ATUALIDADES
A NOVA CRUZADA CONTRA O ISLAM
Por Mônica Muniz
Logo após os ataques ao WTC, o presidente George W. Bush teve um ato falho que bem define
os sentimentos que animam a invasão do Afeganistão: Uma cruzada contra o terror. Mas, o
que vem a ser cruzada e porque a ameaça se dirige mais diretamente ao Islam? Por que os
muçulmanos se sentem ameaçados apesar dos constantes pronunciamentos da comunidade
internacional? Considerando que os atuais conflitos regionais envolvem regiões habitadas
majoritariamente por muçulmanos, tem algum fundamento o temor de eles se virem às voltas
com uma nova Cruzada? Será que em pleno século 21, estamos voltando no tempo, mais
precisamente ao século 11, quando cristãos e muçulmanos se envolveram numa luta
prolongada por cerca de 300 anos?
O fenômeno das Cruzadas está intimamente ligado à doutrina da Guerra Justa formulada
por uma Igreja ambivalente em relação à guerra e ao uso da força, que afirmava que a
violência em si é um mal, mas que a passividade diante dela poderia ser um mal maior.
Alguns teólogos teorizavam que a violência era moralmente neutra e que aqueles que a
usassem para o progresso do Reino de Cristo, poderiam transformá-la num bem positivo. Uma
vez atendidas as condições básicas de: Causa Justa, Convocação pela Autoridade Devida
e Intenções Corretas por parte dos combatentes, a guerra era justa e os cristãos que se
engajassem nela não precisavam temer o fogo eterno. Este ajustamento da doutrina da
Guerra Justa ficou conhecido como Guerra Santa, termo cunhado por cristãos e não por
muçulmanos como estamos habituados a ouvir. Guerra Santa promovida pela Igreja contra os
infiéis, os muçulmanos, os sarracenos que ocupavam a terra sagrada, a qual deveria estar
preparada para a segunda vinda do Cristo.
Enquanto Jerusalém esteve sob domínio árabe, as relações entre cristãos, judeus e
muçulmanos foram cordiais sem o registro de choques evidentes, com exceção do período
do Califa Hakim, o Louco, que mandou destruir igrejas e perseguiu judeus e cristãos. A
entrada dos turcos vindos da Ásia Central, no cenário islâmico, veio quebrar o
equiíbrio das estruturas sociais e políticas até então vigentes, criando áreas de
atrito que se manifestavam mais claramente nos consideráveis embaraços impostos aos
peregrinos cristãos que vinham do ocidente para visitar os locais sagrados de Jerusalém.
Os grupos armados contratados para proteger esses peregrinos já prenunciavam o que seriam
as próximas cruzadas. O efeito dessas campanhas sobre os muçulmanos foi devastador e nas
cidades principais do Oriente Médio eles foram exterminados de forma cruel.
Oficialmente, as Cruzadas terminaram em 1291, com a retomada da Terra Santa pelos
muçulmanos, mas o seu espírito evoluiu e se adaptou às novas circunstâncias e
necessidades, permanecendo vivo durante toda a Idade Moderna e, ao que parece, se
estendendo pelo século 21. A Reconquista, por exemplo, foi um conceito que se originou do
princípio de que a Hispania tinha sido ocupada injusta e violentamente pelos muçulmanos
e que os reis hispano-cristãos tinham o direito e o dever de retomá-la por intermédio
de uma cruzada contra os infiéis.
Por outro lado, se observarmos bem, a Cruzada contra o Terror, empreendida pela ampla
coalizão liderada pelos Estados Unidos e Inglaterra, preenche todos os requisitos da
Guerra Santa, ou seja, Causa Justa, o combate ao terror, Autoridade Devida, o presidente
americano, e Intenções Corretas, todos estão bem intencionados. Por certo que os novos
cruzados não precisarão temer o fogo eterno, mesmo que os eventuais e inevitáveis
"danos colaterais" refiram-se à morte de milhares de civis inocentes, os novos
infiéis.
Alguns historiadores e pesquisadores identificam na colonização das Américas, sob
patrocínio dos reis católicos de Espanha, uma extensão das Cruzadas. Os primeiros
exploradores eram, em muitos casos, soldados espanhóis que haviam lutado na Espanha ou na
África e navegado os mares para destruir o poder do Islam. Eles reconheciam a influência
islâmica por onde quer que passassem e tinham ordem de converter ao catolicismo aqueles
povos. Abdullah Hakim Quick, historiador muçulmano que investiga a presença de
muçulmanos na América pré-colombiana, escreveu em seu livro "Deeper Roots",
que quando Hernan Cortés (o conquistador do México) chegou a Yucatán, chamou aquela
região de "El Cairo". Os homens de Cortés e de Juan Pizarro (o conquistador do
Peru), alguns dos quais haviam tomado parte diretamente na luta contra os muçulmanos,
chamaram os templos indígenas de "Masjid" (mesquita). Ainda segundo o
historiador, várias leis foram baixadas com o objetivo de interromper o fluxo de
muçulmanos, libertos ou escravos, para as Américas e trazer de volta os indígenas
muçulmanos convertidos.
Um outro momento de perseguição aos muçulmanos se dá em meados do século 13, com a
edição de duas bulas do papa Gregório IX, que marcam o início da Inquisição, quando
a Igreja Católica Romana perseguiu, torturou e matou vários de seus inimigos sob a
acusação de heresia. Eram considerados hereges, dentre outros, "...Quem pratica
ações que justifiquem uma forte suspeita (circuncidar-se, passar para o islamismo...),
assim como todos os que se relacionassem com eles. Mais tarde, o papa Inocêncio IV
institucionalizou o Tribunal da Inquisição e autorizou o uso da tortura como instrumento
legítimo para a obtenção de confissões.
A Inquisição espanhola, que pode ser considerada como um movimento fundamentalista
cristão, já vinha sendo implementada há mais de um século mas só foi formalizada
através de um decreto dos reis católicos Fernando V e Isabel I. Tinha o objetivo de
resolver o problema dos judeus e, mais tarde, dos muçulmanos e dos convertidos ao
cristianismo. O dominicano Tomás de Torquemada, o mais famoso inquisidor-mor, executou
milhares de supostos herejes. Calcula-se que a Inquisição matou cerca de 350 mil pessoas
na Europa.
Na transição da Idade Média para a Idade Moderna, a criação da Inquisição e de seu
aparato jurídico, o Tribunal do Santo Ofício, devem ser entendidos como fenômenos
articulados com o surgimento do Estado nacional. A construção e fortalecimento do Estado
centralizado exigiam uma unidade da população, nem que fosse religiosa. A Igreja, ao
combater os hereges, procurava manter o monopólio do poder temporal ameaçado pela
formação dos estados nacionais. Nesse contexto, a exacerbação da religiosidade e
conseqüente perseguição e caça às bruxas, mais do que buscar uma unidade religiosa,
foram manifestações contemporâneas de intolerância.
A Idade Moderna absorveu o universo medieval que concebia o mundo a partir de uma
estrutura dual: céu e inferno, senhor e servo, bem e mal, virtude e pecado e que
inegavelmente chegaram até nós de forma reciclada, capitalismo e comunismo, democracia e
socialismo, certo e errado, religião cristã e religião islâmica, quem não está com
os Estados Unidos está a favor do terrorismo. Não havia, como não há, espaço para uma
terceira possibilidade. Na verdade, o ocidente não conseguiu absorver o princípio
aristotélico de que a afirmação de uma coisa não implica na negação de outra.
O conjunto de transformações que se iniciaram na Inglaterra no final do século 18 e que
se estenderam por toda a Europa e o resto do mundo, resultou no triunfo do capitalismo,
promovendo uma ampla revolução nas relações sociais, políticas, étnicas, religiosas
e estabelecendo um novo poder econômico. A necessidade de exportar capitais excedentes, a
busca de novos mercados, a procura por matérias-prima e mão de obra barata dão início
a uma política expansionista em direção ao Oriente. Em troca, as potências ocidentais
levavam, além do dinheiro, suas idéias, sua religião, sua política, seu modo de vida.
A partir de 1870, inicia-se uma nova cruzada. As nações mais avançadas se lançaram
quase que ao mesmo tempo ao processo de anexação do mundo todo, com exceção do
continente americano, sendo que França e Inglaterra levaram a melhor fatia na divisão do
bolo colonial.
Além dos fundamentos econômico-financeiros que amparavam a política imperialista, havia
também os ideológicos, que se baseavam nos pressupostos de levar a civilização
àquelas terras, melhorar as condições de vida daquela gente, evangelizar os
territórios por meio de instituições evangélicas construídas com essa finalidade. Da
mesma forma que a Igreja na época da Inquisição promoveu o apagamento das culturas
locais, também o colonialismo pretendeu erradicar toda uma cultura predominantemente
islâmica para introduzir a cultura européia, com valores religiosos, éticos e morais
estranhos às populações.
Por todo o século 19 e 20 surgem movimentos nacionalistas e grupos de oposição à
colonização dos territórios, que vão se somar á crise do pós-guerra e acabam por
determinar o processo de descolonização da região. A criação de novos estados
basicamente não levou em consideração aspectos étnicos, culturais e religiosos, e é
hoje uma das causas principais da maior parte dos conflitos que ocorrem no mundo. As
questões da Palestina, Chechênia, Caxemira, Bósnia, Kosovo, Paquistão, para não falar
nos países africanos, são reflexos ou consequências de uma política que privilegiou
interesses do poder hegemônico ocidental, sem levar em conta o direito de soberania
daqueles povos de escolherem seu modo de vida.
Os muçulmanos, forjados numa história de séculos de perseguições e massacres em
massa, não podem confiar no aceno amigável e protetor do ocidente, pois ele vem de seu
velho conhecido opressor de outrora.
O muçulmano não compreende como toda uma comunidade que se levantou contra as
condições do povo afegão, em especial da mulher afegã, agora se cala diante das
imagens chocantes de um cenário de guerra que expõe a morte de inocentes, principalmente
crianças, a destruição de alvos civis, hospitais, escolas, já devastados por guerras
anteriores, o êxodo de um povo humilhado em busca da proteção que os países vizinhos
não conseguem dar.
O muçulmano não compreende por que a mão
que joga alimentos é a mesma que lança bombas no Iraque, no Afeganistão, ou fecha os
olhos para a condição do povo palestino, como num filme antigo a reproduzir imagens de
violência, cansativas de tanto que se repetem. As ajudas humanitarias são promovidas
pela mesma ONU que impõe sanções econômicas que agravam a situação de miséria
desses povos. Os inimigos de ontem são os aliados de hoje, e certamente serão os
inimigos de amanhã. O mundo transformou-se num imenso shopping center e o que se negocia
são os legítimos movimentos de libertação nacional, reconhecidos, inclusive, por
orgnismos internacionais.
O muçulmano se pergunta que preço os Estados Unidos pagarão pelo apoio da Rússia. O
massacre dos muçulmanos chechenos? Que preço os Estados Unidos pagarão pelo apoio de
Israel. O massacre dos palestinos? Que preço os Estados Unidos pagarão pelo apoio da
China. O massacre das minorias muçulmanas chinesas? Que preço os Estados Unidos pagarão
pelo apoio paquistanês. A manutenção no poder de um general golpista sabidamente
corrupto, até bem pouco tempo acusado de estreitas relações com a máfia russa? Que
preço os Estados Unidos pagarão pelo apoio da Índia. O massacre da Caxemira? Que preço
o Afeganistão pagará pelo acesso às ricas reservas de petróleo da região do Cáucaso.
A sua destruição completa? Que preço os Estados Unidos pagarão à Aliança do Norte,
tantas vezes denunciada pela Anistia Internacional como autora das maiores atrocidades
cometidas contra o povo afegão, principalmente os comprovados estupros de mulheres,
durante a transição entre a saída da ex-União Soviética e a chegada do Taleban. Mais
estupros, mais violência, o esmagamento da etnia patshu, que compõe a maioria da
população do Afeganistão?
O muçulmano sabe que se trata de uma nova cruzada e sabe que, ainda que o discurso
oficial exima o Islam, não exime os muçulmanos. Este o preço que pagarão pelo simples
fato de serem muçulmanos.
31/10/2001
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