B.7 Que classes existem na sociedade moderna?

B.7.1 Por que existem classes sociais?
B.7.2 Por que a existencia de classes é negada?
B.7.3 Que significa "consciência de classe" para os anarquistas?

Para os anarquistas, a análise de classes é um importante meio de compreender o mundo e o que acontece nele. Embora o reconhecimento do fato de que realmente existem classes sociais predomine menos hoje do que no passado, isto não significa que as classes tenham acabado. Muito pelo contrário, como todos podemos ver, a classe dominante tlem sido muito mais bem sucedida hoje em obscurecer a existencia de classes do que o foi no passado .

Classe pode ser objetivamente definida como a relação entre o indivíduo e as fontes de poder dentro da sociedade que determinam sua classe. Vivemos em uma sociedade de classes na qual algumas pessoas possuem muito mais poder político e econômico do que a maioria, a qual usualmente trabalha para uma minoria que a controla e que toma decisões que afetam a todos. Isto significa que uma sociedade dividida em classes tem por base tanto a exploração como a opressão, com alguns controlando o trabalho dos outros objetivando seu próprio ganho. Os meios de opressão estão indicados na primeira parte da seção B, enquanto que a seção C (Quais são os mitos da economia capitalista?) indica exatamente como ocorre a exploração dentro de uma sociedade aparentemente baseada na liberdade e na livre escolha. Além disso, também mostra os efeitos dessa exploração no próprio sistema econômico. O impacto social e político do sistema, as classes e hierarquias que ele cria é discutido na seção D (Como o estatismo e o capitalismo afetam a sociedade?).

É importante enfatizar que a idéia de "classe trabalhadora" ser composta exclusivamente por escravos assalariados é falsa. Isto já não é válido em nossos dias, se é que foi alguma vez no passado. O poder, em termos de demitir/contratar e decidir sobre investimentos, assume uma importancia fundamental. Já não é tão seguro basear-se na propriedade de capitais para determinar a classe de uma pessoa, uma vez que muita gente da classe trabalhadora tem suas próprias posses (embora não o suficiente para sobreviver autonomamente, nem para dizer como a companhia deve funcionar). Além disso, as maiores companhias são proprietárias de outras grandes companhias, fundos de pensão, multinacionais, etc. Há, portanto, situações em que mesmo uma pessoa com grande poder pode tecnicamente ser um "escravo assalariado" (administradores, diretores, etc.) ao mesmo tempo em que, obviamente, são, na prática, membros da classe dominante.

Para a maioria dos anarquistas, existem duas classes sociais:

(1) Classe trabalhadora -- que tem que trabalhar para viver mas não tem nenhum controle real sobre isso, sobre seu trabalhao ou outras decisões que lhe dizem respeito; i.e. tem que obedecer. Nesta classe também estão incluidos os desempregados, pensionistas, etc, que tem que sobreviver daquilo que é fornecido pelo estado. Eles possuem pouca riqueza e pouco poder (oficial). Também fazem parte dela os trabalhadores do setor de serviços, a maioria deles (senão a vasta maioria) são chamados de trabalhadores de “colarinho branco”, enquanto que os trabalhadores da indústria são chamados de trabalhadores de “colarinho azul”.
    (2) Classe dominante -- aqueles que controlam e decidem sobre investimentos, que comandam a política dos primeiros escalões e que determinam a agenda do capital e do estado. Estes constituem o topo da elite, os proprietários ou os altos administradores das grandes companhias, multinacionais e bancos, donos de grandes extensões de terra, altos funcionários do estado, os políticos, a aristocracia, e daí por diante. Eles tem poder real sobre a economia e/ou o estado, e portanto, controlam a sociedade. Essa elite consiste em cerca de 5 a 15% da população.
Obviamente em qualquer sociedade existem algumas áreas “cinza”, individuos e grupos que não se situam exatamente nem na classe trabalhadora nem na classe dominante. Tais pessoas incluem aqueles que trabalham e que exercem algum controle sobre outras pessoas, p.e. poder de admitir/demitir. São pessoas que tomam decisões em menor gráu referentes aos assuntos do capital ou do estado. Esta área inclui pequenos e médios administradores, profissionais e pequenos capitalistas.

Existem algumas discussões dentro do movimento anarquista sobre se essa área "cinza" constituiria ou não uma outra classe ("média"). A maioria dos anarquistas dizem que não, a maior parte dessa área "cinza" são da classe trabalhadora, enquanto que outros (como a Class War Federation britânica) argumentam que se trata de uma classe diferente. Uma coisa é certa, todos anarquistas concordam que esta área "cinza" tem um interesse em livrar-se do sistema tanto quanto a classe trabalhadora (importante frizar aqui que aquilo que usualmente se chama de "classe média" nos EEUU e outros lugares não tem nada a ver com o que falamos aqui, pois normalmente se referem a gente da classe trabalhadora que possue um trabalho decente, casa própria, etc. Como classe é considerada uma palavra rude na polida sociedade nos EEUU, tal mistificação, pois, é de se esperar).

Embora hajam excessões a este esquema de classificação, a maioria da sociedade compartilha de interesses comuns e sofre conjuntamente diante das incertezas econômicas e da natureza hierárquica do capitalismo.

Como não há espaço aqui para abranger toda a realidade que envolve o esquema de classes, apenas desenvolveremos os aspectos mais importantes com base em nossa própria experiencia no que diz respeito aos padrões da sociedade moderna. Este esquema não deve ser compreendido como sugerindo que todos os membros de uma classe tenham interesses idênticos ou que a competição não exista entre os membros de uma mesma classe, como existe entre as classes. O capitalismo é um sistema competitivo por natureza. Conforme Malatesta declarou, "é necessário ter em mente que por um lado a burguesia (o proprietário privado) está o tempo todo em guerra entre eles mesmos . . .e que por outro lado, o governo, saltitando diante da burguesia como seu servo e protetor, tende, como todo servo e todo protetor, alcançar sua própria emancipação e dominar aqueles que protege. Este jogo de corpo, manobras, tramas, concessões, procura encontrar aliados entre algumas pessoas e entre os conservadores contra o povo, que é a ciência dos governantes, e que cega os ingênuos e apáticos que sempre esperam pela salvação que virá para eles de algum lugar lá em cima". [Anarchy, p. 22]

De qualquer forma, não importa o gráu de rivalidade que impere dentro da classe dominante, a qualquer ameaça a esse sistema no qual se deleitam, ela sempre se unirá para defender seus interesses comuns. Uma vez passada a tormenta, eles voltarão a se comer entre si pelo poder, por mais espaço no mercado e por riqueza às custas dos trabalhadores. Infelizmente, a classe trabalhadora raramente se une enquanto classe e continua pagando os pesados impostos da sua economia crônica e da sua posição social precária. As coisas apenas melhoram quando alguns setores se unem e passam a experimentar os benefícios e o prazer da cooperação. Os anarquistas, pelas suas idéias e ação tentam mudar esta situação e encorajar a solidariedade no seio da classe trabalhadora de forma a resistir, e destruir tudo aquilo que os oprime, o capitalismo e seu protetor, o estado. Portanto, essa atividade é fortalecida pelo fato de que aqueles que lutam frequentemente constatam que "solidariedade é força" e que nada os auxilia tanto quanto começar a trabalhar juntos unindo suas forças contra o inimigo comum. Além do mais, a história está cheia desses exemplos.
 
 
"nossas instituições sociais estão fundamentadas em certas idéias; enquanto elas forem em geral aceitas como verdade, as instituições construidas sobre elas estarão seguras . . . a debilidade das idéias que sustentam o mal e as condições opressivas se constituem no [calcanhar de Aquiles] do governo e do capitalismo" Alexander Berkman

 

"nossas instituições sociais estão fundamentadas em certas idéias; enquanto elas forem em geral aceitas como verdade, as instituições construidas sobre elas estarão seguras . . . a debilidade das idéias que sustentam o mal e as condições opressivas se constituem no [calcanhar de Aquiles] do governo e do capitalismo" Alexander Berkman

B.7.1 Existem mesmo classes sociais?

Existem mesmo classes sociais ou será que foram os anarquistas que as inventaram? É de suma importancia considerar esta questão particularmente diante dos esforços da classe dominante em difundir uma propaganda que busca suprimir a consciência de classe, coisa que discutiremos mais tarde. Primeiramente, vamos examinar algumas estatísticas, tomando os EEUU como um exemplo (na maioria das vezes raramente se fala a respeito de classe, embora a classe dominante seja dotada de uma completa consciência de classe). Em 1986 o total da renda nos EEUU se distribuia da seguinte forma:

Um terço para os 60% da base da sociedade, um terço para os próximos 30% e um terço para os 10% mais ricos. Em termos da riqueza nacional total (ou Produto Nacional Bruto), um terço ficava com os 90% da base da sociedade, um terço com os próximos 9% da população e um terço com os 1% mais ricos. Desde então, os 1% mais ricos aumentaram sua quota para mais 40%, numa mostra que o abismo que separa as classes em muito se alargou durante a última década (veja abaixo).

Em 1983 os 5% mais ricos possuiam mais de 45% de toda riqueza privada da nação. Incluindo 47% de todo o patrimônio das corporações, 62% dos títulos isentos de taxas, e 77% de todos os créditos. 60% de todas as familias dos EEUU possuiam menos que $5,000 em ítens de propriedade pessoal (ipp). Metade possuia menos de $2,300 em ipp. Em 1986, 1% das famílias mais ricas possuia cerca de 53% do total da renda no país. Apenas cerca de 51 milhões de americanos possuiam diretamente mercadorias ou parcelas em fundos mútuos de mercadorias, representando cerca de 19% da população americana onde os 5% mais ricos detinham 95% de toda a produção do país. O 1% mais rico nos EEUU (cerca de 2 milhões de adultos) possuia sozinho 35% das mercadorias em 1992 - enquanto que os 10% mais ricos possuiam mais de 81%. Os 90% mais pobres da população dos Estados Unidos tinham menos que (23%) de todas as espécies de capitais investíveis enquanto que os 0,5% mais ricos possuiam 29% desses capitais.

No mundo industrializado, os Estados Unidos estão em primeiro lugar em pobreza -- Vivem em pobreza 17% daqueles que estão abaixo dos 18 anos, o que representa cerca de 15% do total da população. 22% angaria menos que a metade da renda média. Cinquenta por cento das crianças afro-americanas viviam na pobreza em 1986.

Todos estes fatos demonstram que as classes de fato existem. A riqueza e o poder estão concentrados no topo da sociedade mãos de uns poucos.

Os dados a seguir do US Census Bureau mostram os índices de polarização da riqueza,
que demonstram como o abismo entre as classes aumentaram nos últimos 20 anos:

Quota Percentual com Base nos Agregados à Renda Familiar (quintilho): 1974-1994
  Mais Pobres Segundo Quintilho Terceiro Quintilho Quarto Quintilho Mais Ricos Topo 5%
1974: 4.3 10.6  17.0 24.6 43.5 16.5
1984: 4.0 9.9 16.3 24.6 45.2 17.1
1994: 3.6 8.9 15.0 23.4 49.1 21.2
Percentagem de enriquecimento/empobrecimento de 1974 a 1994:
Mais Pobres: -16%
Segundo Quintilho: -16%
Médio Quintilho:  -11.7%
Quarto Quintilho:  -4.9%
Mais Ricos:  +12.9%
Topo 5%:  +28.5%

Em 1994, o abismo que separava a renda dos mais ricos (49.1%) e dos mais pobres (3.6%) foi o maior jamais registrado anteriormente. Claramente isto não aconteceu apenas no âmbito familiar. Os dois-quintos mais pobres perderam terreno nos últimos 20 anos, o mesmo acontecendo com o médio quintilho. O ganho de um típico trabalhador de tempo integral caiu mais de $300 em 1993. De fato, conforme pode ser visto pela queda percentual, espantosamente os ganhos de 80% da população entraram em declínio ao mesmo tempo em que o topo dos 20% se tornavam mais ricos que estavam anteriormente. E tudo isso fica ainda mais escandaloso quando vemos que dos 9.9 por cento do topo 12.9 por cento tiveram um enriquecimento superior a 5 por cento.

Embora a taxa percentual de riqueza pessoal dos indivíduos e famílias mais ricas nos EEUU tenham crescido no quintilho médio, o gráu de concentração de riqueza no topo acelerou bem mais durante durante os últimos 8 anos batendo seu próprio record. Conforme uma reportagem do New York Times, o número de bilionários quase dobrou em 1986 -- passando de quatorze para vinte e seis -- em apenas um ano!

Aqueles que mais ganharam com a concentração de riqueza nestas últimas duas décadas foram os super-ricos. Não é atoa que os políticos dos EEUU recentemente reforçaram sua munição retórica anti-classe!

O recente crescimento na polarização da riqueza deve-se em parte ao crescimento da globalização do capital, que reduz os salarios dos trabalhadores nos países industrialmente avançados pela competição com o Terceiro Mundo. Isto, combinado com uma política econômica que enquanto isenta os ricos de pagarem impostos, aumenta impostos para as classes trabalhadoras. A manutenção da taxa "natural" de desemprego (que enfraquece os sindicatos e o poder dos trabalhadores) juntamente com o corte nos programas sociais, contribuem para uma séria erosão nos padrões de vida de todos especialmente nos extratos mais baixos da sociedade -- um processo que claramente conduz ao caos social, com efeitos que serão discutidos mais tarde (veja seção D.9).

Conforme observou Doug Henwood, "no âmbito internacional os Estados Unidos ficam em uma situaçào vergonhosa . . . os dados coletados pelo LIS [Luxembourg Income Study] revelam que para um país [tão] rico, existem [por demais] pessoas pobres". Henwood concluiu que tanto as medidas relativas como as absolutas do crescimento da pobreza,  utilizadas na pesquisa do LIS de distribuição de renda, revelaram que "para um país que se considera como um país de classe média [i.e. renda média], os Estados Unidos possuem a segunda menor classe média dos dezenove países pesquisados pela LIS". Apenas a Russia, um país em quase total colapso foi pior (40.9% da população recebiam renda média comparada com 46.2% nos EEUU). As famílias classificadas como pobres participaram com abaixo de 50 por cento da renda média nacional; próximas à pobreza entre 50 e 62.5 por cento; médios, entre 62.5 e 150 por cento; e abastados, acima de 150 por cento da renda média nacional. O índice de pobres nos EEUU (19.1%), perto da pobreza (8.1%) médio (46.2%) foram piores que os países europeus como Alemanha (11.1%, 6.5% e 64%), França (13%, 7.2% e 60.4%) e Bélgica (5.5%, 8.0% e 72.4%) tanto quanto Canada (11.6%, 8.2% e 60%) e Australia (14.8%, 10% e 52.5%).

Razões para isso? Henwood afirma que as "razões são claras -- sindicatos fracos e um estado fraco na área social. Os estados sociais-democratas -- os que mais interferem nas rendas de mercado -- tem a maior [classe média]. O índice de pobreza nos EEUU está duas vezes mais próximo do décimo oitavo no ranking". É desnecessário dizer, que as palavras "classe média" com base na renda é um termo bastante obtuso (conforme Henwood afirma). O termo não tem nenhuma abrangencia sobre a propriedade privada ou o poder social, por exemplo. A renda é muitas vezes tomada na imprensa capitalista como aquilo que define o aspecto "classe" e usualmente a utiliza para análises visando provar que o livre mercado promove um bem estar generalizado (i.e. aumenta a "classe média"). O fato de que a nação que mais pratica o livre-mercado ter o pior índice de pobreza e a menor "classe média" comprova a afirmação anarquista de que o capitalismo, pela sua própria natureza, beneficia sempre o forte (a classe dominante) em detrimento do fraco (a classe trabalhadora) via "livre troca" no "livre" mercado (conforme exposto na seção C.7, apenas durante períodos de pleno emprego -- e/ou alto nível de militancia e solidariedade entre a classe trabalhadora -- a balança de forças muda em favor daqueles que pertencem à classe trabalhadora. Não é de surpreender que tais períodos de pleno emprego também sejam acompanhados com queda  na desigualdade -- veja o trabalho de James K. Galbraith's Created Unequal para mais detalhes com relação a desemprego e desigualdades).

Naturalmente, pode-se objetar que esta medida relativa de pobreza e renda ignore o fato de que a renda nos EEUU esteja entre as mais altas do mundo, significando que os pobres dos EEUU estariam muito bem diante dos padrões estranjeiros. Henwood refuta essa afirmação, observando que "mesmo em termos absolutos, a performance dos EEUU é embaraçosa. Lane Kenworthy pesquisadora do LIS estimou os índices de pobreza de quinze países usando a linha de pobreza dos EEUU como base de referencia . . . Embora os Estados Unidos tenham o mais alto índice de renda, está longe de ter o mais baixo índice de pobreza". Apenas a Italia, Inglaterra e Austrália tem altos níveis de pobreza absoluta (a Australia excede os valores dos EEUU em 0.2%, 11.9% comparado com 11.7%). Tanto em termos absolutos como relativos, os EEUU estão em má situação diante dos paises Europeus. [Doug Henwood, "Booming, Borrowing, and Consuming: The US Economy in 1999", pp.120-33, Monthly Review, vol. 51, no. 3, pp. 129-31]

Diante destes fatos, muitos defensores do capitalismo silenciam diante do óbvio. Eles confundem sistema de castas com sistema de classes. Em um sistema de castas, aqueles que nascem numa determinada condição permanecem assim por toda vida. Em um sistema de classes, os membros das classes podem com o tempo passar de uma para outra. Portando, afirmam, o que é importante não é a existencia de classes mas a mobilidade na renda. De acordo com esse argumento, se existe um alto nível de renda em movimento então o gráu de desigualdades em algum ano em particular não é importante. Isto porque a redistribuição da renda cedo ou tarde irá acontecer. Infelizmente esta visão dos defensores do capitalismo é profundamente enganosa.

Primeiro, porque o fato de haver uma mobilidade da renda entre os membros das classes não cancela o fato de que o sistema de classes é marcado por diferenças em poder que acompanham as diferenças em renda. Em outras palavras, por ser possível (em teoria) alguém tornar-se um patrão isso não torna o poder e a autoridade desse novo patrão sobre os trabalhadores (ou o impacto de sua riqueza na sociedade) mais legítima (apenas porque alguém - teoricamente - pode tornar-se um membro do governo não faz o governo nem um pouco menos autoritário). O fato dos membros da classe patronal poderem ser mudados não nega que essa classe exista.

Segundo, porque a mobilidade de renda sob o regime capitalista é limitada.

Tomando os EEUU como exemplo (usualmente considerado como um dos países mais capitalistas do mundo) existe uma mobilidade de renda, mas não o suficiente para tornar as desigualdades na renda irrelevantes. Os dados do censo mostram que 81.6 por cento daquelas famílias que estavam no quintilho da base de distribuição de renda em 1985 viram uma parte da sua já escassa renda ser transferida para os quintilhos superiores.

Durante longos períodos de tempo existe alguma transferencia de renda mas não o suficiente para aqueles que permanecem nos diferentes quintilhos sairem dos limites de sua categoria (p.e. a renda que escoa do quintilho do topo tipicamente vai para a base dessa mesma categoria). Apenas cerca de 5% das famílias alçam da base para o topo, ou caem do topo para a base. Em outras palavras, a estrutura de classe na moderna sociedade capitalista é consideravelmente sólida e "muito de seu movimento de sobe e desce representa flutuações regulares fixas de distribuição a longo prazo [dentro de uma mesma categoria]". [Paul Krugman, Peddling Prosperity, p. 143]

Será que sob um sistema capitalista "puro" as coisas funcionariam de forma diferente? Ronald Reagan ajudou a fazer um capitalismo mais "livre mercado" na década de 80, mas não existe nenhuma indicação de que a mobilidade da renda tenha crescido significativamente naquele tempo. De fato, de acordo com os estudos desenvolvidos por Greg Duncan da Universidade de Michigan, a classe média encolheu durante os anos 80, com menos famílias pobres se movimentando para cima ou famílias ricas se movendo para baixo. Duncan comparou dos dois períodos. Durante o primeiro período (1975 a 1980) a distribuição (em termos relativos) de renda era mais igual do que é hoje. No segundo período (1981 a 1985) a desigualdade de renda começou a se elevar. Neste período houve uma redução na mobilidade da renda de cima para baixo para as rendas médias acima de 10%.

Aqui está o quadro exato [citado por Paul Krugman, em "The Rich, the
Right, and the Facts," The American Prospect no. 11, Fall 1992, pp. 19-31]:

Percentagens de familias fazendo transições para e da
classe média (período de 5 anos antes e depois de 1980)
Transição Antes de 1980 Após 1980
Renda média para renda baixa 8.5 9.8
Renda média para renda alta 5.8 6.8
Renda baixa para renda média 35.1 24.6
Renda alta para renda média 30.8 27.6

É por isso que Doug Henwood, com razão, argumenta que "o apelo final dos apologistas do 'american way of live' enquanto apelo para nossa legendária mobilidade" é completamente falho. De fato, "as pessoas geralmente não se afastam do nível de renda da classe em que nasceram, e é pouca a diferença entre a mobilidade nos EEUU e a mobilidade nos padrões europeus. De fato, os Estados Unidos tem a maior quota daquilo que o OECD chamou de trabalhadores de 'salário baixo', e a mais pobre performance na emerção dos salários mais inferiores de todos os países estudados". [Op. Cit., p. 130]

Portanto, a mobilidade da renda não descaracteriza um sistema de classes. O sistema de classes resulta em relacionamentos sociais autoritários e desigualdades em termos de liberdade, riqueza e influencia social. E os fatos sugerem que o dogma capitalista da "meritocracia" que tenta justificar este sistema não tem nenhuma base na realidade.
 
"As universidades, institutos e fundações privadas de pesquisa 
são também importantes ferramentas da classe dominante"


 

B.7.2 Por que os ricos se esforçam tanto tentando negar a existencia de classes?

Está claro, pois, que existem classes, e também está igualmente claro que indivíduos podem subir e descer dentro dessa estrutura de classe -- naturalmente, para aquele que nasce numa família rica é bem mais fácil tornar-se rico do que aquele que nasce numa família pobre. Tanto que James W. Loewen afirmou que "noventa e cinco por cento dos executivos e financistas na América na virada do século vieram das classes abastadadas ou da classe média alta. Menos de 3 por cento veio de imigrantes pobres ou de camponeses. Durante o século dezenove, apenas 2 por cento dos industriais da América tiveram suas orígens na classe trabalhadora" [em "Lies My Teacher Told Me" citando William Miller, "American Historians and the Business Elite," em Men in Business, pp. 326-28; cf. David Montgomery, Beyond Equality, pg. 15]. E isto nos EEUU do capitalismo de "livre mercado". Conforme análise feita por C. Wright Mills registrada em seu livro The Power Elite, cerca de 65% dos ordenados mais elevados (CEOs) nas corporações americanas provém de famílias ricas. Meritocracia, no final das contas, não implica em "ausência de classes" apenas demonstra que existe alguma mobilidade entre as classes. Apesar de tudo que foi relatado, ainda ouvimos repetidamente alguém dizer que o conceito de classes está fora de moda; que não existem mais classes, mas apenas individuos atomizados que compartilham de "oportunidades iguais", de "igualdade perante a lei", e outras asneiras semelhantes. Por que isso acontece?

O fato da imprensa capitalista ser a maior promotora da falsa idéia do "fim-das-classes" nos leva a pensar por que faz isso. Quem sai beneficiado com a negação da existencia de classes? Claramente são aqueles que operam o sistema de classes, aqueles que se aproveitam dele, aqueles que querem que todos pensem que todos são "iguais". Aqueles que controlam a grande imprensa não querem que a idéia de classes se espalhe porque eles mesmos são membros da classe dominante, com todos os privilegios que isso implica. Por isso utilizam os meios de comunicação como órgãos de propaganda para moldar a opinião pública e desviar a classe média e os trabalhadores desse assunto crucial, i.e., sua condição de subordinação. É por isso que os grandes meios de comunicação em seus boletins noticiosos não nos fornecem nada além de análises superficiais, baseadas em reportágens pré-selecionadas, com equipes que são treinadas para mentir. Obstacularizam os fatos reais através do jornalismo amarelo, da titulação, e do "entretenimento", jamais falam sobre a natureza classista da sociedade capitalista (veja D.3, "Como a riqueza influencia os meios de comunicação de massa?")

As universidades, institutos e fundações privadas de pesquisa são também importantes ferramentas das classes dominantes. É por isso que virtualmente é tabú nos círculos acadêmicos atuais sugerir alguma coisa como a existencia de uma classe dominante nos Estados Unidos. Os estudantes são doutrinados com o mito da sociedade "pluralista" e "democrática" -- uma terra do São Nunca onde todas as leis e políticas públicas são supostamente determinadas apenas através do "suporte público" que possuem -- certamente nada a respeito daquela pequena fração com um poder desproporcional a seu tamanho.

A negativa constante da existencia de classes é uma poderosa ferramenta nas mãos dos poderosos. Conforme Alexander Berkman afirmou, "nossas instituições sociais estão fundamentadas em certas idéias; enquanto elas forem no geral aceitas como verdade, as instituições construidas sobre elas estarão seguras . . . a debilidade das idéias que sustentam o mal e as condições opressivas se constituem no [calcanhar de Aquiles] do governo e do capitalismo". [ABC of Anarchism, p. xv]

Consumidores isolados não estão em posição de agir em favor de si mesmos. Um indivíduo que luta sozinho é facilmente derrotado, ao passo que uma união de indivíduos que se apoiam mutuamente tem mais condições de resistir e vencer. A história do capitalismo se constitui na constante tentativa da classe dominante -- muitas vezes com sucesso -- de destruir as organizações da classe trabalhadora. Por que? Porque existe poder na união -- poder que pode destruir tanto o sistema de classes como o estado que o apóia e criar um novo mundo.

É por isso que a verdade da existencia de classes é negada pela elite. Esta negação é parte de sua estratégia para ganhar na batalha das idéias e assegurar que o povo permaneça na condição de indivíduos atomizados. Pela "fabricação do consentimento" (para usar a expressão de Walter Lipman qualificando a função da media), se busca forçar a necessidade de não usá-lo. Em função da limitação dos recursos públicos de informação e de propaganda monopolizados pelo estado e pelas elites corporativas, todo debate pode ser confinado à estreita estrutura conceitual da terminologia e da lógica capitalista, e qualquer premissa que resvale em uma estrutura conceitual diferente pode ser marginalizada. Dessa forma o indivíduo mediano é levado a aceitar a presente sociedade como "boa" e "justa", ou no mínimo "a melhor dentro do possível". Não há espaço para que se discuta nenhuma alternativa fora disso.

B.7.3 O que os anarquistas querem dizer com "consciência de classe"?

Dado que a existencia de classes é muitas vezes ignorada ou considerada sem importancia ("patrões e trabalhadores tem interesses comuns") pela grande imprensa, é de suma importancia continuadamente apontar o fato de que uma elite rica domina o mundo e de que a vasta maioria da população está sujeita à hierarquia e trabalha para enriquecer outros.

É por causa disso que os anarquistas enfatizam a necessidade de uma "consciência de classe", do reconhecimento da existencia de classes e de que seus interesses estão em conflito. Ser consciente significa estar a par dos fatos objetivos e agir apropriadamente para mudar a realidade. Num primeiro momento a idéia de classes pode parecer coisa de romance, mas o conflito de interesses das classes é muito bem reconhecido pelo outro lado da divisão de classes. Por exemplo, James Madison em Federalist Paper #10 afirma que "aqueles que possuem e aqueles que não possuem tem interesses distintos na sociedade". Para anarquistas, consciência de classe significa o reconhecimento de que os patrões já conhecem a importancia da solidariedade entre eles enquanto classe e que agir juntos como iguais os ajuda a alcançar metas comuns. Contudo, os anarquistas acham que a consciência de classe precisa também significar ser avesso a todas as formas de poder hierárquico, e não apenas à opressão econômica.

Consequentemente se poderia argumentar que os anarquistas atualmente pretendem desenvolver uma consciência "anti-classe" -- ou seja, que as pessoas reconheçam que existem classes, que as pessoas compreendam porque elas existem, e que atuem para abolir radicalmente as causas da sua continuada existencia ("consciência de classe", argumenta Vernon Richards, "mas não no sentido de querer perpetuar as classes, mas a consciência de sua existencia. Uma compreensão de que elas existem, e a determinação, fortalecida pelo conhecimento e pela militancia, de aboli-las." [The Impossibilities of Social Democracy, p. 133]). Resumidamente, os anarquistas querem eliminar as classes, não universalizar as classes de "trabalhadores" (que pressupõe a continua existencia do capitalismo).

Mais importante, consciência de classe não envolve "veneração do trabalho" ou "sacralização do trabalhador". Pelo contrário, conforme Murray Bookchin afirmou, "o trabalhador [ou a trabalhadora] começa a tornar-se um revolucionário [ou revolucionária] quando ele ou ela abandona sua "carcaça de trabalhador", e começa a detestar seu status de classe aqui e agora, quando ele ou ela começa a desprezar . . . sua ética do trabalho, sua estrutura de caráter derivada da disciplina industrial, seu respeito pela hierarquia, sua obediencia a líderes, seu consumismo, seus vestígios de puritanismo". [Post-Scarcity Anarchism, p. 189].  Por fim, os anarquistas "nada podem construir até que a classe trabalhadora abandone suas ilusões, sua aceitação de patrões e sua fé em líderes". [Marie-Louise Berneri, Neither East Nor West, p. 19]

Pode-se objetar que existem alguns indivíduos e anarquistas que estão tentando colocar uma porção de pessoas dentro de uma caixa e colocar o rótulo "classe trabalhadora" nela. Em resposta, os anarquistas concordam, sim, existem "alguns" indivíduos mas alguns deles são patrões, a maioria deles são da classe trabalhadora. Isto é uma objetiva divisão dentro da sociedade que a classe dominante fabricou em seu melhor estilo mas que não funciona durante a luta social. E tal luta é parte do processo em que mais e mais pessoas oprimidas subjetivamente reconhecerão os fatos objetivos. E mais e mais pessoas reconherão os fatos da realidade capitalista, mais e mais pessoas irão querer mudar esta situação.

Correntemente existem pessoas da classe trabalhadora que desejam uma sociedade anarquista e existem outros que apenas querem alcançar um posto hierárquico para poder impor sua vontade a outros. Mas isto não altera o fato de que sua corrente posição é de que estão sujeitos à autoridade da hierarquia e portanto estão em conflito com isto. E apenas fazendo algo e praticando uma auto-atividade como parte integrante de sua luta é que podem mudar suas mentes, aquilo que pensam e fazem, e apenas essas coisas os tornam radicais. Portanto, os efeitos radicais da auto-atividade e da luta social, são um fator chave no qual os anarquistas estão envolvidos. E isto se constitui num importante meio de criar mais anarquistas e reunir mais e mais pessoas em torno do anarquismo como uma alternativa viável ao capitalismo.

Em última análise, não importa a que classe você pertença, o que importa é aquilo em que acredita. Aquilo que você faz. Por isso nós vemos anarquistas como Bakunin e Kropotkin, reconhecidos membros da classe dominante Russa, ou mesmo Malatesta, nascido de uma família de classe média italiana, rejeitanto suas orígens, seus privilégios e tornando-se defensores da auto-libertação da classe trabalhadora. Contudo, os anarquistas baseiam suas atividades primariamente na classe trabalhadora (incluindo camponeses, artesãos auto-empregados e daí por diante) porque a classe trabalhadora está sujeita à hierarquia e tem uma real necessidade de resistir para existir. Este processo de resistencia aos poderosos que pode e deve ser radicalizado afeta todos que estão envolvidos no processo sendo que aquilo que eles crêem e fazem é que provoca a mudança.

Reconhecemos, contudo, que apenas aqueles que estão na base da sociedade tem um auto-interesse em libertarem-se a si mesmos do jugo daqueles que estão no topo, e desta forma nós vemos a importancia da consciência de classe na luta do povo oprimido por auto-libertação. Portanto, "longe de crer em papéis messiânicos da classe trabalhadora, a finalidade anarquista é a abolição da classe trabalhadora no sentido lato do termo para esta maioria sem privilégios em todas as sociedades existentes . . . O que queremos dizer é que nenhuma revoluçào pode ser bem sucedida sem a ativa participação das seções trabalhadoras, produtoras da população . . . O poder do Estado, os valores da sociedade autoritária podem ser mudados e destruídos apenas por um grande poder e por novos valores". [Vernon Richards, The Raven, no. 14, pp. 183-4]. Os anarquistas também argumentam que um dos efeitos da ação direta para resistir à opressão e à exploração das pessoas da classe trabalhadora será a criação de tal poder e dos tais novos valores, valores baseados no respeito à liberdade individual e na solidariedade (veja seções J.2 e J.4 sobre ação direta e seu potencial libertador).

Para os anarquistas, "a luta de classes não está centrada apenas em torno de exploração material mas também em torno da exploração espiritual, . . . psicológica e opressão ambiental". [Bookchin, Op. Cit., pp. 229-230]. Isto significa que não consideramos a opressão econômica como a única coisa que importa, ignorando as lutas e as formas de opressão fora do local de trabalho. Pelo contrário, trabalhadores são seres humanos, não são robôs dirigidos economicamente pelas mitologias leninista e capitalista. A luta de classes diz respeito a cada coisa que afeta os seres humanos, seus parentes, suas crianças, seus amigos, seus vizinhos, seu planeta e, até mesmo, totais estranhos.

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