A Juridificação da Liberdade: Os Direitos Humanos

No Processo da Globalização

 

Hans-Georg Flickinger *

 

Universität Kassel

 

 

Como o título deixa transparecer, as considerações a seguir alimen­tam-se de um certo ceticismo quanto ao papel atribuído aos direitos humanos na defesa da legitimidade do processo de globalização, hoje vivido em termos econômicos, sociais e culturais. A dinâmica desenfreada, com a qual os ideais da razão instrumental (Horkheimer, Adorno), nascidos no Ocidente, vêem-se espalhados pelo mundo intei­ro, impõe-se sem preocupação maior com a diversidade de tradições, costumes ou ideologias que marcam as diferentes regiões. Mais ainda, parece que inúmeras vezes a mensagem dos direitos humanos faz-se ouvir pela força, embora insistindo na suposta missão de levar a liberdade a todos os que dela ainda não desfrutam. Entre vários indicadores, vale destacar uns poucos exemplos para tornar plausí­vel esta minha suspeita. Lembro a atitude da União Européia ao vin­cular, no seu discurso político, a futura integração da Turquia, um país predominantemente muçulmano, à observação, por esta, do respeito dos direitos humanos; ou a legitimação da invasão do Iraque pelos Aliados que, sobrepondo-se à ONU, alegam restituir e defender os direitos humanos da população daquela região; ou o condiciona­mento de meios financeiros pelos órgãos internacionais para a reestruturação do Afganistão, à implementação de um regime liberal-democrático. O próprio Brasil vem sofrendo, ao longo das últimas décadas, pressões neste sentido. Em todos estes casos, o argumento em favor da implementação dos direitos humanos vê-se, em parte, instrumentalizado para fins político-econômicos, criando-se assim a impressão de um jogo hipócrita por parte daqueles que se consideram os defensores ferrenhos dos direitos humanos, embora violando-os, muitas vezes, na própria casa.[i] Trata-se aí da tentativa de imple­mentar, em termos globais, uma concepção de democracia e de direitos humanos que, filha do mundo secularizado e praticada nos Estados Unidos como “religião civil”, visa garantir, de modo abrangente, a identificação dos direitos humanos com a base iluminista dos direi­tos liberais. Pois, de fato, a discussão acerca da garantia de direitos humanos tem suas raízes histórico-ideológicas no princípio da autonomia da razão humana. Poder-se-ia falar também da tarefa de fazer do dever para com a liberdade humana o princípio último da sociabilidade moderna; princípio este ao qual o mundo desencan­tado (Max Weber) deveria submeter-se.

A meu ver, a identificação dos direitos humanos com os direitos liberais esconde no bojo uma lógica responsável pelo mal-estar que se sente frente ao atual cenário político-cultural. Por isso mesmo, escolhi como enfoque de meus raciocínios, os riscos que me parecem acompanhar a visão liberal dos direitos humanos. Tendo esta aborda­gem em vista, não me colocarei a tarefa de discutir as referidas tendências político-culturais que, na minha opinião, não podem ser entendidas sem referência à tradição ocidental-cristã e seus impulsos missionários.[ii] Quero tomá-las apenas como motivo para perguntar se a fundamentação filosófica dos direitos humanos e, antes de tudo, sua legitimação argumentativa nos termos liberais, podem dar-nos uma pista para a melhor compreensão das experiências atual­mente vividas. Perguntar-me-ei, portanto, se a gênese dos direitos humanos na tradição iluminista oferece-nos aspectos importantes para explicar o perigo de sua susceptibilidade ao poder político econômico.

Antes de entrar na temática propriamente dita, devo esclarecer o uso que aqui faço do conceito ‘juridificação’. Com este conceito, quero apontar o fato de a sociedade liberal moderna orgulhar-se da transformação abrangente das relações sociais e institucionais em relações juridicamente determinadas, a fim de garantir o reconheci­mento da liberdade de todos seus membros. De fato, o status de membro da sociedade define-se aí pela qualificação do indivíduo como ‘pessoa de direito’, ou seja, por sua determinação jurídica. “O im­perativo do direito é portanto: sê uma pessoa e respeita. os outros como pessoas.”[iii] Com esta indicação, Hegel expressa a base mais geral possível do reconhecimento do ser social, dentro da visão liberal. Pois desde o nascimento até a morte, o indivíduo é visto e interpretado a partir da perspectiva de sua existência jurídica, mesmo sem ter consciência disto. Em outras palavras, a pertença à sociedade vê-se vinculada à pertença ao sistema jurídico. Pergunta-se, portanto, se esta transformação da pessoa humana em pessoa de direito, isto é, sua juridificação, modificaria sua avaliação so­cial. Colocada em forma de pergunta: quais as conseqüências oriundas da determinação jurídico-liberal do homem?

Para dar uma resposta a essa pergunta, aproveitar-me-ei de uma diferenciação sistemática, feita por Hegel na obra acima citada. Aí, nos primeiros parágrafos, ele lembra a diferença entre a ‘Ciência do di­reito’ e a ‘Ciência filosófica do direito’. A primeira trataria da sistematização do múltiplo dos fenômenos jurídicos --Direito civil, Direito penal, etc-- ao passo que a segunda deveria organizar o mes­mo material segundo o desdobramento da idéia subjacente ao auto-en­tendimento da moderna sociedade liberal; a saber, a idéia da liber­dade como princípio da organização da comunidade na sua íntegra. À ciência filosófica do direito caberia, portanto, a exposição daquela racionalidade interna que se deve à concretização da liberdade de todos. É nessas trilhas que espero poder descobrir, ainda que pelo avesso, os motivos responsáveis pelo significado específico dos direitos humanos e sua fundamentação liberal.

1.

A preocupação com os direitos fundamentais na filosofia contemporâ­nea vem de longa data. Na medida em que a legitimação dos direitos do homem não mais consegue encontrar nem em Deus nem na natureza uma firme âncora argumentativa, observa-se uma virada importante nas ten­tativas de emprestar base racional ao status destes direitos. Às vezes, sua dedução dá-se a partir de um suposto dever das pessoas no sentido de reconhecer seus contemporâneos como parceiros do convívio, possibilitando-se assim sua sociabilidade. Tanto Hugo Grotius quanto Samuel Pufendorf devem ser mencionados como representantes desta cor­rente. “Pacta sunt servanda”, eis o dever primordial que subjaz à articulação dos direitos subjetivos, legitimando-os. Acompanhando esta primeira concepção secularizada do direito moderno, encontra-se a argumentaçao inversa que em vez de deduzir os direitos fundamen­tais a partir de um dever originário, atribui a função de fundamento último a supostos direitos naturais, visando assim sustentar a implementação da liberdade humana. Nisso convergem as posições em si diferenciadas do jusnaturalismo.

Por mais aceitáveis que possam parecer ao primeiro olhar, todas estas teorias sofrem de um defeito grave no que diz respeito à lógica de suas deduções. Recentemente, Walter Jaeschke referiu-se às falhas de todas as posições que procuram defender os direitos humanos concebidos como algo já concedido desde sempre ao homem. Segundo ele, a maioria esmagadora destes filósofos teria de pressupor os direitos fundamentais enquanto condição de possibilidade para a garantia do livre agir do homem, ao invés de fundamentar a sociabilidade moder­na como conseqüência das decisões originalmente livres do ser humano.[iv] Se o pensamento liberal quiser de fato tomar-se a sério, não deverá permitir o condicionamento da própria liberdade a partir da pressuposição de direitos naturais. Ao contrário, a fim de ser evitado o círculo argumentativo, a idéia da liberdade terá de preceder a todas as determinações jurídicas.

Após rever, no ensaio acima mencionado, as posições mais marcantes da fundamentação dos direitos humanos no início dos tempos modernos, W. Jaeschke vê-se levado a uma conclusão surpreendente, ainda que, ao que tudo indica, correta. Pois, segundo ele, teria sido a argumentação de Th.Hobbes a única capaz de deduzir os direitos fundamentais do homem a partir de um estado de liberdade anterior ao direito, evi­tando, deste modo, o risco de cometer uma petição de princípio; petição esta que consistiria na pressuposição de um direito natural legitimador da fundamentação dos direitos humanos enquanto direitos intransponíveis. Pois seria inadmissível fazer depender os direitos humanos, enquanto direitos básicos, de um direito que os precedesse. Hobbes, ele mesmo, teria desenvolvido uma argumentação coerente ao recorrer à hipótese de um estado de natureza, no qual o homem seguiria apenas seus impulsos de autoconservação e felicidade próprias, tomando os próprios contemporâneos como mero meio à garantia de sua sobrevivência e de seu bem-estar. Ora, um tal estado de natureza, uma vez aceito como meta universal do agir e levado às suas últimas consequências, bloquearia qualquer convívio social. Um beco sem saí­da, portanto, que motivaria Th. Hobbes a optar por uma solução prag­mática. Ao invés de os homens tentarem aniquilar seus contemporâneos fazendo deles meros instrumentos na busca de objetivos pessoais, o filósofo argumentaria em favor de um contrato originário, através do qual cada indivíduo reconheceria aos demais o direito à integridade pessoal. O direito nasceria assim de um consentimento contratual baseado na livre consciência de cada um, enquanto única forma racional de garantir a solução do impasse. O contrato originário serviria, portanto, a Hobbes enquanto condição da sociabilidade.

A hipótese de um contrato originário, porém, só faz sentido se se pressupõe a facticidade da liberdade do homem, antes de ele assumir o compromisso de reconhecer os direitos básicos dos demais. A idéia

do contrato não pode ser pensada sem a pressuposição da liberdade dos contratantes, no sentido de estes terem a capacidade de escolher a alternativa melhor. Isto significa que, antes de se falar em direitos humanos, é necessário pensar-se nos fatores que os condicionam e que, por isso mesmo, não podem depender de um direito natural origi­nário. O que leva W. Jaeschke a concluir que a convicção hobbesiana basear-se-ia na hipótese de uma liberdade existencial do ser humano, cuja implementação poderia vir a ser concretizada através do sistema do direito. Em outras palavras, segundo Hobbes, os direitos humanos seriam produto de uma liberdade existencial incondicionada, sendo que sua proposta aproxima-se da afirmação posteriormente feita por Kant, ao falar do “fato da razão” autônoma. Fato este que, não sendo pres­suposto, impedir-nos-ia de pensar a sociabilidade moderna dentro da perspectiva da concepção iluminista. Com tais raciocínios, continua W. Jaeschke, Hobbes se estaria opondo à falange das teorias comprometidas com as idéias jusnaturalistas, as quais -- como é o caso de Grotius, Pufendorf ou J. Locke-- defendem um direito natural enquanto base legitimadora dos direitos humanos.

Visto sob este ângulo, ao marcar a diferença entre a liberdade exis­tencial do homem e uma liberdade articulada nos termos do direito liberal, Hobbes estaria apontando o fulcro principal no debate atual sobre a fundamentação dos direitos humanos. Pois não há como se pres­supor direitos humanos como fato existencial; só pode haver o fato da liberdade existencial a condicionar tais direitos. Uma vez aceito isso, pode tampouco haver obrigação legal alguma para com a liberdade; há apenas, isto sim, o dever para com a defesa de direitos da liber­dade. Por isto, aqueles que vêm instrumentalizando, hoje, os direitos humanos com o objetivo de implantar a liberdade em nível global, não somente correm o risco de defender apenas uma liberdade de antemão restrita à lógica do direito liberal, mas de tornar-se também seus missionários fanáticos, cegos frente à originária liberdade existen­cial do homem. Liberdade esta que inclui, necessariamente, a decisão em favor de uma ou outra forma de sociabilidade.

Na sua função de princípio, a liberdade é indivisível e impede sua diferenciação segundo determinada lógica de sociabilidade. Infelizmente, o cenário político hodierno oferece-nos vários exemplos desta imposição unilateral de uma idéia determinada de liberdade, desde logo engatada nos trilhos da visão liberal. Tais exemplos fa­zem-nos cada vez mais pensar numa nova forma de imperialismo que, em nome dos direitos humanos, quer obrigar o mundo a comprometer-se com uma liberdade meramente juridificada, ou seja, demarcada pela lógica do direito liberal. E torna-se, com isto, impossível fazer jus à liberdade existencial originária, defendida, com razão, por Th. Hobbes.

2.

Os direitos fundamentais, legitimáveis única e exclusivamente pelo pressuposto da liberdade factual do homem, eis o ponto de partida que subjaz às considerações que se seguem. Conseqüentemente, tanto o exercício da vontade particular que se expressa no agir pessoal, quanto também as instituições sociais e políticas, deveriam ter com­promisso incondicional com este fio condutor. Não me parece possível duvidar da conclusividade teórica deste raciocínio. O fato de a tradição dominante do jusnaturalismo ter invertido essa lógica de fundamentação contra todas as evidências fez com que decorrên­cias marcantes daí proviessem.

Lembro, como primeiro exemplo, as experiências com o desdobramento objetivo da programática liberal-burguesa. Inicialmente, as reivindicações revolucionárias de 1789, a saber, liberdade, igualdade e fraternidade, eram consideradas entre si equivalentes. Não havendo entre elas nenhuma hierarquia, pensava-se que se condicionariam reciprocamente. Contudo, a história pós-revolucionária mostra-nos a gradativa perda de peso do princípio da fraternidade. Ao longo da consolidação da sociedade liberal, os princípios de liberdade e igualdade vieram assumir importância exclusiva esvaziando, passo a passo, a demanda pela fraternidade ou, para usar um termo moderno, pela solidariedade. Na medida em que a questão da liberdade e da igualdade via-se resolvida através da implementação do sistema do direito liberal, a solidariedade não encontrava mais espaço de articulação.[v] Mesmo em casos nos quais a linguagem liberal ainda faz uso do termo ‘solidariedade’, ela disfarça o verdadeiro jogo de interesses. A instituição do Seguro Social, por exemplo, disso dá prova. Pois seu modelo repousa na idéia de uma comunidade solidária dos segurados; uma comunidade cujos recursos se alimentam das contribuições de seus membros. Estas contribuições ao seguro-desemprego, seguro-saúde, seguro contra acidente de trabalho, não servem, de fato, à comunidade dos segurados, senão, antes, à cobertura de riscos individuais. Pois se o risco vier a efetivar-se, os segurados terão o direito individual a benefícios. De fato, os se­gurados não têm qualquer interesse no bem-estar da ‘comunidade soli­dária’; ao contrário, esta lhes serve apenas enquanto lenitivo à situação individual, no caso de sofrimento. Na verdade, a assim deno­minada ‘comunidade solidária’ revela-se enquanto ‘comunidade de risco’. Deveríamos falar melhor de uma solidariedade forçada, dife­rente portanto daquele espírito de solidariedade, com o qual os de­fensores da Revolução de 1789 sonharam. Como se vê, parece que a idéia de solidariedade, comprometida com a demanda pela justiça ma­terial e social, não encontra respaldo fácil num sistema cuja ga­rantia de liberdade e igualdade edifica-se segundo a lógica estruturadora do direito liberal. Há grande evidência de que o modo de argumentação do jusnaturalismo teria influenciado muito na eliminação do princípio de solidariedade, ao reduzir a função dos direitos humanos à fundamentação meramente legal da liberdade e da igualdade, sem levar em consideração os efeitos materiais e sociais daí pro­vindos.

Meu segundo exemplo deve confirmar a suspeita acima referida. Trata se do debate que gira em torno da relação mútua entre Estado de Direito e Estado de Bem-estar social.[vi] Sem ater-me aos detalhes, vale lembrar que o crescimento espantoso das crises sociais, vivi­das sobretudo em decorrência das duas Guerras Mundiais do século XX, não conseguia respostas suficientes através dos instrumentos então disponíveis e vinculados ao modelo de Seguro Social implantado por Bismarck, nas últimas décadas do século XIX. Pois a internalização do manejo das crises na sociedade civil, prevista por este modelo, atingia apenas os indivíduos segurados quanto aos riscos oriundos do processo de trabalho, deixando inteiramente desprotegidos aque­les que sofriam dos efeitos da Guerra. Ora, contra os riscos da guerra não havia cobertura pelo Seguro Social. Aí, o próprio Estado liberal via-se forçado a assumir parte da responsabilidade social criando, em seguida, uma série de medidas com o objetivo de dar condições básicas de sobrevivência aos menos favorecidos e de garan­tir, assim, a paz social. Dá prova disto a Ajuda Social, à qual cada membro da sociedade tem direito, tendo-se em vista sua incapacidade objetiva de conseguir recursos de outras fontes. Porém, este engajamento do Estado, independentemente de contribuições anteriores por parte dos beneficiados, foi visto, pelos liberais mais ferrenhos, como intromissão inaceitável nos assuntos da sociedade civil; intromissão essa considerada uma ameaça dos pilares do Estado liberal de Direito. Os críticos insistiam no respeito incondicionado da supre­macia do direito de liberdade e igualdade, sem preocupar-se com suas consequências injustas na esfera da sociabilidade material-econômica e cultural; ao passo que os que combatiam em favor da idéia de uma justiça social passavam a defender a validade suprema do princípio de uma sociedade solidária, com ênfase na justiça distributiva da rique­za produzida em comum. Cada uma das duas correntes considerava-se, em última instância, representante dos direitos humanos. E trazem am­bas, por certo, argumentos legítimos a uma discussao que não chega, até hoje, a um resultado unívoco.
Ao que tudo indica, as experiências recentes na maioria dos Estados liberais do Ocidente evidenciam a complementariedade constitutiva entre a concepção do Estado de Direi­to e aquela do Estado de Bem-estar social. Pois, na medida em que o Estado liberal de Direito vê a lealdade da população para com seu próprio sistema e, com isso, a paz social ameaçada, ele se vê obriga­do a intervir na área social, no intuito de amenizar o descontenta­mento com sua lógica de ação. Enquanto, porém, o Estado de Direito não considerar essa lealdade colocada em risco, ele não hesitará em redu­zir suas atividades sociais. Caso este, no qual parece nos encontrarmos atualmente.[vii]

Frente a este cenário, confirma-se que a solidariedade como possível fio para tecer a sociedade vê-se sacrificada no altar da liberdade e da igualdade, tal como se vêem articuladas pelo espírito do Direito liberal. Repito, portanto, minha dúvida: será que a eliminação do princípio de solidariedade e, de justiça social deve-se ao fato de aos direitos humanos ter sido atribuída a tarefa de condicionar a implementação da liberdade? Como se explica esta lógica que denomino a juridificação da liberdade?

3.

Meu ceticismo referente aos direitos humanos como instrumento na luta pelo desdobramento da visão liberal em nível mundial, alimenta-se de considerações encontradas na reconstrução do sistema do direito moderno, apresentada por G.W.F. Hegel.[viii] Uma leitura sua ‘pelo avesso’ dar-nos-á argumentos fortes para esclarecer a pretensão de fazer da liberdade o princípio universal da sociabilidade, e suas conseqüências para a idéia de uma sociedade solidária.

Na sua ‘Filosofia do Direito’ (FdD), Hegel revela as condições sob as quais a liberdade chega a impor-se à sociedade, tornando-se o fio condutor exclusivo de sua textura. E o filósofo atribui ao sis­tema do direito a função de implantar “o reino da liberdade objeti­vada.” (§ 4 FdD) No centro de sua atenção está portanto o asseguramento do reconhecimento abrangente da livre vontade humana em todos os contextos sociais, a saber, tanto naqueles em que se determinam as relações interpessoais, quanto naqueles institucionais da socie­dade civil e do espaço político. No entanto, enquanto impulso exclusivo da estruturação da comunidade, o reconhecimento abrangente da vontade livre deixa-se delimitar no seu alcance pela validade do pró­prio direito já que, garantida pelos termos jurídicos, a liberdade alcança facilmente seus objetivos sem preocupação com outros aspec­tos. Aspectos estes que, por sua vez, não traduzidos em termos jurí­dicos, escapam da consideração. Esta minha afirmação legitima-se atra­vés da própria exposição hegeliana da objetivação da idéia de liber­dade pelo direito. Explico.

Na dita exposição de Hegel, o Direito civil, a primeira parte da Filosofia do Direito, organiza as relações recíprocas entre as pes­soas à base de consensos entre os parceiros. Trata-se do que os ju­ristas denominam “o direito de relações voluntárias” (Recht der Willensverhältnisse, no Código Civil alemão). Objeto do Direito civil, tal direito é, antes de tudo, a proteção do livre exercício das von­tades particulares na negociação interpessoal, sendo que seu instru­mento preferido é o contrato civil. Essa tarefa de garantir o exer­cício livre da vontade não inclui, porém, a preocupação com o possí­vel desequilíbrio material ou social que daí possa resultar. Só aque­le que quiser impedir ou limitar a liberdade do outro terá de contar com sanções legais, já que somente a articulação livre das intenções e dos interesses egoísticos vê-se aí considerada. Vantagens indivi­duais que motivem os negociantes não são levadas em conta por parte das regras jurídicas. Estas últimas fixam-se única e exclusivamente no objetivo de dar garantia à livre expressão da vontade.

Algo semelhante vale também em relação às exigências morais que o Direito liberal impõe, ao que, na segunda parte de sua obra, Hegel designa enquanto “o direito da vontade subjetiva”. Também aí, o sistema do Direito liberal contenta-se meramente com o cumprimento dos deveres legais, fazendo deste o único critério da aceitabilidade mo­ral do agir das pessoas. E o faz independentemente das conseqüências materiais, inúmeras vezes “injustas” da perspectiva da idéia da jus­tiça social. Em outra oportunidade, caraterizei esta experiência da delimitação jurídica dos deveres e das responsabilidades enquanto uma “lógica da desresponsabilização” ou “legalidade da moral.”[ix] A falta de respaldo à idéia da justiça social ou seja, à velha opção pela fraternidade e a solidariedade evidencia-se, mais uma vez, dentro do sistema liberal-burguês no campo da organização jurídica da Sociedade civil, vendo-se qualificado por Hegel como “Estado da necessidade e do entendimento.” (§ 183 FdD) Segundo o próprio Hegel, a Sociedade civil, na sua essência dedicada à reprodução econômica e sociocultural da comunidade, “oferece em suas oposições e complica ções. ..o espectáculo da devassidão bem como o da corrupção e miséria.” § 185 FdD) E no § 195 FdD, sublinhando a incapacidade da Sociedade civil de dar voz ao princípio da solidariedade, afirma: “Daí provém o luxo que é, ao mesmo tempo, um aumento infinito da dependência e da miséria. O espectáculo descrito por Hegel, além de apontar tais aspectos enquanto intrínsecos à Sociedade civil, denuncia a sua ori­gem na própria construção jurídica que a sustenta. Pois nela, os in­divíduos só buscam seu lugar de enredamento social no intúito de ga­rantir sua subsistência material, sendo que sua fortuna depende mui­to mais das condições econômicas do mercado de trabalho, do que de sua habilidade e engajamento individuais. Nem mesmo o máximo desem­penho pessoal pode garantir o sucesso de alguem nesse mercado. Do que nos dá prova o crescimento também da força de trabalho qualifi­cada sem emprego, em tempos de recessão ou de racionalização tecno­lógica da produção.

Como se trata de um sistema em si coerente, não pode surpreender que os efeitos problemáticos da juridificação da liberdade encontrem-se também no campo do agir do Estado. Segundo a exposição hegeliana, a eticidade, alvo principal do Estado liberal de Direito, baseia-se na mesma relação já caraterizada entre a liberdade como princípio da sociabilidade, e a idéia da justiça social. Pois é justamente o fato de as instituições jurídicas da Sociedade civil e do Estado de Direi­to renunciarem a intervir na estrutura material do relacionamento social, que garante a manifestação livre do homem. O Estado, diz Hegel, tem “a sua força na unidade do seu último fim universal e dos interesses particulares do indivíduo; esta unidade exprimese em te­rem aqueles domínios deveres para com o Estado na medida em que também têm direitos.” (§ 261 FdD) Fazendo esta referência explícita ao § 155 FdD, Hegel aponta ao verdadeiro mistério da ética do Estado liberal. Pois esta delimitação recíproca de direitos e deveres exige a compatibilização entre o egoísmo particular e o bem comum. É daí que nasce a lógica caraterística do Estado liberal de Direito. A sa­ber, a condição suficiente da legitimidade das decisões político-institucionais nada mais é do que aceitação das regras legalmente in­stauradas. Com isso, o Estado ele mesmo vê-se em concordância com o princípio da liberdade geral a ser por ele assegurado. O que signi­fica que o sentido enfático da eticidade, concretizado na idéia do bem comum e de valores reconhecidos, não encontra mais espaço no dis­curso político. Ou, o que é o mesmo, perde-se o espaço autêntico do político oportunizando a negociata de interesses particulares dis­farçados de interesses comuns.

Como vemos, estes poucos indícios, extraídos a partir de implicações críticas da Filosofia do Direito de Hegel, dão-nos a entender que a juridificação da liberdade, desencadeada pela lógica do Direito li­beral, leva à subtração da pergunta pela solidariedade e justiça so­cial. A força organizadora do direito passa a restringir-se obvia­mente à garantia da livre expressão da vontade, sem operar nas condições materiais e valorativas de suas manifestações. Foi aliás Karl Marx, quem no ensaio de 1843 sobre “A Questão Judaica” daí con­cluiu: “O direito humano da liberdade não se fundamenta no entrela­çamento do homem com o homem senão, antes, da segregação do homem do homem. Trata-se do direito dessa segregação, do Direito do indivíduo limitado, reduzido a si mesmo.”[x] E acrescentou: “A aplicação prá­tica do direito humano da liberdade é o direito humano da proprieda­de privada.”(ibidem) Marx retomava, assim, o fio condutor que, ao avesso da argumentação de Hegel, encontrava-se inscrito na ordem jurídico-liberal. Percebia que a construção jurídica da liberdade, tal como o fazia o sistema do direito moderno, haveria de levá-lo, simultaneamente, à própria desresponsabilização quanto às condições con­creto-materiais da sociabilidade vigente. Hoje sabemos que a garantia universal da liberdade, tal como objetivada pela lógica jurídica, leva ao mesmo tempo ao desdobramento de uma racionalidade coisificadora, tal como a que se inscreve no sistema da economia capitalista. Assim sendo, temos que a juridificação da liberdade e a inclusão do homem no mercado coisificador representam os dois lados da mesma mo­eda. Esta a chave de compreensão para aquele conluio aparentemente estranho entre a ordem liberal, condicionada pelo direito, e a dinâ­mica da economia capitalista. Conluio este já detectado por Max Weber, em seu esboço de 1920, sob o título “A Ética do Protestantismo e o Espírito do Capitalismo.”[xi]

 

4.

Minhas considerações partiram da hipótese de que seria possível identificarmos, no debate sobre a fundamentação dos direitos humanos, al­guns argumentos capazes de fazer entender sua susceptibilidade ao po­der e , por conseguinte, ao risco de sua instrumentalização. Um olhar rápido, lançado às falhas do jusnaturalismo e seus efeitos, por mim denominados a ‘juridificação da liberdade’, revelaria a surpreendente falta de consciência quanto à fundamentação correta dos direitos humanos. Como se viu, estes só podem ser legitimados a partir do reconhe­cimento da liberdade enquanto condição existencial do ser humano. Im­possível, portanto, fazer dos direitos humanos o meio à implementação da liberdade. Quem quiser recalcar esta sua verdadeira proveniência na ordem da razao ligará, de antemão, a idéia da liberdade àquele marco infeliz, delimitado pela lógica jurídica. E perderá de vista a relevância do condicionamento material, decisivo para a construção de uma sociedade justa. Foi a Filosofia do Direito de Hegel que nos levou a esta conclusão devido a ter atribuído ao sistema do direito, enquanto finalidade última, a tarefa de garantir a livre expressão da vontade humana. Tarefa esta que se cumpre na esfera social, ou seja, na construção voluntária das relações, esquecendo-se de todo o campo dominado pela lógica econômica, isto é, pela lógica do cálculo quantificador tal como ocorre no espaço econômico dirigido pelas necessidades do ca­pital. Esta uma das conseqüências desastrosas da concepção liberal do direito que, ao invés de fazer da liberdade existencial do homem o seu pressuposto próprio, condiciona-a ao seu legislar. Vistos nas trilhas do jusnaturalismo e assim destituídos de seu fundamento verdadeiro, os direitos humanos tornam-se facilmente manipuláveis na reivindicação de uma ordem liberal, que abre caminho à imposição juridicamente in­controlável de interesses e poderes legitimados na (ir)razão econômica vigente.
O discurso sobre os direitos humanos, que hoje subjaz à polí­tica internacional e à argumentação legitimadora dos países mais avan­çados frente ao resto do mundo, aproveita-se destas implicações da juridificação da liberdade. Ao reproduzir neles os equívocos de sua concepção jusnaturalista, este discurso permite, ao menos de modo implícito, o desdobramento global da lógica econômica do capital. E o pro­jeto da implementação dos direitos humanos, em nível mundial, provoca uma instrumentalização em nome do reconhecimento de uma liberdade que, meramente juridificada, recebe, ainda assim, o nome de ‘liberda­de’. Difícil, por isso, desacreditar o discurso que o utiliza com tanta ênfase. Desejo, por isso mesmo, insistir em que os riscos que acompa­nham a juridificação da liberdade, no sentido acima exposto, deveriam levar-nos a repensar aquela função de fundamento e instância legitima­dora que os direitos humanos adquirem no processo da globa1ização po­lítica, econômica e cultural. Pois, emersa na tradição iluminista oci­dental, a idéia de liberdade remete, originalmente, à instância exis­tencial do homem e de sua razão. Instância esta, na qual a liberdade humana de optar também pelo sistema social e constitucional que deseje implantar como modelo de sua sociabilidade está desde sempre incluída. Isto vale ainda mais para o campo cultural e religioso, que deveria incentivar um máximo de tolerância mútua, em vez de praticar ativida­des missionárias. Em consequência disso, o processo de globalização não legitima fazer da liberdade juridificada, tal como esta se vem desdobrando nas trilhas do liberalismo, o modelo supremo a ser universalmente imposto. Ao contrário, seria necessário transformá-lo num processo de conscientização quanto a esta instância existencial da liberdade humana, aquilo a que W.Jaeschke chama “a facticidade da liberdade humana”.

O alvo preferencial dos esforços culturais e políticos deveria ser justamente essa formação de uma consciência livre, bem antes de se perguntar pelo sistema econômicosocial mais adequado a ser escolhido pelas comunidades. Vale lembrar, neste contexto, a concepção da Polí­tica defendida por Platão. Sua ‘Politéia’ vive do saber da phrónesis, isto é, de um saber conquistado pela experiência prática que subjaz e antecede qualquer institucionalização de direitos e deveres. A meu ver, cabe lembrar os princípios desta tradição à política de globalização a fim de evitar os erros dominantes no discurso missionário dos direitos humanos juridificados.

 

NOTAS

 

* Capítulo a ser publicado no volume Democracia e Justiça Global, org. Nythamar de Oliveira e Draiton de Souza (Edipucrs, 2008); cf. versão em alemão, Hans-Georg Flickinger, Im Namen der Freiheit. Über die Instrumentalisierbarkeit der Menschenrechte, Deutsche Zeitschrift für Philosophie 54/6 (2006): pp. 841-852.

 



[i] Os relatórios anuais de Amnesty International dão inúmeras provas deste fato.

[ii] Ver, entre outros, a caraterização encontrada em S.P.Huntington, The clash of civilizations and the remaking of the world order (New York, 1996).

[iii] G.W.F.Hegel, Filosofia do Direito, § 36. Embora mal feita, refiro-me à tradução de Orlando Vitorino, na edição dos Guimarães Editores, Lisboa (3.edição 1986), por se tratar da tradução mais usada. Doravante, abreviada como FdD.

[iv] Ver Walter Jaeschke, "Zur Begründung der Menschenrechte in der frühen Neuzeit". In: Strukturen der Macht. Hrsg. Konrad Wegmann u.a. Münster, 2001.

[v] Compare H.-G. Flickinger, “Sete Teses acerca do Comunitarismo”, in Justiça e Política, org. Nythamar F.de Oliveira e Draiton G. de Souza (Porto Alegre: Edipucrs, 2003), p. 157.

[vi] Este debate tem sua origem nos anos 20, do século XX. Retomado de­pois da 2a Guerra Mundial na Alemanha destacam-se E.Forsthoff e W.Abendroth, enquanto representantes das duas correntes principais; o conflito culminaria, nos anos 70, na rivalidade entre as concepções defendidas por John Rawls e Robert Nozick.

[vii] Observa-se, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos e até no Brasil, a redução contínua dos recursos investidos na área social, desde os anos 80. Ver, por exemplo, Friedrich Ortmann, “Problemas de Institucionalização das Políticas Sociais na Alemanha atual”, in Entre Caridade, Solidariedade e Cidadania, org. H.-G.Flickinger (Edipucrs, Porto Alegre 2000), p. 98.

[viii] Refiro-me, em parte, a considerações por mim publicadas em Em Nome da Liberdade: Elementos da crítica ao liberalismo contemporâneo (Porto Alegre: Edipucrs, 2003), p. 11.

[ix] Idem, p. 39.

[x] Karl Marx, “Manuscritos econômico-filosóficos” (Lisboa: Edições 70, 1993), p. 56.

[xi] Entretanto, M.Weber não conseguiu, ainda, revelar a complementarie­dade entre as lógicas do direito liberal e a economia capitalista.

 

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