SIGNIFICADO E SKEPSIS

NAS INVESTIGAÇÕES DE WITTGENSTEIN [1]

Nythamar Fernandes de Oliveira



 

ABSTRACT: This article offers some reflections on the theory of meaning in the first and second Wittgenstein, so as to show how the latter's conception of language-games entails a sort of skepticism insofar as rule-following acts are concerned.

KEY WORDS: meaning, language-games, following a rule, skepticism.

SUMÁRIO: Este artigo apresenta algumas reflexões acerca da teoria do significado no primeiro e no segundo Wittgenstein, mostrando como o conceito de jogos de linguagem no segundo implica uma forma de ceticismo quanto ao ato de seguir uma regra.

PALAVRAS-CHAVE: significado, jogos de linguagem, seguir uma regra, ceticismo.

"Skeptizismus ist nicht unwiderleglich, sondern offenbar unsinnig, wenn er bezweifeln will, wo nicht gefragt werden kann". (T 6.51)

"O ceticismo não é irrefutável, mas manifestamente um contra-senso (unsinnig), se pretende duvidar onde não se pode perguntar." (T 6.51)

"Ist es aber eine genügende Antwort auf die Skepsis der Idealisten oder die Versicherungen der Realisten: 'Es gibt physikalische Gegenstände' Unsinn ist? Für sie es doch nicht Unsinn". (UG 37)

"Mas seria uma resposta adequada à skepsis dos idealistas ou às seguranças dos realistas dizer que "há objetos físicos" é um contra-senso (Unsinn)?Afinal, para eles não é contra-senso." (UG 37)

 

1. Antes de mais nada, consideremos um problema de terminologia: "contra-senso", seguindo Luiz Henrique Lopes dos Santos (cf. Tractatus 4.003, 6.51), traduz em português o substantivo Unsinn (em inglês nonsense) e sua forma adjetivada unsinnig (non-sensic), equiparando-o a Widersinn. A concepção de Bedeutung (significado, significação) em Wittgenstein deve ser, assim, contrastada com a de Frege, por um lado, e a de Husserl, por outro.[2] Segundo Frege, as duas expressões "1+1+1+1" e "(1+1)+(1+1)" têm o mesmo significado (dieselbe Bedeutung), portanto a mesma referência, mas sentidos diferentes (verschiedenen Sinn) (T 6.231). O autor do Tractatus se propõe a mostrar que "a identidade de duas expressões não se pode asserir" (6.2322), sendo portanto impossível dizer o que pode ser apenas mostrado. "O que pode ser mostrado não pode ser dito" (Was gezeigt werden kann, kann nicht gesagt werden, 4.1212), visto que "a proposição mostra seu sentido" (Der Satz zeigt seinen Sinn, 4.022). Husserl também se opôs à solução fregiana da referência enquanto significado, através das funções de valores de verdade que constituem o sentido de proposições. Assim, duas proposições providas de sentidos diferentes como "a estrela da tarde é um planeta" e "a estrela da manhã é um planeta" atribuem a mesma propriedade ao mesmo objeto. Enquanto Frege identifica Gegenstand e Bedeutung ao expressar o valor de verdade do conceito como referência, Husserl associa conceitos (Begriffe) a objetos (Gegenstände) na relação lógica a fatos (Beziehungen) que constituem objeto do pensamento (Gedanke). Em suma, o que Frege denomina Sinn e Bedeutung corresponde, respectivamente, a Bedeutung e Gegenstand em Husserl. O contra-senso (Widersinn) não é, estritamente falando, desprovido de sentido (sinnlos), ao contrário do não-senso (Unsinn) que não possui nenhum uso lingüístico. Bedeutung e Sinn se equivalem, portanto, na medida em que realizam uma performance de sentido, uma significação (Bedeutungserfüllung). Se para o cético a proposição "há objetos físicos" não é contra-senso (Unsinn), é porque a linguagem ordinária da vida comum nos ensina a distinguir o que faz sentido, "ein sinnvolle Satz", um pensamento possível, um objeto que possa ser pensado, de um contra-senso (Widersinn) ou daquilo que não faz sentido (Unsinn, sinnlos). Por exemplo, o conceito de uma filosofia cristã é, para Heidegger[3] e para muitos, um "quadrado redondo", um Widersinn, enquanto uma construção do tipo "verde canta foi" é simplesmente sinnlos, desprovida de sentido. O enunciado "há objetos físicos" exprime uma proposição com sentido (ein sinnvolle Satz), portanto, a possibilidade lógica de um pensamento. Até aqui o autor do Tractatus não entraria em conflito com o autor das Investigações. No mesmo aforismo supracitado sobre o ceticismo, o autor do Tractatus afirma que "só pode existir dúvida onde exista uma pergunta; uma pergunta, só onde exista uma resposta; e esta, só onde algo possa ser dito".(T 6.51) Do mesmo modo, para o autor das Investigações, o passo seguinte de asserir que realmente 'há objetos físicos', como dizer que 'W' significa W, não pode ser dito sem já não ter sido mostrado. Significar é mostrar, na medida em que "o que uma palavra significa, uma proposição não pode dizer"("Was ein Wort bedeutet, kann ein Satz nicht sagen", PG I Anhang 3). Mas por que o próprio Wittgenstein rejeitaria, mais tarde, a chamada concepção ostensiva da linguagem? Esta questão implicaria muitas outras, incluindo o problema da metafísica e da ética nestes escritos, mas limitar-me-ei aqui ao problema do significado. O ponto de partida deste artigo reduz-se à simples constatação de que, tanto no Tractatus quanto nas Investigações, Wittgenstein procura distanciar-se de uma teoria referencial do significado, em particular, do logicismo de Frege e Russell no "primeiro" e da semiologia ostensiva no "segundo" Wittgenstein. Com efeito, a oposição entre o atomismo lingüístico no Tractatus e o suposto "ceticismo de regras" (rule-skepticism) nas Investigações Filosóficas constitui a problemática central de um inacabado debate sobre a teoria do significado em Wittgenstein. Este debate será aqui reexaminado a partir do artigo seminal de Saul Kripke sobre "Regras e Linguagem Privada em Wittgenstein"[4] e das subseqüentes críticas empreendidas por Colin McGinn e G.P.Baker & P.M.S. Hacker.[5] Não se trata de reavaliar a controversa recepção de Wittgenstein entre filósofos analíticos de língua inglesa, nem mesmo de resgatar uma teoria wittgensteiniana do significado através dos seus escritos de ambas as fases (antes e depois do seu retorno a Cambridge em 1929). Proponho-me tão-somente reexaminar a concepção wittgensteiniana do significado como uso (Bedeutung als Gebrauch), na passagem da chamada "teoria figurativa da proposição" no Tractatus a uma "teoria de jogos de linguagem" nas Investigações. É nesta passagem que procurarei localizar a atitude de Wittgenstein em relação à skepsis da "suspensão de juízo" (epochê)[6] quanto à determinação e formulação das regras que asseguram o significado e a compreensão daquilo que está em jogo num dado contexto lingüístico.

2. Nas suas Investigações Filosóficas, Wittgenstein explora entre outros problemas, os conceitos de significado e compreensão ("Den Begriff der Bedeutung, des Verstehens" Prefácio ix). O problema da "linguagem privada" constitui igualmente um dos mais importantes temas lingüísticos analisados pelo "segundo" Wittgenstein nas Investigações (PU § 243 ss). Entre as passagens mais intrigantes que tratam dos conceitos de significado e compreensão em conexão com o argumento da "linguagem privada" estão as duas situações no § 293 (a minha dor/o meu besouro; a dor/o besouro de outrem). Apesar de nenhum destes conceitos ser explicitamente articulado neste parágrafo, ambos são supostos para "saber o que a palavra 'dor' significa" ou o que é designado por "besouro" (Käffer). Segundo Kripke, o verdadeiro argumento da linguagem privada se encontra nas seções que precedem o § 243 --e não nas que o sucedem, como reza a tradição-- em particular do § 143 ao § 242, onde é discutido o chamado "paradoxo cético". As seções seguintes seriam apenas uma aplicação do argumento ao caso especial das sensações. A conclusão do argumento da linguagem privada encontra-se assim enunciada no § 202:

"Eis porque "seguir a regra" é uma prática [ist 'der Regel folgen' eine Praxis]. E acreditar seguir a regra não é seguir a regra. E daí não podermos seguir a regra 'privadamente'; porque, senão, acreditar seguir a regra seria o mesmo que seguir a regra".

Segundo Kripke, a problemática que permeia essas seções é essencialmente cética. O "paradoxo cético" do § 201 constitui, para Kripke, o "problema central" das Investigações:

"Nosso paradoxo era: uma regra não poderia determinar um modo de agir, pois cada modo de agir deveria estar em conformidade com a regra. A resposta era: cada modo de agir deve estar em conformidade com a regra, pode também contradizê-la. Disto resultaria não haver aqui nem conformidade nem contradições".

Segundo Kripke, Wittgenstein nos propõe uma "solução cética" à la Hume para este problema cético. Ora, Baker e Hacker criticam o artigo de Kripke precisamente por caricaturar a posição humiana tanto quanto a wittgensteiniana --afinal, nem Hume nem Wittgenstein teriam assumido um posicionamento que merecesse esta denominação. Servindo-se do Nachlaß para refutar de modo assaz convincente a interpretação de Kripke, Baker e Hacker omitem todavia a questão da autocrítica wittgensteiniana em relação ao Tractatus. Procurarei sumariamente explorar esta transição, antes de retornar à teoria do significado no Tractatus e concluir com sua articulação com a skepsis filosófica do "segundo" Wittgenstein. Ao contrário do atomismo lógico do Tractatus, a linguagem ordinária das Investigações problematiza a própria oposição entre "simples" e "compostos" (§ 47), mostrando como as semelhanças surgem e desaparecem nas diferentes combinações possíveis e imagináveis na comparação de diferentes jogos.(§ 66) A fim de "salientar que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade (Tätigkeit) ou de uma forma de vida (Lebensform)"(§ 23), Wittgenstein propõe-se a mostrar, na primeira parte das Investigações, a complexidade e a variedade dos jogos de linguagem. Por Sprachspiel Wittgenstein compreende "o conjunto da linguagem e das atividades com as quais está interligada".(§ 7) Ao invés de limitar a "significação" ao que é significado na denominação de objetos, o significado é agora articulado em termos do seu uso e da prática de seguir regras:

"A questão 'o que é realmente uma palavra?' é análoga a 'o que é uma peça de xadrez?'" (§ 108)

"Mas como é estabelecida a ligação entre o nome e o denominado? A questão é a mesma que: como um homem aprende o significado dos nomes de sensações? Por exemplo, da palavra 'dor'." (§ 244)

Jogos de linguagem implicam, portanto, um contexto prático onde o significado é determinado pelo uso de signos. A fim de compreendermos a concepção de significado no "segundo" Wittgenstein, partiremos da sua crítica a três concepções errôneas que tendem a identificar a significação com um processo mental, com uma interpretação particular e com a formulação de razões pelas quais seguimos uma regra. Como veremos, é precisamente neste terceiro ponto que Kripke rompe com a leitura que McGinn e Baker & Hacker nos oferecem das Investigações.

3. Tese 1: O significado não é um processo mental.

"Não pense, pelo menos uma vez, na compreensão como 'processo mental'/'anímico' --Pois este é o modo de falar que o confunde. Mas pergunte-se: em que espécie de caso, sob que espécies de circunstâncias dizemos, pois, 'agora sei continuar'? Quero dizer, quando a fórmula me veio ao espírito. No sentido em que há processos (também processos anímicos) característicos da compreensão, a compreensão não é um processo anímico. (A diminuição e o aumento de uma sensação de dor, a audição de uma melodia, de uma frase: processos anímicos)".(§ 154)

"O ter-em-mente [Das Meinen] não é nenhum processo que acompanha essa palavra. Pois nenhum processo poderia ter as conseqüências do ter-em-mente". (p. 218/211)

Tanto Kripke como McGinn consideram esta primeira tese negativa como a mais convincente e a mais evidente de todas as três. As Investigações começam, afinal, com uma crítica à gramática agostiniana do vellent ostendere precisamente porque tal concepção mentalista do significado confunde o "que é significado" com acompanhamentos experienciais que podem ocorrer ou não na constituição do significado. Assim, o desenho de um cubo pode me vir ao espírito quando ouço a palavra "cubo" mas não tem de ocorrer (§ 139). E Wittgenstein conclui,

"E o essencial, pois, é ver que, ao ouvir a palavra, o mesmo pode pairar em nosso espírito e que sua aplicação, no entanto, pode ser outra. E tem, então, a mesma significação em ambas as vezes? Creio que o negaríamos". (§ 140)

Obviamente, Wittgenstein rejeita a metafísica da Innerlichkeit (o "homem interior" em Santo Agostinho) tanto na sua versão consciente (o significado como um processo mental) quanto na sua versão inconsciente (o significado como um estado do sistema nervoso).[7] Assim, quando observo cuidadosamente caracteres de um alfabeto desconhecido ou quando leio em voz alta sem prestar atenção ao que está escrito (como uma "máquina de leitura"), em nenhuma destas situações compreendo o que leio, embora meus processos mentais pareçam contradizê-lo. Significado e compreensão não podem ser assimilados a experiências, como por exemplo, a dor, a depressão, a excitação.(§ 59) Experiências, sensações e a imaginação podem acompanhar ou não a constituição do significado --mas não podem ser ditas constitutivas da significação.

4. Tese 2: O significado não é uma interpretação particular. "Como pode uma regra ensinar-me o que fazer neste momento? Seja o que for que faça, deverá estar em conformidade com a regra por meio de uma interpretação qualquer. --Não, não deveria ser deste modo, mas sim deste: cada interpretação, juntamente com o interpretado, paira no ar; ela não pode servir de apoio a este. As interpretações não determinam sozinhas a significação". (§ 198)

Segundo Kripke, este parágrafo pertence ao contexto do que Wittgenstein denomina "nosso paradoxo", a saber, que "uma regra não poderia determinar um modo de agir, pois cada modo de agir deveria estar em conformidade com a regra".(§ 201) Ao contrário do uso ostensivo da linguagem associado ao "olhar interno" agostiniano que revela o que permanece "escondido" em camadas profundas de significação, Wittgenstein solapa toda eficiência essencial (praesentia) de significados que subjazem aos cursos de ações. A alusão ao "corpo de significação" (Bedeutungskörper) no § 559 corrobora a autocrítica do "segundo" Wittgenstein com relação ao Tractatus. Se a interpretação fosse entendida como "a substituição de uma expressão da regra por outra"(§ 201), então poderíamos ter assimilado a ação de "ler" uma escrita desconhecida à sua mera transliteração em caracteres conhecidos (por exemplo, do hebraico em letras latinas). Assim, dependendo da equivalência fonética adotada, poderíamos emitir os sons correspondentes a um sistema de escritura desconhecida sem compreendermos o sentido de tal escritura. O que é questionado aqui é precisamente que uma transliteração seja suficiente para a constituição de significado.

De fato, Wittgenstein não estaria preocupado, neste exemplo, com a compreensão do que está sendo lido, mas com o fenômeno de seguir regras que permitam a produção de significado na leitura de uma escritura que não seja imediatamente reconhecida. Assim, se alguém pronunciasse ou cantasse "hineh mah tov u-mah nayim", seria insuficiente traduzir tal expressão do hebraico para o português "como é bom e agradável", como se tal tradução ou interpretação bastasse para explicar a constituição de seu significado. Afinal, "traduzir de uma língua para outra", seria mais um jogo de linguagem, como "comandar e agir segundo comandos, relatar um acontecimento, inventar uma história, cantar uma cantiga, fazer, uma anedota, pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar".(§ 23) Sem dúvida, esta também seria a razão pela qual pessoas bilíngües podem naturalmente mudar de uma língua para outra sem recorrer a traduções na sua mente. Na verdade, tanto a tradução como a interpretação já pressupõem a produção de significado. Assim, Wittgenstein enfatiza que a tradução e a interpretação sempre implicam o ato de pensar, formando uma hipótese acerca da melhor maneira de traduzir um signo de tal forma a ser compreendido (p. 213). O significado é constituído de um modo prático tal que não pressupõe nenhuma teoria, mas apenas requer prática e envolvimento em jogos de linguagem. A constituição de significado deve ser compreendida como uma expressão de regras que tacitamente seguimos ao participarmos de certos jogos de linguagem. Todavia, a necessidade implicada no ato de seguir uma regra (isto é, que uma regra determina uma linha de ação) não é uma premissa lógica mas algo a ser paradoxalmente encontrado no final, uma vez consumada a ação que produz significado.

5. Tese 3: Seguir uma regra não se fundamenta em razões.

"Seja como for que você o ensine a continuar a faixa decorativa, como pode ele saber como fazê-lo por si próprio? --Ora, como eu sei? --Se isto significa: 'tenho razões?', então a resposta é: logo não terei mais razões. E agirei então sem razões". (§ 211)

Não há nenhuma razão fundamental pela qual alguém segue uma regra ao usar certas palavras para exprimir um pensamento, comunicar-se com alguém, dizer um palavrão ou pedir um favor. Por exemplo, por que será que dizemos "obrigado" ao agradecer alguém por ter-nos feito um favor ou simplesmente cumprido com o seu dever? Por que chamamos a cor vermelha de "vermelho"? Segundo Wittgenstein, "quando sigo uma regra não escolho. Sigo a regra cegamente".(§ 219) Para Kripke, é aqui que devemos situar o contexto imediato do "paradoxo cético" wittgensteiniano, a saber, que nenhum fato pode constituir um significado em detrimento de um outro significado. O que é paradoxal acerca disto reside na força da regra que alguém tacitamente obedece ao constituir tal significado. Assim, quando solicitado para calcular '68 + 57' o cético pode muito bem responder '5' e não '125' de modo a questionar o significado do signo '+' (sinal de adição). Ele poderia argumentar, por exemplo, que o signo '+' denota uma função quais[8], de acordo com a qual obtemos a adição convencional 'x+y' se e somente se 'x' e 'y' forem menores do que '57', caso contrário obteremos a constante '5'. Por isso, '68 + 57 = 5'. Como Kripke observa, o que está sendo questionado pelo cético é o que tinha sido constituído como significado pelo hábito:

"A questão não é que se eu quis dizer adição com '+', eu responderei '125', mas que se quiser concordar com meu significado no passado de '+', eu devo responder '125'. ...A relação do significado e da intenção com a ação futura é normativa, e não descritiva".[9]

A argumentação de Kripke está baseada no que Wittgenstein denominaria "gramática do compreender" (das Verstehen, cf. §§ 180 ss.). Por exemplo, como perguntaríamos a um estudante se ele compreendeu a série de números naturais 0,1,2,3,4,5,... (cf. § 145) segundo um ordenamento do tipo '+ 1'. Se ao ser requisitado para continuar a série '+2' depois de 1.000, o aluno escreve 1.000, 1.004, 1.006, 1.008, 1.012, ..., no lugar dos esperados 1.002, 1.004, 1.006, 1.008, ..., isso mostra como assumimos mais do que devíamos quanto ao significado de signos que usamos tão freqüentemente. Isto nos traz à tese positiva do "segundo" Wittgenstein sobre significado e seguir regras:

"Pois dizemos que não há nenhuma dúvida de que compreendemos esta palavra, mas, por outro lado, que sua significação reside no seu emprego. Não há dúvida de que agora quero jogar xadrez; mas o jogo de xadrez é este jogo devido a todas as suas regras (e assim por diante). ...Onde é feita a ligação entre o sentido das palavras 'joguemos uma partida de xadrez!' e todas as regras do jogo? Ora, nas instruções do jogo, na lição de xadrez, na prática diária do jogo [in der täglichen Praxis des Spielens]". (§ 197)

Imediatamente após, Wittgenstein levanta a questão de relacionar a "expressão da regra" (der Ausdruck der Regel) a ações (Handlungen), por exemplo, o modo particular como alguém reage a um certo signo. Wittgenstein não está primariamente preocupado com conexões causais mas com o "uso regular" (ständige Gebrauch) de sinais, seu uso comum ou costume (Gepflogenheit). Assim, ele procede para problematizar o conceito de "regramento" como costume em função de uma prática privada:

"O que chamamos 'seguir uma regra' é algo que apenas uma pessoa pudesse fazer apenas uma vez na vida? --E isto é, naturalmente, uma anotação sobre a gramática da expressão 'seguir a regra'... Compreender uma frase significa compreender uma linguagem. Compreender uma linguagem significa dominar uma técnica". (§ 199)

Para Kripke, a conclusão de Wittgenstein acerca da impossibilidade de obedecer uma regra privadamente significa que o argumento da linguagem privada deve ser encontrado nas seções que precedem o § 243 --onde é explicitamente discutido o uso privativo da linguagem. McGinn acusa Kripke de forçar tal leitura do texto de Wittgenstein, impondo-lhe significações que não constam na superfície, em particular quanto à solução cética ao paradoxo do § 201. Acima de tudo, escreve McGinn, o § 202 não pode constituir o argumento conclusivo empregado por Wittgenstein contra a possibilidade de linguagem privada. McGinn não descarta a importância de uma interpretação comunitária mas critica Kripke por reduzir a problemática das Investigações ao uso comunitário da linguagem.

À guisa de conclusão, creio que McGinn, assim como o fizeram Baker e Hacker, oferece boas razões para suspeitarmos o que Kripke denomina "a nova forma de ceticismo" supostamente inventada por Wittgenstein, o chamado "ceticismo de regra" (rule skepticism). Afinal, torna-se difícil separar tal versão de ceticismo de um ceticismo metodológico humiano, conforme o rapprochement elaborado pelo próprio Kripke. O maior mérito do artigo de Kripke, além de dissipar a suspeita de behaviorismo nas Investigações, consiste em haver articulado o problema da significação com o ato de seguir regras num mesmo nível lingüístico que solapa a metafísica do sujeito transcendental do Tractatus.[10] Teríamos de passar aqui a um exame mais cuidadoso do argumento da linguagem privada e dos problemas do solipsismo e da oposição entre Darstellung e Vorstellung, tais como figuram no Tractatus e em que proporção são resolvidos nas Investigações. Se realmente existe algo como uma "ruptura epistemológica" entre o "primeiro Wittgenstein" e o "segundo", ou de forma mais precisa, entre a teoria do significado no Tractatus e sua reformulação crítica nas Investigações, esta "mudança de paradigma" é assinalada pelo próprio autor na sua crescente insatisfação face a teorias referenciais logicistas, em voga desde as publicações de Frege e Russell. Sem incorrer numa reconstituição genética do desenvolvimento de tais concepções, assinale-se apenas que o abandono do atomismo lógico não traduz, necessariamente, uma ruptura com uma teoria do significado no "segundo Wittgenstein". Embora rompendo com uma concepção figurativa da linguagem, a concepção do significado como uso, nas Investigações, pode implicar por um lado uma correlação entre lógica e ontologia e, por outro lado, uma atitude cética de ordem prático-regulativa. Creio, portanto, que já no Tractatus encontra-se antecipada a concepção tardia do significado como uso, embutida na crítica que Wittgenstein empreende a Frege e a Russell.

6. Numa das suas ilustrações mais conhecidas (PU Parte II, xi, p. 194/189), Wittgenstein reproduz a figura da "cabeça PC", o pato-coelho (duckrabbit) de Jastrow, para ilustrar sua concepção de descrição (Beschreibung). O contexto imediato é obviamente o da gramática do verbo "ver". Mas no contexto maior, da investigação filosófica sobre a significação, trata-se de mostrar como "ver"--assim como "saber" e "crer"-- não poderia fundamentar a descrição na constitituição do significado e de sua compreensão --em particular na relação entre sujeito cognoscente e o chamado "mundo exterior." Afirmar que sei 'p' no sentido de que vejo 'p' não seria mais evidente, apesar de aparentarmos 'saber' e 'ver' e opormos 'saber' e 'crer', ao nosso senso comum do que afirmar que sei 'p' no sentido de que creio 'p'. Trata-se do paradoxo de Moore, que Wittgenstein assim o enuncia:

"A expressão 'creio que isto está assim' [ich glaube, es verhalt ist so/ I believe that this is the case] é empregada de modo semelhante à afirmação 'isto está assim'; e contudo a suposição de que creio que isto está assim não é empregada do mesmo modo que a suposição de que isto está assim".(p.190/185)

Afinal, como afirma no mesmo capítulo, "podemos desconfiar dos próprios sentidos mas não da própria crença". Chegamos assim ao contexto da discussão sobre a prova do mundo exterior, que Wittgenstein questiona nas Investigações e nas anotações Sobre a Certeza. Comecemos pela figura de Jastrow. O que tem de interessante, à primeira vista, é que "pode-se vê-la como cabeça de lebre ou como cabeça de pato", dependendo da experiência visual (Seherlebnis) daquele que a percebe. A discussão imediata gira em torno da experiência de "notar um aspecto" (das Bemerken eines Aspekts). Wittgenstein observa que a mesma figura pode suscitar diferentes interpretações, dependendo de como a vemos em diferentes contextos: "podemos também ver a ilustração ora como uma, ora como outra coisa. --Portanto, nós a interpretamos e a vemos como a interpretamos".(193/188) O que nos aparece como "algo", nossa primeira palavra de identificação intuitiva, na percepção imediata de uma lebre, um coelho, um pato, ou uma coisa engraçada, este parente mais próximo da descrição, antes mesmo de descrevê-lo como jogo de linguagem ou algum tipo de brincadeira. "O que é isso?" ou "o que você vê aí?" parece exigir, num contexto de vivências cotidianas, uma descrição do que percebemos. Antes mesmo de identificá-lo como "uma figura L", a possibilidade de responder "uma cabeça de lebre" ou "uma cabeça de coelho", mais do que um problema de tradução (Hasen/rabbit/hare), implica uma pré-imersão no mundo de significações, inclusive as socialmente constitutivas.

Sem incorrermos num reducionismo mentalista (por exemplo, "vi um coelho porque tive um coelhinho quando criança"), devemos ainda admitir que o que vemos depende de nosso "horizonte de expectativas"

Wittgenstein parece ter em vista não tanto uma "descrição indireta" posterior à interpretação quanto uma descrição do que é visto imediatamente, uma experiência espontânea da visão. Todavia, se alguém retrucasse: "O que é que eu devo ver aí?", serei obrigado a explicar as regras do jogo e falar das duas possibilidades: "cabeça de lebre" e/ou "cabeça de pato". Poderei até mesmo propor que uma terceira possibilidade, "a cabeça L-P", seria a partir de então incorporada ao nosso imaginário cotidiano, e assim por diante.

Devemos também distinguir entre a "visão permanente" de um aspecto e a "revelação" de um aspecto. Percebo as mudanças de aspectos:

"Mas o que é diferente: minha impressão? Meu ponto de vista?--Posso dizê-lo? Descrevo a mudança como uma percepção, exatamente como se o objeto tivesse se alterado diante dos meus olhos". (193/190)

Suponha que duas figuras me sejam mostradas, uma com a cabeça L-P cercada de cabeças de pato, outra cercada de cabeças de lebre. Como poderíamos, antes de mais nada, diferenciar estas duas situações imaginárias?

"Imagine a cabeça L-P escondida sob um emaranhado de traços. Primeiro, noto-a na figura, aliás, simplesmente como cabeça de lebre. Depois, olho a mesma figura e noto as mesmas linhas, mas como pato, e nisto não preciso ainda saber que ambas as vezes tratava-se da mesma linha. Se, mais tarde, vejo o aspecto mudar, --posso dizer que aí o aspecto L e o aspecto P são vistos de modo inteiramente diferente do que quando os reconhecera no emaranhado de traços? Não". (199/193)

Devemos, finalmente, concluir que seria equívoco dizer que o que vemos é o que cremos ver. O contexto parece exigir que apenas vejamos o que nos aparece, sem nenhuma conexão com o problema de crer ou saber --mesmo se alguém exclamasse "eu já sabia que era a figura L-P" ou "eu já conhecia este jogo!" Não se trata, em última análise, de uma diferenciação de estados mentais entre sujeitos que questionam a exterioridade do mundo e suas representações, mas para além do solipsismo metafísico de toda subjetividade trata-se de suspender todo e qualquer juízo sobre a interioridade do sujeito. Isso é corroborado com a analogia entre o significado do que falamos e representamos e a apresentação prática do que vivemos-- por exemplo, a apresentação (Darstellung) do que é visto (198/192).

Finalizando com a questão do ceticismo no "segundo" Wittgenstein, encontramos em UG exemplos que ilustram a mesma gramática da apresentação, tais como "Todo corpo é extenso" ou "a água ferve a 100 oC", que não dizem nada no sentido de constituir uma asserção descritiva de um estado de coisas (Sachverhalt) mas ajudam-nos a notar (bemerken) algo. Também aqui o contexto é o da prova do mundo exterior, como atestam as notas tomadas por Norman Malcolm, quando da estadia de Wittgenstein na sua casa no estado de Nova York em 1949.[11] O ensaio de G.E. Moore sobre a prova do mundo exterior, considerado por Wittgenstein o seu melhor artigo, inspira toda a argumentação sobre a Certeza: "Se tu sabes que aqui está uma mão, nós te concedemos todo o resto"(Wenn du weißt, daß hier eine Hand ist, so geben wir dir alles Übrige zu).[12] Se para Kant a prova do mundo exterior não tem sido alcançada pela filosofia (KrV B xxxix) e permanece um artigo de fé, para Moore nós podemos ao contrário saber/conhecer um número de proposições que não podemos provar, partindo de premissas verdadeiras, que são tacitamente evidenciadas pela constatação daquilo que todo mundo sabe ou reconhece, como senso comum. Contudo, como observou Jaakko Hintikka, "Moore não está provando tanto a existência do mundo exterior quanto mostrando que possuímos de fato um conceito impecável de existência aplicável a mãos, cadeiras, casas e outros 'objetos exteriores' triviais".[13] A passagem, portanto, de "eis uma mão" a "mãos existem" não pode ser logicamente formalizada --seria impossível inferir '(Ex)P(x)' de 'P(a)'. Assim, quando Wittgenstein associa a matemática a jogos de linguagem consistindo de axiomas, teoremas, provas, operações, regras de inferência, etc., é o mesmo problema de seguir uma regra que nos impede de dissociar realidade e linguagem.[14] Contra a lógica da subjetividade metafísica, contra idealistas, solipsistas e realistas (PU § 402), Wittgenstein opera uma verdadeira suspensão da representatividade pela apresentação das formas de vida que permitem ao cético manter o significado da existência de objetos físicos sem contra-senso.

N O T A S

Abreviaturas das obras de Ludwig Wittgenstein citadas:

PU = Philosphische Untersuchungen

T = Tractatus Logico-Philosophicus

UG = Über Gewißheit

PG = Philosophische Grammatik

PB = Philosophische Bemerkungen

Além destes na Werkausgabe em 8 volumes (Frankfurt: Suhrkamp, 1985), foram consultadas traduções da PU (em português, José Carlos Bruni, Os Pensadores; em inglês, D.F. Pears e B.F. McGuinness; em francês, Pierre Klossowski), do T (Luiz Henrique Lopes dos Santos, G.E.M. Anscombe, Pierre Klossowski) e do UG (G.E.M. Anscombe e G.H. von Wright, Jacques Fauve).


1. Comunicação apresentada no IV Colóquio Brasileiro sobre o Ceticismo, em junho de 1994, na UFSC em Florianópolis. Artigo originalmente publicado na Veritas 41/161 (1996): 65-74.
2. Cf. Gottlob FREGE, Begriffsschrift (trad. Os Pensadores); Edmund HUSSERL, Logische Untersuchungen.
3. Cf. M. HEIDEGGER, Einführung in der Metaphysik. Mesmo cometendo o parricídio, Heidegger não deixa de venerar o mestre, servindo-se de fórmulas de autoria do pai da fenomenologia.
4. Uma primeira versão do artigo de Kripke foi publicada na obra Perspectives on the Philosophy of Wittgenstein, org. I. BLOCK (Oxford: Blackwell, 1981). Todas as referências neste ensaio remetem à versão definitiva: Saul A. KRIPKE, Wittgenstein on Rules and Private Language: An Elementary Exposition, (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1982), doravante abreviado RPL.
5. Colin McGinn, Wittgenstein on Meaning: An Interpretation and Evaluation, Aristotelian Society Series, Vol. 1, Oxford: Blackwell, 1984 (abrev. WM); G.P. Baker e P.M.S. Hacker, Scepticism, Rules and Language, Oxford: Blackwell, 1984 (abrev. SRL).
6. Sobre a concepção grega de skepsis e epochê, cf. David SEDLEY, "The Motivation of Greek Skepticism" in Myles BURNYEAT (org.), The Skeptical Tradition, Berkeley: University of California Press, 1983, cap. 2, p. 9-29.
7. Cf. Jacques BOUVERESSE, Le mythe de l'intériorité: Expérience, signification et langage privé chez Wittgenstein. Paris: Minuit, 1976.
8. Em inglês "quus" contrasta com "plus" ("mais").
9. KRIPKE, op. cit., p. 124.
10. Cf. T 5.632: "O sujeito não pertence ao mundo, mas é um limite do mundo".
11. Norman MALCOLM, Ludwig Wittgenstein: A Memoir. Oxford: Oxford University Press, 1984.
12. Wittgenstein está obviamente questionando o ponto de partida de Moore, "Here is one hand, and here is another". Cf. G.E. MOORE, "Proof of the External World" in Proceedings of the British Academy 1939; cf. "Defence of Common Sense" in Contemporary British Philosophy, 2nd Series, 1925 (org. J.H. MUIRHEAD) Ambos publicados nos Philosophical Papers de Moore (Londres, 1959), traduzidos para o português por Pablo Ruben Mariconda, in Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1989.
13. J. HINTIKKA, Logic, Language-Games and Information. Oxford: Claredon Press, 1973. p. 72.
14. Cf. L. WITTGENSTEIN, Remarks on the Foundations of Mathematics, trad. G.E.M. Anscombe. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1991, III.27: "even if the proved mathematical proposition seems to point to a reality (Realität) outside itself, still it is only the expression (Ausdruck) of acceptance of a new measure (of reality)".

Links & sites:

RESEARCH IN MORAL EPISTEMOLOGY

Wittgenstein in Real Time

Metaethics & Moral Epistemology in Hume, Kant & Rawls

JOHN RAWLS

Immanuel KANT

Wikipedia entry on Wittgenstein

Pesquisa em Direitos Humanos

NORTH AMERICAN KANT SOCIETY

CRITIQUE OF PURE REASON (N.K.Smith translation)

SUMMARY OF KANT'S CRITIQUE OF PURE REASON

David Hume (texts in English)

Sociedade Kant Brasileira - Seção Campinas, SP


Email: nythamar@yahoo.com

[ Yahoo! ] options