1. Introdução.

 


      Neste capítulo pretendo desenvolver conceitos ligados à sociabilidade para chegar a alguns parâmetros de compreensão que nos auxiliem na construção etnográfica do grupo Net. Como é a sociabilidade no espaço da Internet? Não se deve ver nessa questão uma separação entre um tipo de sociabilidade e outro mais genérico; faz parte da compreensão de ambas o objeto em questão. Basicamente conceituo a sociabilidade como sendo trocas de representações culturais, ou trocas simbólicas de códigos culturais partilhados. É claro que não é tão simples assim, trocar é o processo que ocorre quando pessoas se reúnem e atualizam seus símbolos, seja em que espaço for. Vejamos adiante o desenvolvimento deste conceito. Certos aspectos do que seja sociabilidade, de acordo com certas correntes de autores, parece identificá-la como as relações de um grupo (ou indivíduos) com o exterior, fora do cotidiano (este, identificado mais com a Socialidade - "reprodução da vida social" - "interior" - Mccallum, 1999), com aspectos formais relacionados a status (atuações ou papéis) e com características menos afetivas, mais racionalmente elaboradas. No entanto, essa conceituação limita a nossa compreensão do objeto. A "'forma da sociabilidade' enfatiza as relações com o exterior que transcendem o doméstico e a vida diária." (Mccallum, 1999) Algo que, como veremos pelo ponto de vista da presente investigação, reforçará o sentido de sociabilidade como processo de trocas simbólicas que é aqui defendido. Já para Michel Maffesoli, "a socialidade é um conjunto de práticas quotidianas que escapam ao controle social rígido, insistindo numa perspectiva hedonista, tribal, sem perspectivas futuristas, enraizando-se no presente. As relações que compõem a socialidade constituem o verdadeiro substrato de toda vida em sociedade, não só da sociedade contemporânea, mas de toda vida em sociedade. São os momentos de despesa improdutiva, de engajamentos efêmeros, de submissão da razão à emoção de viver o 'estar junto' que agrega determinado corpo social. Assim, é a socialidade que 'faz sociedade', desde as sociedades primitivas com seus momentos efervescentes, ritualísticos ou mesmo festivos, até as sociedades tecnologicamente avançadas com sua barroquisação através das imagens." (Lemos, 1997, on line) Na introdução de Comunidade e Sociedade, Florestan Fernandes nos fala que "em cada nível da organização da vida a interação constitui uma expressão das funções adaptativas nela preenchidas pela sociabilidade e pela associação..." (1973: XII); nessa base, a sociabilidade seria uma construção dinâmica que move as estruturas das interações sociais; uma característica psicossocial (necessidade coletiva) motivadora e possibilitadora das interações. Em todo tipo de interação social produzida e vivida (e reproduzida) pelos indivíduos nos contextos dos quais fazem parte, múltiplas construções são atualizadas nos mais diversos rituais, representando externamente (como fenômeno) as representações dos inúmeros processos de significação que dão sentido às ações destes mesmos indivíduos. As interpretações possíveis das ações são as representações das mesmas; são o discurso sobre a ação e não a ação. Representar é uma forma de explicar: reunir, ordenar e dar forma às ações. Daí que a compreensão das ações só seja possível através das representações e esse processo é uma construção cultural dinâmica, cujo caráter inicial de acaso se torna codificado pela cultura, retornando continuamente aos processos de significação das ações dos indivíduos na forma de representações . Dentro de uma coletividade é possível o indivíduo ter uma compreensão do grupo e, ao mesmo tempo, o grupo gerar uma outra do indivíduo. As diferenças de interpretação são englobadas num conjunto de representações coletivas que parece se dar pelo acordo (implícito ou explícito), num processo de interpretação e convencionamento do acaso que une as diferentes compreensões num suposto primeiro momento de interação hipotético. Todo processo de construção simbólica só é possível a partir da interação, por isso esta imagem do "começo da interação cultural" buscando (criando) o sentido partilhado das coisas e das ações. Tanto a representação do eu quanto a do outro geram uma representação mútua de realidade, que se vê frente, em ambos os lados, a representações incondicionalmente verdadeiras, mesmo apesar de serem representações, pois estas são as representações dos sujeitos dos choques de consciências que existem nos processos de socialização. Toma-se consciência que há outro, interagindo, e que a interação tem sentido para ambos. A motivação para a sociabilidade seria, então, a tomada de consciência da reciprocidade, da troca de símbolos. Ao tomar consciência do Outro, se torna necessário e já se faz presente a sociabilidade, pois não se pode alienar a própria consciência, mesmo que se queira alienar o outro por qualquer razão. Ou, dito de outro modo, a própria troca já constitui a sociabilidade e sua representação é a interpretação dos indivíduos das suas recíprocas tomadas de consciência dessa troca . A sociabilidade é a atividade de troca ou compartilhamento de representações (códigos) que indivíduos de uma coletividade têm em comum, mediante as diversas formas de aprendizado recíproco nas interações, isto é, dentro de uma mesma cultura (lato senso). Devemos esclarecer que para haver sociabilidade, não é necessário que os indivíduos sejam estritamente da mesma cultura, mas, no entanto, para que haja a sociabilidade, isto é, troca de representações, é necessário algum mínimo de códigos em comum. Toda realidade é construída por véus de complementaridade que ao mesmo tempo afastam e aproximam o outro real, pois este (de maneira recíproca) será sempre uma construção entre o que se forma de "típico" (generalizável) e sua individualidade, que nunca fica totalmente exposta. Enfim, o indivíduo procura a sociabilidade onde esta lhe faz falta: são as ausências que precisam ser complementadas pelo outro. A sociabilidade parece se desenvolver também a partir das necessidades que têm os indivíduos de participarem de um todo (se socializar, não estar isolado, encontrar sentido nas ações que tem de realizar). São as motivações básicas. No entanto, existem os conflitos inerentes às interações entre consciências. As representações do indivíduo social são resultados dos embates entre representações coletivas (o grupo) e as representações do indivíduo particular; entre as regras coletivas e os desejos pessoais, interpretados na forma de ações concretas. Estamos ao mesmo tempo dentro e fora da coletividade, só assim a podemos representar e a nós mesmo como parte dela. Disso podemos inferir novamente que, a sociabilidade se estabelece e é possibilitada (e pode ser conceituada) através dos diversos tipos e níveis de trocas (inclusive os embates) que se dão nas interações sociais.


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