, a democracia soviete sendo suprimida pela ditadura do partido. Uma vez que a esquerda opositora havia subscrito os "princípios leninistas" da "ditadura do partido", eles jamais poderiam apelar para as massas nem tampouco decidir por elas. Todos os argumentos dirigidos contra a democracia soviete em Kronstadt de conduzirem uma contra-revolução são igualmente aplicáveis àquele movimento que invocava, segundo Rees, a classe trabalhadora russa.

Em outras palavras, é errônea a afirmação de que Kronstadt inevitavelmente conduziria a uma ditadura anti-proletária. Aliás, a própria ditadura bolshevike foi anti-proletária por natureza (ela reprimiu manifestações proletárias, esmagou a liberdade e o direito de expressão em inúmeras ocasiões) e ela nunca poderia ser reformada de seu conteúdo pela própria lógica de seus "princípios leninistas" da "ditadura do partido". A subida do stalinismo tornou-se inevitável após o massacre de Kronstadt.
 


H.5.14 Como os trotskistas modernos encaram Kronstadt?

Já discutimos nas seções anteriores como os trotskystas procuram imitar seus heróis Lenin e Trotsky distorcendo os fatos relacionados aos marinheiros de Kronstadt e ao levante. Na seção H.5.5, indicamos como eles selecionam passagens de versões acadêmicas sobre o levante suprindo as evidências que contradizem suas afirmações. Na seção H.5.11 mostramos como eles manipularam passagens do livro de Paul Avrich sobre a revolta para desenhar um quadro falso das concepções dos marinheiros com os brancos. Aqui vai um resumo de outras falcatruas dos trotskystas sobre a revolta.

John Rees, por exemplo, afirma que o povo de Kronstadt lutava por "sovietes sem partidos". Na verdade, ele faz essa afirmativa duas vezes em uma única página. [Op. Cit., p. 63] Pat Stack vai mais longe ao afirmar que a "exigencia central do levante de Kronstadt era 'sovietes sem bolshevikes'‚ em outras palavras, a completa destruição do estado dos trabalhadores". ["Anarchy in the UK?", Socialist Review, no. 246, November 2000] Ambos autores mencionam o livro Kronstadt 1921 de Paul Avrich em seus artigos. Vamos olhar a fonte:

"'Sovietes Sem Comunistas' não foi, como é sustentado tanto por escritores soviéticos como não-soviéticos, um slogan de Kronstadt". [_Kronstadt 1921_, p. 181]

Quando o povo de Kronstadt brada "todo poder para os sovietes não para os partidos" eles distorcem para "sovietes sem partidos". Não se pretendia excluir os partidos políticos dos sovietes, mas simplesmente impedir que os sovietes fossem dominados e substituídos por eles. Conforme Avrich destaca, o programa de Kronstadt "tinha um lugar para os bolshevikes nos sovietes, ao lado de outras organizações esquerdistas . . . comunistas . . . [todos] participando vigorosamente da conferencia eleita de delegados, fato que Kronstadt considerava como uma característica dos sovietes livres com os quais sonhava". [Ibid.] O índice da obra de Avrich habilmente inclui esta página, sob o adequado título "sovietes: 'sem comunistas'".

A exigência central do levante simplesmente pedia por democracia soviete e pelo retorno aos princípios pelos quais os trabalhadores e camponeses tinham enfrentado os brancos. Em outras palavras, os leninistas não apenas adulteraram as exigências da revolta de Kronstadt como também deturparam suas exigências.

Rees tenta sugerir que os culpados pelo massacre implementado pelos bolshevikes são os próprios marinheiros. Ele argumenta que "em Petrogrado, Zinoviev já tinha essencialmente retirado os aspectos mais detestaveis da guerra comunista em resposta às greves". Desnecessário dizer que Zinoviev não retirara os aspectos políticos da guerra comunista, mas apenas os econômicos e, como a revolta de Kronstadt era principalmente política, tais concessões não foram suficientes (na verdade, a repressão dirigida contra os direitos dos trabalhadores, a oposição socialista e os grupos anarquistas aumentou). Ele afirma que a "resposta" do povo de Kronstadt a essas concessões está contida em _What We Are Fighting For_" e destaca a seguinte passágem:

"não há nenhum meio termo na luta contra os comunistas . . . Eles procuram aparentar fazer concessões: removeram destacamentos de bloqueio e alocaram 10 milhões de rublos na província de Petrogrado para a compra de alimentos . . . Mas não vamos nos deixar enganar . . . Não há meio termo. Vitória ou morte!"

Só que Rees falha em informar a seus leitores que isso foi escrito em 8 de março, após o início das operações militares pelos bolshevikes (na noite anterior). Além do mais, o fato é que a "resposta" claramente determina que "sem um único tiro, sem uma gota de sangue, o primeiro passo fora dado [da "Terceira Revolução"]. Os trabalhadores não precisam de sangue. Eles farão isso apenas em caso de legítima defesa", isto não é mencionado. [Avrich, Op. Cit., p. 243] Em outras palavras, os marinheiros de Kronstadt reafirmaram seu comprometimento com uma revolta não violenta. Qualquer violência de sua parte seria em legítima defesa contra as ações bolshevikes. Você não vê nada disso na obra de Rees.

Outro membro da SWP, Abbie Bakan, afirma que, por exemplo, "mais de três quartos dos marinheiros" de Kronstadt "eram recrutas recentes de orígem camponesa" mas não fornece a fonte de tal estatística. ["A Tragic Necessity", Socialist Worker Review, no. 136, November 1990, pp. 18-21] Conforme notamos na seção H.5.8, tal afirmativa é falsa. A fonte provável para tal afirmativa é Paul Avrich, que relata que de acordo com dados oficiais, mais de três quartos dos marinheiros eram de origem camponesa mas Avrich em nenhum momento diz que eles eram todos recrutas recentes. Embora afirmasse ter uma "pequena dúvida" se a Guerra Civil produzira "alta rotatividade" e que muitos veteranos foram substituidos por recrutas vindos das áreas rurais, ele não indica que todos aqueles marinheiros vindos do campo eram novos recrutas. O que ele destaca é que "sempre houve um grande e obstinado elemento camponês entre os marinheiros". [Op. Cit., pp. 89-90]

Bakan afirma que o anti-semitismo "era vicioso e exuberante" contudo falha em providenciar qualquer proclamação oficial de Kronstadt que expressasse essa perspectiva. Talvez se trate de uma generalização das memórias de um marinheiro e do comentário anti-semítico de Vershinin, um membro do Comitê Revolucionário. Não podemos esquecer que a opinião desses marinheiros e de outros como eles eram irrelevantes para os bolshevikes no momento em que eram recrutados. E, mais importante, tal "vicioso e exuberante" anti-semitismo nunca esteve presente nas exigências nem nos jornais de Kronstadt ou nos programas de rádio. Nem mesmo os bolshevikes fizeram menção disso naquele tempo.

Além do mais, a verdade é que o "pior veneno dos rebeldes de Kronstad era dirigido contra Trotsky e Zinoviev" mas não porque eles eram, conforme Bakan afirma, "tratados como bode expiatório de judeus". Não há qualquer referência étnica nas reivindicações dos marinheiros de Kronstadt. Em vez disso o que se vê em seus ataques são fortes razões políticas. Conforme Paul Avrich argumenta, "Trotsky em particular foi o símbolo vivo da guerra comunista, contra qual cada marinheiro tinha se rebelado. Seu nome estava associado à centralização e militarização, à disciplina férrea e arregimentação". Quanto a Zinoviev, ele diz "atraiu sobre si a ira dos marinheiros representando o chefe do partido que havia reprimido os trabalhadores em greve e que tomou suas próprias famílias como réfens". Boas razões para atacá-los e nenhuma delas relacionada ao fato deles serem judeus. [Op. Cit., p. 178 and p. 176]

Bakan afirma que as "exigencias dos marinheiros de Kronstadt refletiam as idéias das seções mais atrasadas dos camponeses". Conforme pode ser visto na seção H.5.5, tal comentário não pode ser considerado devido às reais exigências da revolta (que, naturalmente, ele não relaciona). Quais idéias estão contidas nessas exigências das "seções mais atrasadas dos camponeses"? Eleições livres nos sovietes, liberdade de expressão e de imprensa para os trabalhadores e camponeses, direito de assembléia, liberdade sindical e de organização camponesa, conferência de trabalhadores, soldados e marinheiros, libertação de todos os trabalhadores e camponeses prisioneiros políticos, igualdade na distribuição das rações, liberdade de ação para os camponeses desde que não empreguem trabalho assalariado, e daí por diante. Em outras palavras, tais reivindicaçõs podem ser encontradas na maioria dos programas dos partidos socialistas e foram, de fato, um elemento chave na retórica bolshevike em 1917. E, naturalmente, todos os aspectos políticos das exigencias de Kronstadt refletem aspectos chaves da Constituição Soviética. Quanto "atraso" pode ser encontrado!

Bakan pateticamente admite que tais exigências incluiam a "proclamação de grandes liberdades" embora se refira a "metas principalmente econômicas" fora os pontos 8, 10 e 11, dos 15 pontos das exigências, as demais são políticas. Aparentemente, foi "o programa de confisco forçado da produção dos camponeses e os destacamentos de bloqueio nas estradas que incentivou o mercado negro de grãos". Uma vez que ele admite que os bolshevikes terem "já discutido" o fim daquelas coisas (devido à ausencia de sucesso) isto pode ser o caso dos bolshevikes também refletirem "as idéias das seções mais atrasadas dos camponeses"! Além disso, a exigência pelo fim dos bloqueios nas estradas também foi levantada pelos trabalhadores de Petrogrado, da mesma forma que outras exigências de Kronstadt. [Paul Avrich, Op. Cit., p. 42] Seguramente as "seções mais atrasadas dos camponeses" prevaleciam naqueles dias, pois com excessão da burocracia do partido bolshevike elas estavam presentes nas fábricas de Petrogrado e nas outras grandes cidades da Rússia!

Na realidade, naturalmente, a oposição ao confisco forçado de alimentos foi uma combinação de considerações práticas e éticas — além de ser um mal aquilo era contraprodutivo. Não é necessário ser um camponês para ver e saber isso (como os trabalhadores de Petrogrado mostraram). Similarmente, os bloqueios nas estradas também foram um erro. Victor Serge, por exemplo, reconhece que ele próprio teria "morrido sem a sórdida manipulação do mercado negro". [Op. Cit., p.79] E ele era um funcionário do governo. Desnecessário dizer que para o trabalhador comum as coisas foram bem piores. O uso dos destacamentos de bloqueio nas estradas se constituiu numa ofensa aos trabalhadores industriais — não foi atoa que exigiam seu fim e não foi atoa que os marinheiros expressaram solidariedade para com eles e incluiram essa reivindicação nas exigências. Assim, nenhuma das exigências nega a natureza de classe da revolta.

Em um exemplo interessante do duplo-pensar trotskysta, ele afirma que os marinheiros "proclamavam a abolição da autoridade bolshevike no exército, nas fábricas e no campo". Aquilo que a resolução pedia, de fato, era, "a abolição dos destacamentos de combate do Partido e todos os grupos militares" tanto quanto as "guardas do Partido nas fábricas e empresas" (ponto 10). Em outras palavras, o fim da intimidação dos trabalhadores e soldados pelas unidades comunistas armadas em seu meio! Quando Bakan afirma que "o caráter real da rebelião" podia ser visto no começo da declaração quando afirma que "os sovietes atuais não expressam a vontade dos trabalhadores e camponeses" ele não enchergou a verdade contida nesse comentário. A revolta de Kronstadt foi uma revolta pela democracia soviete e contra a ditadura do partido. E apenas pela abolição da "autoridade bolshevike" nos sovietes existentes, como a resolução expressava, seria expressa a vontade de seus eleitores!

Similarmente, ele afirma que o Comitê Revolucionário Provisório fora "não-eleito" e desmente todos os historiadores que registram que ele foi de fato eleito pela conferência de delegados em 2 de março e expandindo-se alguns dias depois. Ele menciona o fato dos delegados no encontro "não permitirem aos membros do partido estabelecerem as regras usuais no que toca aos procedimentos" como uma das muitas "irregularidades" enquanto que, naturalmente, a real irregularidade foi o fato de um partido (o partido do governo) estabelecer suas "regras usuais" em primeiro plano! Além disso, diante do fato do soviete de Petrogrado discutir a revolta sob a vigilância da guarda checa (a polícia política de Lenin), afirmar que a participação dos marinheiros nos encontros da conferencia de delegados (um encontro convocado em oposição ao partido governante) era "irregular" parece irônico.

Além de tudo, o artigo de Bakan revela o nível de baixaria a que podem chegar os defensores do leninismo quando discutem a rebelião de Kronstadt. Tristemente, conforme indicamos muitas e muitas vezes, não se trata de um caso isolado.
 


H.5.15 O que Kronstadt nos transmite sobre o bolshevismo?

Os argumentos utilizados por Lenin, Trotsky e seus seguidores fornecem um significante auxílio na determinação da essência do mito bolshevike. Seus arrazoamentos e atitudes revelam as limitações da teoria bolshevike e como ela contribuiu para a degeneração da revolução.

Trotsky disse que o "slogan de Kronstadt" era "sovietes sem comunistas". [Lenin e Trotsky, Kronstadt, p. 90] Isso, evidentemente, é factualmente incorreto. O slogan de Kronstadt era "todo poder para os sovietes não para os partidos" (ou "sovietes livres"). Com base em sua asserção errônea, Trotsky argumenta o seguinte:

"libertar os sovietes da liderança [!] dos bolshevikes significa a curto prazo a demolição dos próprios sovietes. A experiência dos sovietes russos durante o período da dominação menshevike, SR e, mais claramente, a experiência dos sovietes alemães e austríacos sob o controle dos sociais democratas, prova isso. Os sovietes social-revolucionários-anarquistas serviram apenas como uma ponte para a ditadura do proletariado. Eles não poderiam exercer nenhum outro papel, não dêem atenção a essas 'ideias' de seus adeptos. O levante de Kronstadt teve um caráter contra-revolucionário". [Op. Cit., p. 90]

Lógica interessante. Vamos supor que o resultado de eleições livres implicasse no fim da "liderança" bolshevike (i.e. ditadura), como parece ter acontecido. O que Trotsky defende é que a utilidade em permitir que trabalhadores elejam representantes é "apenas servir como uma ponte para a ditadura do proletariado"! Este argumento foi dito (em 1938) como um objetivo geral e não em termos dos problemas enfrentados pela Revolução Russa em 1921. Em outras palavras Trotsky claramente defende a ditadura do partido contrastando-a com a democracia soviete. Um repúdio ao lema "Todo Poder aos Sovietes"!

Na verdade, Trotsky não temia explicitar tais afirmativas naquela ocasião. Conforme destacamos na seção H.5.13, a oposição esquerdista baseava-se no "princípio leninista" ("que nenhum bolshevike poderia violar") de que "a ditadura do proletariado é e pode ser realizada apenas através da ditadura do partido". Trotsky destacou dez anos mais tarde que a classe trabalhadora como um todo não poderia determinar a política nesse "estado dos trabalhadores" (que revela sua crença na ditadura do partido único como um estágio inevitável da revolução "proletária"):

"A ditadura de um partido remonta à barbárie pré-histórica que produziu o próprio estado, mas não podemos saltar este capítulo, que pode descortinar (não de um só lance) a genuína história humana . . . Em termos abstratos, seria muito bom se a ditadura do partido pudesse ser substituída por uma 'ditadura' da totalidade do povo trabalhador sem qualquer partido, mas isto pressupõe um alto nível de desenvolvimento político no meio das massas, coisa que nunca seria alcançada sob as condições capitalistas. A razão para a revolução vem da circunstancia do capitalismo não permitir o desenvolvimento moral e material das massas". [Trotsky, Writings 1936-37, pp. 513-4]

Aqui está a verdadeira essência do bolshevismo. Trotsky defende claramente que a classe trabalhadora, enquanto classe, é incapaz de fazer a revolução ou de adminstrar a sociedade por si própria — consequentemente o partido precisa andar a seu lado e, se necessário, ignorar a vontade desse mesmo povo que o partido diz representar. Quando o partido suprimiu Kronstadt, quando dispersou os sovietes não-bolshevikes nos princípios de 1918 roubando o poder dos trabalhadores e dos sovietes, ele atuava no interesse das massas! A noção do leninismo como teoria revolucionária é invalidada pelos argumentos de Trotsky, aqui ou em qualquer outro lugar. Mais que o anseio por uma sociedade baseada no poder dos trabalhadores eles aspiram por um "estado dos trabalhadores" no qual os trabalhadores delegam seu poder para líderes do partido. Tal abordagem está fadada ao fracasso — ela não pode produzir uma sociedade socialista pois tal sociedade (conforme enfatizou Bakunin) pode apenas ser construida a partir de baixo pela própria classe trabalhadora.

Conforme Vernon Richards argumenta:

"A diferença entre o movimento revolucionário libertário e o autoritário na luta por estabelecer uma sociedade livre, está nos meios que cada um deles utiliza para alcançar seus fins. O libertário defende que a iniciativa precisa vir de baixo, que a livre sociedade precisa ser o resultado do desejo de liberdade de uma extensa porção da população. O autoritário . . . acredita que o desejo de liberdade pode apenas emergir diante de um sistema econômico e político existente que seria substituído por uma ditadura do proletariado [expressa pela ditadura do partido, de acordo com Trotsky] a qual, com o crescimento da consciência e senso de responsabilidade do povo, definharia e a livre sociedade emergiria.

"Não pode haver nenhum campo comum entre estas duas abordagens. O autoritário defende que a abordagem libertária embora nobre é 'utópica' e está desde o começo fadada ao fracasso, ao passo que o libertário defende com base na história, que os métodos autoritários simplesmente substituem um estado autoritário por outro, igualmente despótico e distante do povo, e que não 'definhará' mais que seu predecessor capitalista". [_Lessons of the Spanish Revolution_, p. 206]

Em nossos dias os leninistas seguem os argumentos de Trotsky (embora raramente admitam a lógica dessa postura ou que seus heróis explicitamente chegaram a esta conclusão e a justificaram). Chris Bambery da SWP britânica, por exemplo, argumenta em seu artigo "Leninismo no século XXI" que "na concepção de Lenin de partido, a democracia é balanceada pelo centralismo" e a primeira das tres razões é:

"A classe trabalhadora é fragmentada. Sempre há aqueles que querem lutar, aqueles que furam as greves e aqueles que ficam no meio termo. Até mesmo nos sovietes havia tais divisões. As organizações revolucionárias não aspiram representar a classe trabalhadora como um todo. Elas se baseiam naqueles trabalhadores que querem mudar o capitalismo, e procuram organizar a maioria dos trabalhadores para a vitória e para a necessária tomada do poder". [_Socialist Review_, no. 248, January 2001]

Isto, naturalmente, tem exatamente a mesma base da defesa de Trotsky da necessidade da ditadura do partido e do porque Kronstadt foi contra-revolucionário. Na verdade, Bambery destaca que até mesmo "nos sovietes" existiam "divisões". Assim nós temos o argumento básico que conduz a eventos como Kronstadt e a destruição do poder soviete pelo poder do partido. Os argumentos para a centralização significam, na prática, a concentração do poder no centro, nas mãos dos líderes do partido, pois as massas trabalhadoras não seriam confiáveis para decidir acertadamente ("revolucionariamente"). Este poder é então utilizado para impor a vontade dos líderes, os quais usam o poder do estado contra a mesma classe que eles afirmam representar:

"Sem a coerção revolucionária aplicada diretamente contra os inimigos declarados dos trabalhadores e camponeses, é impossível quebrar a resistencia dos exploradores. Por outro lado, a coerção revolucionária é um chicote para ser usado sobre os elementos instaveis e indecisos que fazem parte da própria massa". [Lenin, _Collected Works_, vol. 24, p. 170]

Em outras palavras, naqueles que se manifestam contra a ditadura do partido.

Naturalmente, poder-se-ia replicar que a ditadura bolshevike usou seu poder para esmagar a resistencia dos patrões (e dos "trabalhadores atrasados"). Lamentavelmente, não foi o caso. Primeiramente, precisamos destacar que os anarquistas não são contra a defesa da revolução nem contra a expropriação de poder e dos bens da classe dominante. Não defendemos que a revolução em si não precise de defesa, muito pelo contrário, a questão é como a revolução fará isso. O argumento de Lenin é tão inválido quanto confuso ao defender a revolução defendendo o partido no poder. Tratam-se de duas coisas completamente diferentes.

A "coerção revolucionária" a que Lenin se refere, aparentemente, seria dirigida contra uma parte da classe trabalhadora. Contudo, tal atitude também intimida os demais trabalhadores (da mesma forma que a repressão da burguesia não intimida apenas aqueles que estão em greve mas também aqueles que planejam entrar em greve). Do ponto de vista político, o único efeito que pode produzir é — eliminar o poder e a liberdade dos trabalhadores. Tal "coerção revolucionária" é a violência de uma minoria opressora contra uma maioria oprimida, não vice-versa. O fim da liberdade de expressão prejudica as pessoas da classe trabalhadora. A militarização do trabalho não afeta a burguesia. Ambos eliminam a democracia soviete. Conforme o dissidente comunista Gavriii Miasnokov argumentou em 1921 (respondendo Lenin):

"O problema é que, enquanto você levanta sua mão contra o capitalista, você desfere uma pancada no trabalhador. Você sabe muito bem que com tais palavras eu expresso a opinião de centenas, talvez milhares de trabalhadores que são abatidos nas prisões. Ainda permaneço em liberdade pelo simples fato de ser um veterano comunista, tenho sofrido por aquilo que acredito, e sou conhecido no meio dos trabalhadores, mas não por isso, sou apenas um simples mecânico de fábrica. Onde estou agora? Em uma prisão da checa ou, mais exatamente, preparando uma 'fuga', da mesma forma que preparei a 'fuga' de Mikhail Romanov. E repito: você levanta seu braço contra a burguesia, mas sou eu quem escarra sangue, e somos nós, os trabalhadores, que temos que arrebentar as grades das prisões [para alcançar nossa liberdade]". [citado por Paul Avrich, _G. T. Miasnikov and the Workers’ Group_]

Significativamente, Miasnikov da mesma forma que recusou denunciar os insurgentes de Kronstadt, também recusaria participar em sua repressão caso fosse chamado.

Assim, as idéias de centralização defendidas pelos leninistas são danosas para os reais avanços da revolução, ou seja, o poder e a liberdade da classe trabalhadora. Na verdade, isso pode ser visto através da história do bolshevismo.

Bambery afirma (corretamente) que "Lenin e os bolshevikes inicialmente se opunham" à formação expontânea dos sovietes em 1905. Eles justificavam sua oposição por seu "modelo de revolução se inspirar nos momentos que antecederam a revolução francesa em 1789." [Ibid.]

Na realidade, eles achavam que "apenas um partido forte ao longo das linhas de classe poderia guiar o movimento político proletário e preservar a integridade de seu programa. Esses aglomerados políticos, organizações políticas vacilantes e indeterminadas como os representantes dos conselhos de trabalhadores não ajudam, apenas representam". [P. N. Gvozdev, citado por, Oskar Anweilier, The Soviets, p. 77]

Em outras palavras, por eleger trabalhadores o soviete não representava os interesses da classe trabalhadora! Trotsky repetiu este argumento palavra por palavra em 1920 quando argumentou que "pode ser dito com completa justiça que a ditadura dos Sovietes será possível apenas através da ditadura do partido" e que não existe "nenhum substituto para ela" quando o "poder do partido" substitui o poder da classe trabalhadora. O partido, destaca, "proporciona ao Soviete a possibilidade de sair da condição de parlamento disforme de trabalhadores para se transformar num aparato da supremacia dos trabalhadores". [_Communism and Terrorism_] Agora, de que maneira o trabalhador poderia exercer esta "supremacia" quando não podia sequer escolher seus delegados nem administrar a sociedade isto nunca foi explicado.

Em 1905, os bolshevikes viram os sovietes como um rival de seu partido e exigiram que aceitassem seu programa partidário ou se tornassem meras organizações sindicais. Eles temiam que o comitê do partido fosse marginalizado pelo soviete, o que consideravam uma "subordinação da consciência ao expontaneismo". [Op. Cit., p. 78] Daí o argumento de Lenin em What is to be Done?, onde ele defende que o "desenvolvimento *expontâneo* do movimento dos trabalhadores resulta em que se subordinem à ideologia burguesa". [_Essential Works of Lenin_, p. 82] Tal perspectiva está na raiz de todos os argumentos bolshevikes para justificar o poder do partido depois da revolução de outubro.

A combinação de tais argumentos políticos inevitavelment conduz a eventos como o de Kronstadt. Diante da idéia de que o desenvolvimento expontâneo inevitavelmente conduz à dominação burguesa, qualquer tentativa de revogar a delegação bolshevike e eleger outros para os sovietes representa necessariamente uma tendência contra-revolucionária. Na medida em que a classe trabalhadora é dividida e sujeita a "vacilações" devido aos "elementos instaveis e indecisos no meio da própria massa" a classe trabalhadora torna-se incapaz de por si só administrar a sociedade. Daí a necessidade do "princípio leninista" da "ditadura do partido". E, é lógico, de eventos como Kronstadt.

Segundo Cornellius Castoriadis:

"Administrar o trabalho de outros — este é o princípio e o fim de todo ciclo de exploração. A 'necessidade' de uma categoria social específica para administrar o trabalho de outros na produção (e a atividade de outros na política e na sociedade), a 'necessidade' de uma administração de negócios separada e de um Partido para governar o Estado — é isto que o bolshevismo defende e é isto que fará imediatamente após a tomada do poder, e é para impor estas coisas que trabalham com tanto zêlo. Mas nós sabemos como tudo isso termina. Na medida em que tais idéias exercem seu papel no desenvolvimento da história — e, em última análise, elas exercem um enorme papel — a ideologia bolshevike (com a ideologia marxista por traz dela) foi um fator decisivo para o nascimento da burocracia russa". [_Political and Social Writings_, vol. 3, p. 104]

Os anarquistas sempre estiveram atentos às diferentes perspectivas políticas existentes dentro da classe trabalhadora. Nós também sempre tivemos consciência da importancia das organizações revolucionárias juntas influenciarem a luta de classes, levantando a necessidade da revolução e a criação de organizações da classe trabalhadora que possam esmagar e substituir o estado por um sistema de comunas auto-gestionárias e de conselhos de trabalhadores. Contudo, rejeitamos a conclusão bolshevike pelo poder centralizado (i.e. poder delegado para o centro) como condenado ao fracasso. Em vez disso, concordamos com Bakunin que defendeu que os grupos revolucionários precisam "não buscar algo para si mesmos, nem privilégios, nem honras nem poder" rejeitando "qualquer idéia de ditadura, custódia, controle" A "revolução seja lá onde for precisa ser criada pelo povo, e o controle supremo precisa sempre ser exercido pelo povo organizado em suas federações livres de agricultores e associações industriais . . . organizados desde a base através de delegações revolucionárias . . . [as quais] se empenharão na administração dos serviços públicos, não no exercício do governo sobre outras pessoas". [_ Michael Bakunin: Selected Writings_, p. 172]

Os anarquistas procuram influenciar diretamente o povo trabalhador, via sua influencia natural nas organizações da classe trabalhadora como conselhos de trabalhadores, sindicatos e daí por diante. Apenas pela discussão, debate e auto-atividade as perspectivas políticas da classe trabalhadora se desenvolverão e mudarão de rumo. Isto se torna impossível em um sistema centralizado baseado na ditadura de um partido. O debate e discussão são essenciais, sem isso a revolução não se desenvolve, sem isso o povo trabalhador não escolhe seus próprios delegados. Nenhuma auto-atividade se desenvolve se o governo usa de "coerção revolucionária" contra "elementos instaveis e indecisos" (i.e. aqueles que não seguem cegamente as órdens dos governantes e que tomam iniciativas por eles mesmos).

Em outras palavras, a prática bolshevista de justificar seu apoio ao poder do partido é, de fato, o mais forte argumento contra ele. Quanto mais concentrado for o poder nas mãos de poucos, mais lento será o desenvolvimento político da maior parte da população. Sem ninguém controlando seu destino, sua revolução, jamais serão taxados como tendências contra-revolucionárias.

É falso afirmar que durante uma revolução ou guerra civil é impossivel implementar uma abordagem libertária. Os anarquistas aplicaram suas idéias com muito sucesso no movimento makhnovista na Ukrania. Nas áreas sob sua proteção, os makhnovistas recusaram dizer aos trabalhadores e camponeses o que eles deveriam fazer:

"A liberdade dos camponeses e trabalhadores, reside nos próprios camponeses e trabalhadores e é ilimitada. Em todos os aspectos de suas vidas os trabalhadores e camponeses são livres para construir aquilo que eles considerem necessário. No que diz respeito aos makhnovistas — eles podem apenas assisti-los com informações, colocando à sua disposição as forças militares e intelectuais que necessitem, mas sob nenhuma circunstancia os makhnovistas podem lhes ordenar qualquer procedimento". [Peter Arshinov, _The History of the Makhnovist Movement_, p. 148]

Os makhnovistas encorajavam os trabalhadores a construir sovietes livres e sindicatos de trabalhadores para que fossem usados na administração seu próprio destino. Eles organizaram numerosas conferências de delegados de trabalhadores e camponeses para discutir desenvolvimento político e militar, e decidir como reorganizar a sociedade a partir da base de uma forma auto-gestionária. Após libertarem Aleksandrovsk, por exemplo, eles "convidaram a população trabalhadora para participar de uma conferência geral de trabalhadores na cidade . . . onde foi proposto que os trabalhadores organizassem a vida da cidade tanto quanto o funcionamento das fábricas com seus próprios recursos e suas próprias organizações". [Op. Cit., p. 149] Em contraste, os bolshevikes tentaram por duas vezes proibir os delegados do congresso (organizado pelos makhnovistas) de trabalhadores, camponeses e soldados de se reunirem (uma vez por Dybenko e a outra por Trotsky). [Op. Cit., pp. 98-104 and 120-5]

Os makhnovistas responderam que de qualquer forma fariam as conferências, "podem existir leis feitas por uns poucos que chamam a si mesmos de revolucionários, e que coloque fora-da-lei todo um povo que é mais revolucionário que eles?" e "que defende os interesses da revolução: gente do Partido ou gente do povo que colocou a revolução em movimento com seu próprio sangue?" O próprio Makhno afirmou que ele "considerou aquilo um direito inviolável dos trabalhadores e camponeses, um direito conquistado pela revolução, de chamar conferências por sua própria conta, para discutir seus assuntos". [Op. Cit., p. 103 and p. 129] Tais atitudes por parte dos bolshevikes revela que a eliminação da democracia dos trabalhadores durante a guerra civil proporcionou plenas e objetivas condições para o estabelecimento do governo de Lenin e da ideologia leninista que passou a exercer um importante papel enquanto elemento contra-revolucionário.

Dessa forma, o argumento anarquista não é um plano utópico. Pelo contrário, ele pode ser aplicado com sucesso nas mesmas circunstancias que, segundo os trotskystas, forçaram os bolshevikes agir como agiram. Como pode ser visto, havia uma alternativa viável e que foi aplicada com sucesso pelos makhnovistas (veja seção H.6 para saber mais sobre os makhnovistas).

Mais uma vez, a lógica do argumento bolshevike apresenta falhas:

"se você considerar aqueles honrados eleitores incapazes de cuidar de seus próprios interesses. Como é que eles poderiam saber escolher por eles mesmos o pastor que melhor os guiasse? E como seriam capazes de resolver os problemas da alquimia social. Como produziriam um gênio a partir dos votos de uma massa de loucos? E o que aconteceria com as minorias . . . mais inteligentes, mais ativas e a parte radical da sociedade?" [Malatesta, Anarchy, p. 53]

Daí, a necessidade da democracia soviete e da auto-gestão, das exigências da revolta de Kronstadt. Conforme Malatesta destacou, "apenas liberdade ou luta por liberdade pode ser a escola da liberdade". [_Life and Ideas_, p. 59] A "epopéia de Kronstadt" prova "*conclusivamente* que aquilo que realmente pertence aos trabalhadores e camponeses não pode pertencer *nem a governos nem a estadistas*, e que aquilo que é *governo e estadismo* não pertence *nem a trabalhadores nem a camponeses*". [Voline, The Unknown Revolution, p. 503]

As terríveis circunstancias objetivas enfrentadas pela revolução obviamente exerceram um papel chave na degeneração da revolução. Todavia, isso não conta tudo. As idéias dos bolshevikes também exerceram um papel chave nessa degeneração. Em certos aspectos, as circunstancias que os bolsheviques enfrentaram provocaram suas ações, mas é inegável que o impulso dessas ações estava enraigado na teoria bolshevike.

O trotskysta Pierre Frank pondera que o pensamento anarquista sobre as concepções burocráticas "gera burocracia" e que "são suas idéias, ou suas divergencias, que determinam o caráter das revoluções. A mais simplista espécie de idealismo filosófico curva-se ao materialismo histórico". Isto significa, aparentemente, que nós ignoramos os fatores objetivos na implantação da burocracia tais como "os atrasados do país, o baixo nível cultural, e o isolamento da revolução". [Lenin and Trotsky, Kronstadt, pp. 22-3]

Nada poderia estar tão longe da verdade, naturalmente. O que os anarquistas defendem (da mesma forma que Lenin antes da revolução de outubro) é que cada revolução está sujeita ao isolamento, ao desenvolvimento político irregular, a problemas econômicos e daí por diante (i.e. "circunstancias excepcionais"). A questão é se sua revolução pode superá-los e se suas idéias políticas podem ser alteradas sem a influência da deformação burocrática. Como podemos ver, o leninismo falhou nesse teste. Todavia, Frank não acredita nisso. Se levarmos seu (e de Trotsky) argumento a sério então concluiremos que a ideologia bolshevike não exerceu nenhum papel no desenvolvimento da revolução. Em outras palavras, ele subscreve a contraditória posição de que a política bolshevike foi essencial para o sucesso da revolução e que não exerceu nenhum papel em seu desfecho.

O que estava em jogo é que o povo ficou diante de várias opções, opções provocadas pelas condições objetivas que eles enfrentavam. As decisões tomadas seriam influenciadas pelas suas ideias — essas coisas não ocorrem automaticamente, como se as pessoas fossem pilotos de automóvel — e suas idéias são formadas pelas relações sociais que fazem parte de sua experiência. Assim, alguém que está colocado em uma posição de poder sobre outros agirá de certa maneira, tem uma determinada visão de mundo, alienada da perspectiva de uma relação social igualitária.

Foi assim, naturalmente, que as "idéias" tomaram corpo, particularmente durante a revolução. Alguns a favor da centralização, da centralização de poder e que igualava o governo do partido com o governo da classe (como Lenin e Trotsky), agindo de maneira (e criando estruturas) totalmente diferente daqueles que acreditavam na decentralização e no federalismo. Em outras palavras, são as idéias políticas que dão substância à sociedade. O que os anarquistas defendem é que o tipo de organização que as pessoas criam e trabalham molda a maneira delas agirem e pensarem. É por isso que determinado tipo de organização com uma relação de autoridade específica gera uma relação social específica. Isso obviamente afeta aqueles que estão sujeitos a ela — um sistema centralizado, hierárquico, criará relações sociais autoritárias que moldará aqueles que estão sujeitos a ele de uma forma totalmente diferente de um sistema descentralizado, igualitário. O fato de Frank negar isso revela sua ignorância sobre o materialismo filosófico, e sua submissão à lavágem celebral (burguesa) do "materialismo histórico" de Lenin (veja Lenin as Philosopher de Anton Pannekoek para mais detalhes).

Dessa forma, a atitude dos leninistas nos eventos de Kronstadt revela com clareza, que toda aquela história de fazer as coisas de baixo para cima não passou de confersa fiada, da mesma forma que os burgueses eles estabeleceram líderes que tinham que ser obedecidos. Conforme Cornellius Castoriadis argumenta:

"Agora, é preciso deixar claro que não são os trabalhadores que escrevem a história. São sempre os outros. E esses outros, seja lá quem for, tem uma existencia histórica apenas na medida que as massas estão passivas, ou ativas simplesmente para apoiá-los, e é isso precisamente o que 'os outros' nos dizem a cada oportunidade. A maior parte do tempo esses outros não possuem olhos para ver e ouvidos para ouvir os gestos e as expressões da criatividade autônoma das pessoas. Na melhor das hipóteses, eles dirigem um elogio a esta atividade desde que ela milagrosamente coincida com sua própria linha, mas eles a condenarão radicalmente, condenarão imputando a ela as mais baixas motivações, tão logo ela se desvie de sua linha mestra. Assim Trotsky descreve em termos grandiosos os anônimos trabalhadores de Petrogrado que se moviam na dianteira do partido bolshevike ou que se movimentaram durante a Guerra Civil, mas posteriormente ele passou a caracterizar os rebeldes de Kronstadt como 'pombos correio' e 'mercenários do Alto Comando Francês'. Carecem de categorias do pensamento — de células celebrais, digamos, — necessarias para compreender, ou mesmo registrar, as coisas como elas realmente são: para eles, uma atividade que não é formalmente instituída, que não possui nenhum chefe ou programa, não possui nenhum status; nunca é compreendida com clareza, exceto talvez como causadora de 'desordem' e de 'problemas'. A atividade autônoma das massas constitui por definição tudo aquilo que foi reprimido na história". [Op. Cit., p. 91]

A versão trotskysta da revolta de Kronstadt provê uma boa análise disso, pela sua contínua tentativa de retrata-la como resultado de uma conspiração branca. Na verdade, a possibilidade de que o levante tenha sido uma expontânea revolta das massas com objetivos econômicos e políticos além de ser considerada "absurdo" é também qualificada como obra de "camponeses atrasados" conduzidos por SRs e espiões. Da mesma forma que os capitalistas consideram a greve obra de "agitadores externos" e "comunistas" infiltrados entre os trabalhadores, os trotskystas apresentam uma análise de Kronstadt carregada de incompreensão ideológica e elitismo. Um comportamento independente da classe trabalhadora é tido como "atrasado" e que deve ser corrigido pela "ditadura do proletariado". Tudo isso é uma confirmação de que a ideologia bolshevike claramente exerceu um papel chave para o surgimento do stalinismo.

Os defensores do bolshevismo argumentam que esmagando a revolta "os bolshevikes não fizeram mais que sua obrigação. Eles defenderam as conquistas da revolução contra o assalto da contra-revolução". [Wright_, Op. Cit., p. 123] Em outras palavras, surgiriam outras Kronstadts se aqueles "revolucionarios" chegassem ao poder. A "vacilação temporária" das futuras revoluções devem, como Kronstadt, ser corrigidas a bala quando o Partido "estabelecer sua ditadura, mesmo que essa ditadura esmague cada vestígio dos humores passageiros da democracia dos trabalhadores". [Trotsky, citado por M. Brinton, Op. Cit., p. 78] Assim, prosseguem sem imputar qualquer condenação ao bolshevismo enquanto corrente socialista.

E, é necessário perguntar, quais, exatamente, foram estas "conquistas" da revolução que precisam ser defendidas? A supressão das greves, da independência política e das organizações dos trabalhadores, a eliminação da liberdade de expressão, de assembléia e de imprensa e, naturalmente, a eliminação da democracia soviete e sindical em favor da ditadura do proletariado. Que, naturalmente, para todos os leninistas, é uma real conquista revolucionária. Qualquer um que desfira um ataque contra essa ditadura do proletariado é, naturalmente, um contra-revolucionário (mesmo se for trabalhador). Assim:

"As atitudes no evento de Kronstadt, representou muitas vezes. . . anos após o evento, a fonte de um profundo discernimento no pensamento político dos revolucionários contemporâneos. Tais eventos podem de fato provêr um profundo discernimento sobre metas conscientes ou inconscientes, muito mais que discussões sobre economia, filosofia ou outros episódios da história das revoluções.

"Aquilo que alguem entende como socialismo é o que norteia suas atitudes. Os compêndios em torno dos eventos de Kronstadt são alguns dos problemas mais difíceis da ética revolucionária e da estratégia revolucionária: o problema dos fins e dos meios, das relações entre Partido e massas, se é que esse Partido é necessário. A classe trabalhadora é capaz de desenvolver por ela mesma um sindicato consciente? Onde isso foi levado em consideração? Quando lhe foi permitido? Até que ponto?

"A classe trabalhadora poderia desenvolver uma profunda consciência e compreensão de suas necessidades a ponto de dispensar organizações que supostamente agem em seus interesses? Alguém precisa parar para pensar quando os stalinistas ou trotskystas falam de Kronstadt como 'essencialmente, uma ação contra a classe inimiga' quando algums dos mais 'sofisticados' revolucionários se referem a ela como uma 'trágica necessidade'. Alguém precisa perguntar o quão sériamente acatam as palavras de Marx de que 'a emancipação da classe trabalhadora é uma tarefa da própria classe trabalhadora'. Levam isso a sério ou apenas falam da boca para fora? Identificam socialismo com autonomia (organizacional e ideológica) da classe trabalhadora? Ou apenas vêem sua própria sabedoria [determinando] os 'interesses históricos' dos outros, julgando aquilo que é 'lícito', construindo em torno deles a futura elite que se cristaliza e se desenvolve? Alguém precisa não só perguntar . . . mas também proporcionar uma resposta!" ["Preface", Ida Mett’s The Kronstadt Uprising, pp. 26-7]

A questão que se coloca é simples — se socialismo significa ou não significa auto-emancipação da classe trabalhadora. A justificação leninista para a supressão da revolta de Kronstadt simplesmente revela que para os seguidores do bolshevismo, quando necessário, o partido paternalmente deve reprimir a classe trabalhadora a seu bel prazer. Esse claro apoio à supressão de Kronstade implica no temor de ver a classe trabalhadora administrando e transformando a sociedade. Algo perigoso e que deve ser combatido pois a classe trabalhadora fatalmente tomará as decisões erradas (como votar no partido errado). Se os líderes do partido decidem aquilo que as massas considerem incorreto, então as massas devem ser atropeladas (e reprimidas).

Em última análise, o comentário de Wright (e dos que pensam como ele) mostra que não existe qualquer comprometimento entre o bolshevismo e o poder e a democracia dos trabalhadores. O que acontece com a auto-emancipação, o poder ou democracia dos trabalhadores quando o "estado dos trabalhadores" reprime os trabalhadores que tentam preencher suas necessidades pela construção de uma forma real de socialismo? É esta experiência do bolshevismo no poder que melhor refuta a proclamação marxista de que o estado dos trabalhadores "será democrático e participativo". A supressão de Kronstadt foi apenas mais uma de uma série de ações que os bolshevikes vinham implementando desde antes do começo da Guerra Civil, tais como a abolição dos sovietes que elegiam maiorias não-bolshevikes, a abolição da eleição de funcionários e soldados no Exército Vermelho e na Marinha e a substituição da auto-gestão dos trabalhadores na produção por administradores indicados pelo poder "ditatorial" (veja seção H.4 para detalhes).

Conforme Bakunin predisse, o "estado dos trabalhadores" jamais poderia ser "participativo" enquanto estado. Kronstadt é uma das muitas evidências empíricas que comprovam a predição de Bakunin sobre a natureza autoritária do marxismo. Tais palavras de Bakunin foram confirmadas pela rebelião de Kronstadt e pelas justificações posteriores dos bolshevikes:

"O que significa, 'proletariado como classe governante?' Significa todo o proletariado na direção do governo? Existem 40 milhões de alemães. Todos esses 40 milhões seriam membros do governo? Toda a nação governará, mas ninguém será governado. Então não haverá governo algum, estado algum; mas se existir um estado, também haverá aqueles que serão governados, que serão escravos.

"Na teoria marxista este dilema se resolve da seguinte forma. Um governo popular significa um povo governado por um pequeno número de representantes eleitos pelo povo. Os assim chamados representantes populares e governantes do estado eleitos por toda a nação com base no sufrágio universal — a última palavra dos marxistas, como da escola democrática  — é uma mentira que esconde o despotismo de um governo de minoria, uma mentira que traz consigo a perigosa e fraudulenta representação da vontade popular.

"E assim . . . se repete o moto perpétuo que desagua sempre no mesmo lugar: uma vasta maioria do povo governado por uma minoria privilegiada. Mas esta minoria, dizem os marxistas, é formada por trabalhadores. Sim, talvez, por trabalhadores padrão, os quais, logo que se tornam governantes ou representantes do povo cessarão de ser trabalhadores e começarão a olhar de cima dos píncaros do estado toda aquela massa de trabalhadores. Eles não representam o povo, representam a si próprios em suas pretenções de governar o povo . . .

"Eles dizem que este jugo estatal, esta ditadura, é uma necessidade transitória, um artifício para alcançar a completa libertação do povo: anarquia, ou liberdade, esta é a meta, e o estado, ou a ditadura, o meio. Assim, para as massas serem libertadas elas precisam primeiro ser escravizadas . . . Eles afirmam que apenas uma ditadura (a deles, naturalmente) pode criar liberdade popular. Pois nós respondemos que nenhuma ditadura pode ter outro objetivo a não ser perpetuar-se a si mesma, e que a única coisa que pode nutrir e engendrar é a escravidão do povo submetido a ela. Liberdade pode ser criada apenas pela liberdade, pela instrução de todas as pessoas e pela organização voluntária dos trabalhadores de baixo para cima". [_Statism and Anarchy_, pp. 178-9]



 
 



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