TAREFA
ESPECIALIZADA - Em companhia do instrutor Jerônimo, da enfermeira Luciana e do
padre Hipólito e André Luiz, em missão especial: atender, nos próximos trinta
dias, a cinco dedicados colaboradores de "Nosso Lar", prestes a desencarnarem na
Crosta. Por trabalharem, fiéis à causa do bem, deliberaram as autoridades
encarregar o pequeno grupo de atender-lhes aos casos pessoais.
Antes de
iniciar os trabalhos da expedição socorrista, o assistente Jerônimo conduz os
companheiros ao Templo da Paz, em zona consagrada ao serviço de auxílio, onde
esclarecido Instrutor comenta as necessidades de colaboração junto às entidades
infelizes, nos círculos mais baixos da vida espiritual que rodeiam a Crosta da
Terra.
Findas as atividades no Templo, recebem, da parte do Instrutor Albano,
palavras de incentivo e confiança no êxito da missão.
Às vésperas da partida,
o assistente Jerônimo leva-os ao Santuário da Bênção, situado na zona dedicada
aos serviços de auxílio, para receber a palavra de mentores iluminados,
habitantes de regiões mais puras e mais felizes.
Lá, em meio a seleta
presença, são induzidos pelo Instrutor Cornélio, diretor da instituição, a criar
paisagem edificante, utilizando do poder mental, para a recepção à venerável
Benfeitor de sublimes esferas. André Luiz recorda-se da gramínea de seu lar
terrestre, tão apreciada por sua esposa e seus filhos, e das pequenas flores
azuis, que a amada companheira colocava todos os dias em seu isolado gabinete de
estudos e funda saudade o leva a desejar arrebatá-los de vez para junto de si,
em novo ninho, desta vez sem morte e separação. O instrutor Jerônimo, à um só
olhar, o leva a recobrar o equilíbrio.
Após, surpreendidos, vêem
materializar-se venerável figura, que dirige-lhes a palavra santificada.
Ao
término da saudação, indagações várias são endereçadas ao emissário celeste, que
as responde com citações bíblicas largamente conhecidas, contidas em pequenos e
luminosos pergaminhos. André tem a impressão de que já conhecia, com
antecedência, as perguntas que se lhe fariam.
NA CASA TRANSITÓRIA
- Em direção à Crosta, pelos caminhos normais, o grupo socorrista, do qual
faz parte André Luiz, se detêm na Casa Transitória, comandada pela irmã Zenóbia,
espírito forte e batalhador. Ali, são surpreendidos pelo ataque de uma horda
infernal de seres devotados à crueldade, prontamente, porém, rechaçados pela
defesa magnética da instituição.
Dentre inúmeros problemas levados à irmã
Zenóbia, chega o alerta de que os desintegradores etéricos passarão pela região
no dia seguinte.
- "Oh! o fogo?!... - replica a diretora, patenteando
inexcedível emoção. - Bem o suspeitei - ponderou, acrescentando: - o nosso
ambiente está conturbado. A passagem dos monstros é sinal de que a limpeza será
urgente.
Dado o fato, Zenóbia convida o instrutor Jerônimo para descer em sua
companhia até os abismos, para socorrer sofredores escravizados por entidades
perversas e à um espírito, em particular, das relações afetivas da
diretora.
À sós, o padre e Luciana dirigem-se ao salão de preces e André é
apresentado ao médico Gotuzo, espírito extremamente simpático, porém ainda
profundamente ligado ao magnetismo terreno.
AMIGOS NOVOS - Conta André
Luiz: "Conduzindo equipamento indispensável ao trabalho, despedimo-nos da
instituição socorrista, colocando-nos a caminho da Crosta.
Jerônimo dava
pressa em auscultar os vários ambientes em que se verificaria nossa atuação.
Programou a tarefa com simplicidade e bom senso. Não nos distrairíamos com
quaisquer investigações, além da missão previamente esboçada, e manter-nos-íamos
em ligação incessante com a Casa Transitória, para maior eficiência no dever a
cumprir.
- Naturalmente - explicou - seremos forçados a diversas atividades
de assistência aos amigos prestes a se desfazerem dos elos corporais do plano
grosseiro e a fundação de Fabiano será o nosso ponto principal de referência no
trabalho. Nos instantes de sono, conduzi-los-emos até lá, para que se habituem
lentamente com a idéia de afastamento definitivo.
Intrigado, ao verificar
tanta cautela, perguntei:
- Meu caro Assistente, todas as mortes se fazem
acompanhar de missões auxiliadoras? cada criatura que parte da Crosta precisa de
núcleos de amparo direto?
O amigo sorriu com indulgência, na superioridade
legítima dos que ensinam sabiamente, e esclareceu:
- Absolutamente.
Reencarnações e desencarnações, de modo geral, obedecem simplesmente à lei. Há
princípios biogenéticos orientando o mundo das formas vivas ao ensejo do
renascimento físico, e princípios transformadores que presidem aos fenômenos da
morte, em obediência aos ciclos da energia vital, em todos os setores da
manifestação. Nos múltiplos círculos evolutivos, há trabalhadores para a
generalidade, segundo sábios desígnios do Eterno; entretanto, assim como existem
cooperadores que se esforçam mais intensamente nas edificações do progresso
humano, há missões de ordem particular para atender-lhes as
necessidades.
Sentindo-me a estranheza, Jerônimo prosseguiu:
- Não se
trata de prerrogativa injustificável, nem de compensações de favor. O fato
revela ordenação de serviços e aproveitamento de valores. Se determinado
colaborador demonstra qualidades valiosas no curso da obra, merecerá, sem
dúvida, a consideração daqueles que a superintendem, examinando-se a extensão do
trabalho futuro. No plano espiritual, portanto, muito grande é o carinho que se
ministra ao servidor fiel, de modo a preservar-lhe o devotado Espírito da ação
maléfica dos elementos destruidores, com o desânimo e a carência de recursos
estimulantes, permitindo-se, simultaneamente, que ele possa ir analisando a
magnitude de nosso ministério na verdade e no bem, em face do Universo
Infinito.
Ouvindo-lhe a elucidação, lembrei-me instintivamente dos tipos
apostólicos que conhecera na experiência humana. Não haveria contradição no
esclarecimento? os padres virtuosos, com os quais mantivera contato no mundo,
eram pessoas perseguidas através de todos os flancos. Notava que pessoas do mais
subido valor moral eram justamente as escolhidas para o assédio da calúnia
constante. Sem relacionar apenas os de minha intimidade, recordava a própria
história do Cristianismo. Não era, por ventura, cheio de exemplos? os
temperamentos, por muitos anos fervorosos na fé, haviam sido pasto de feras. Os
continuadores do Mestre foram vítimas de tremendas provações e Ele mesmo
alcançara o Calvário em passadas dolorosas...
O Assistente percebeu o jogo de
raciocínios que se me desdobrava no íntimo e esclareceu:
- "Suas objeções
mentais não tem razão de ser. A concepção humana do socorro divino é viciada
desde muitos séculos. A criatura pressupõe no amparo de Deus o protecionismo do
sátrapa terrestre. Espera perpetuidade de favores materialísticos, injustificável
destaque entre os menos felizes, dominação e louvor permanentes.Costuma aguardar
serviço, estima e entendimento, mas desdenha servir, estimar e
entender, quando não seja em retribuição. O subsídio celeste traduz-se por
benditas oportunidades de trabalho e renovação; chega, muitas vezes, ao círculo
da criatura, como se foram gloriosas feridas, magníficas dores, abençoados
suplícios. Enquanto predominem na Crosta Planetária os impulsos de animalidade
primitiva, os agraciados da bênção divina serão, em sua maior parte,
representantes do poder espiritual, os quais, de maneira alguma, ficarão isentos
de testemunhos difíceis nas demonstrações imprescindíveis. Não que o Senhor
intente transformar discípulos em cobaias, mas pela imposição natural da obra
educativa em que a lição do aluno atento e fiel deve interessar à classe
inteira. O que quase sempre sempre parece sofrimento e tentação, constitui bem-aventurança
transformando situações para o bem e para a felicidade
eterna."
O argumento era lógico e incisivo. E por que o Assistente
silenciasse, cogitando, talvez, do objetivo fundamental que nos condizia ao
trabalho previsto, procurei reter impulsos indagadores.
Orientados por
Jerônimo, atingíramos pequena cidade do interior e dirigimo-nos a certa casa
humilde, na qual, em breves minutos, nos apresentava ele determinado
companheiro, em lamentáveis condições, atacado de cirrose hipertrófica.
- É
Dimas! - exclamou, indicando o enfermo - assíduo colaborador de nossos serviços
de assistência, faz muitos anos. Veio de nossa colônia espiritual, há pouco mais
de meio século, consagrando-se a tarefa obscura parta melhor atender aos divinos
desígnios. Desenvolveu faculdades mediúnicas apreciáveis, colocando-se a serviço
dos necessitados e sofredores.
O quarto modesto permanecia cheio de radiosos
eflúvios, denunciando a incessante visitação de Espíritos iluminados.
- Nosso
amigo - continuou o Assistente - fez-se credor feliz de inúmeras dedicações pela
renúncia com que sempre se conduziu no ministério. Agora, é chegado para ele o
tempo do descanso construtivo.
Agradavelmente surpreendido, reparei que o
doente se apercebeu de nossa presença. Cerrou os olhos do corpo, enxergando-nos
com a visão da alma e animou-se, sorrindo...
O enfraquecimento físico
atingira o ápice e Dimas conseguia deixar o aparelho corporal, de certo modo,
com extraordinária facilidade.
Vendo-nos, perto do leito, pôs-se em ardente
rogativa, pedindo-nos colaboração. Estava exausto, dizia; no entanto,
mantinha-se calmo e confiado.
Aconselhado por Jerônimo, acerquei-me do
enfermo, aplicando-lhe passes magnéticos de alívio sobre o tecido conjuntivo
vascular. O abdômem conservava-se pesado e enorme. Revelaram-se, porém,
sensações imediatas de reconforto.
Seguindo-se ao meu auxílio humilde,
Jerônimo dirigiu-lhe palavras de encorajamento e prometeu voltar, mais
tarde.
Dimas, enlevado, endereçava ao Céu comovedor agradecimento.
Em
breves momentos, dois amigos espirituais dele vieram ter ao quarto, saudando-nos
atenciosamente.
Nosso dirigente convidou-nos à retirada, explicando-nos,
depois que nos havíamos afastado.
- Após rápida visita aos interessados,
reuni-los-emos em sessão de esclarecimento, na Casa Transitória, de maneira a
prepará-los para o fenômeno próximo da libertação definitiva. Esperaremos a
noite para esse fim.
Da pequena cidade em que localizava o primeiro visitado,
dirigimo-nos ao Rio de Janeiro.
Utilizávamos a volitação, prazerosos e
felizes.
Muito difícil descrever a sensação de leveza e alegria inerente a
semelhante estado, após a permanência na escura região de que precedíamos.
Fala-se, muitas vezes entre os encarnados, na possibilidade da criação do
aparelho de vôo individual; todavia, ainda que se efetive a nova conquista, o
peso do corpo físico, os cuidados exigidos pela máquina de propulsão e os riscos
de viagem não podem, de modo algum, substituir a segurança e a tranqüilidade que
nos enchem de tamanho bem-estar. Após a excursão normal, entre a Casa
Transitória de Fabiano e a Crosta Terrestre, dentro de harmoniosas condições
conservávamo-nos descansados e bem dispostos, operando muito facilmente a
volitação, não obstante a densidade atmosférica.
Poucas vezes se me
apresentara tão belo o espetáculo da paisagem terrena. Serras e vales, rios e
arroios marcando cidades e vilarejos, sob o espelho rutilante do sol, falavam-me
ao coração da misericórdia do Altíssimo congregando as criaturas em ninhos
floridos de trabalho pacífico.
Pensamentos de louvor ao Eterno Pai
felicitavam-me o espírito.
O casario compacto do Rio achava-se agora à nossa
vista.
Não decorreu muito tempo e penetramos singular residência, em bairro
menos populoso, e deparamos com enternecedora paisagem doméstica.
Cavalheiro
na idade madura, deitado em pequeno divã, apresentando terríveis sinais de
tuberculose adiantada, sustentava comovente palestra, dirigindo-se a dois
pequeninos que aparentavam seis e oito anos, respectivamente. Formosa expressão
de luz aureolava a mente do enfermo, que pousava nas crianças o olhar muito
lúcido, falando-lhes paternalmente.
O próprio Jerônimo parou, a ouvi-lo,
junto de nós, agradavelmente surpreendido.
- Papai, mas o senhor acredita que
ninguém morre? - indagou o filhinho mais velho.
- Sim, Carlindo, ninguém
desaparece para sempre e é por isso que desejo aconselhá-los, como pai que
sou.
Fez-se-lhe mais terno o olhar e continuou, ante o interesse agudo dos
meninos:
- Creio que não me demorarei a partir...
- Para onde, papai? -
atalhou o menor.
- Para um mundo melhor que este, para lugar, meu filho, onde
seu pai possa ajudá-los num corpo são, embora diferente.
As crianças, de
olhos úmidos, protestaram, com carinho.
Esforçou-se o genitor, de modo
visível, para dominar-se e prosseguiu:
Não devem manifestar semelhantes receios. Já organizei todos os negócios e mamãe trabalhará, substituindo-me, até
que vocês cresçam e se façam homens. Se eu pudesse, ficaria em casa, mas, como
se arranjariam comigo, assim, imprestável como estou? por essa razão, Deus me
concederá outro corpo e eu estarei com vocês, sem que me vejam.
Sorriu,
conformado, e ajuntou:
- Possivelmente, seremos até mais felizes... Há muitos
dias pretendo falar-lhes, como agora, para que fiquem certos do meu amor
constante. Logo após meu afastamento, sei de antemão que muita gente procurará
desanimá-los. Dir-se-á que me afastei para nunca mais voltar, que a sepultura me
aniquilou; entretanto, previno a vocês que isso não é verdade. Viveremos sempre
e amar-nos-emos uns aos outros, cada vez mais...
Reparei que o genitor doente
sentia intenso desejo de afagar os rapazinhos, mas, controlado pela ameaça de
contaminá-los, impunha imobilidade às mãos sequiosas de contato afetivo.
Os
meninos enxugavam as lágrimas discretas e, depois de longa pausa, tornou o
enfermo, dirigindo-se ao filho mais velho:
- Digam-me, Carlindo, você
acredita que se pai venha a desaparecer? admite, porventura, que nosso amor e
nossa união em casa, que nosso carinho e entendimento sejam apenas cinza e
nada?
Dominou-se o pequeno, a fim de parecer valente, e respondeu:
- Eu
acredito, como o senhor, que a morte não existe.
- Quando eu partir -
acentuou o pai, amoroso -, se vocês demonstrarem coragem e confiança em Deus, o
papai estará mais corajoso e confiante e restaurará, em pouco tempo, as
energias...
Houve comovente interregno, que o Assistente Jerônimo não desejou
quebrar, tal a significação moral da cena cariciosa.
De olhos fixos nos
rapazinhos, o extremoso genitor passou a considerar:
- Vai para três anos,
instituímos nosso culto doméstico do Evangelho de Jesus. E vocês sabem hoje que
nosso Mestre não morreu. Levado aos suplícios e à morte, voltou do sepulcro para
orientar os amigos e continuadores. Ele, pois, nos auxiliará para que
prossigamos unidos. Quando eu fizer a viagem de renovação, tenham calma e
otimismo. Não chorem, nem desfaleçam. Com lágrimas não serão úteis à mamãe, que
precisará naturalmente de todos nós. Deus espera que sejamos alegres na luta de
cada dia para sermos filhos fiéis ao seu divino amor.
Nesse instante,
apareceu a dona da casa, impondo modificações à palestra.
Valeu-se Jerônimo
da circunstância para intervir, apresentando:
- Nosso amigo Fábio, em véspera
da libertação, sempre colaborou com dedicação nas obras do bem. Não é é médium
com tarefa, na acepção vulgar do termo. É, porém, homem equilibrado, amante da
meditação e da espiritualidade superior e, em razão disso, desde a juventude
tornou-se excelente ministrador de energias magnéticas, colaborando conosco em
relevantes serviços de assistência oculta. Vários mentores de nossa colônia têm
em alta conta seu concurso. Há muitos anos que se consagra ao estudo das
questões transcendentes da alma e formou-se na academia do esforço próprio, a
fim de ser-nos útil. Livre de sectarismo, infenso às paixões e amante do dever,
nosso irmão Fábio instituiu, desde os primeiros dias de matrimônio, o culto
doméstico da fé viva, preparando a esposa, os filhinhos e outros familiares no
esclarecimentos dos problemas essenciais da compreensão da vida eterna. Em
virtude da perseverança no bem que lhe caracterizou as atitudes, sua libertação
ser-lhe-á agradável e natural. Soube viver bem, para bem morrer.
Aproximei-me
do enfermo, perscrutando-lhe a situação orgânica.
A tuberculose minara-lhe os
pulmões, impressionando-me as formações cavitárias e outros sintomas clássicos
da terrível moléstia.
Fábio, a rigor, não precisava apoio para a fé que
nutria. Revelava-se tranqüilo e confiante, e, embora o abatimento, natural em
seu estado, ia ensinando, aos seus, inesquecíveis lições de coragem e de valor
moral.
- Vamo-nos! - chamou-nos o Assistente - nosso companheiro vai bem e
dispensa-nos de maior colaboração.
Saímos admirados com o exemplo
entrevisto.
Daí a instantes, Jerônimo conduzia-nos a confortável apartamento
em moderno arranha-céu de elegante bairro.
Entramos.
No leito, permanecia
respeitável senhora de idade avançada, com evidentes sinais de moléstia do
coração. Cercavam-na, atenciosas, duas senhoras ainda jovens, que a cumulavam de
discretos cuidados.
- É a nossa irmã Albina - explicou-nos o dirigente amigo
-, filiada a organizações superiores de nossa colônia espiritual. Tem inúmeros
admiradores em nossa esfera de ação, pelo muito que vem fazendo na esfera do
Evangelho. Permanece, presentemente, em serviço nos círculos evangélicos
protestantes. Fez profissão de fé na Igreja Presbiteriana e, viúva desde cedo,
consagrou-se ao labor educativo, formando a infância e a juventude no ideal
cristão.
Mais uma vez, maravilhou-me a grandeza da fraternidade legítima,
imperante na vida superior. Não se buscava o rótulo das criaturas, não se
cogitava, em sentido particularista, de seus títulos religiosos ou sociais.
Procurava-se o coração fiel a Deus, ministrava-se amparo reconfortador, sem
qualquer preocupação exclusivista.
O Assistente Jerônimo aproximou-se dela,
tocou-lhe a fronte com a destra, e Albina, de semblante iluminado e feliz ao
contato daquela mão bondosa e acariciante, exclamou para uma das companheiras
que a assistiam:
- Eunice, dá-me a Bíblia. Desejo meditar um pouco.
- Ó
mamãe! - respondeu-lhe a filha - não será melhor descansar? Graças a Jesus, a
dispnéia cedeu e a senhora parece tão bem disposta!
- A Palavra do Senhor dá
contentamento ao espírito, minha filha!
Suplicante ternura acompanhou-lhe a
expressão verbal, e de tal modo que Eunice, vencida, apanhou o volume de sobre a
vasta cômoda e entregou-lho.
A respeitável anciã assumiu adequada posição
para a leitura, recostou-se em travesseiros altos e, tomando os óculos, segurou,
firme, o Testamento Divino. O Assistente Jerônimo ajudou-a a abri-lo, em
determinado lugar, sem que a interessada lhe percebesse a cooperação.
Patenteou-se-lhe o capítulo onze da narrativa de João Evangelista, alusivo à
ressurreição de Lázaro.
A simpática velhinha leu-o, pausadamente, em voz
alta. Terminando, exclamou comovidamente:
- Agradeço ao nosso Divino Mestre a
alentadora leitura que nos mandou. Praza aos céus possamos todas nós encontrar a
vida eterna, em Cristo Jesus. Assim seja!
As filhas acompanhavam-na,
respeitosas.
Jerônimo recomendou-me aplicar à doente passes de reconforto.
Depois da operação magnética, observei-lhe a insuficiência cardíaca, oriunda
de aneurisma em condições ameaçadoras.
Dispunha-se o assistente a conversar
conosco, evidenciando as formosas qualidades da enferma, quando alguém de nosso
plano assomou à porta de entrada. Era dedicada amiga que vinha velar à
cabeceira. Cumprimentou-nos, bondosa, com encantadora simplicidade.
Jerônimo
explicou-lhe nossa missão. A interlocutora sorriu e considerou:
-
Reconforta-nos a proteção de que nossa irmã é objeto. No entanto, creio que há
forte pedido de prorrogação em favor dela. Todos somos de parecer que deva ser
chamada à nossa esfera com urgência, para receber o prêmio a que fez jus.
Todavia, há razões ponderosas para que seja amparada convenientemente, a fim de
que permaneça com a família consangüínea, na Crosta, por mais alguns meses.
-
Teremos prazer em todo serviço fraterno - acentuou Jerônimo, com afabilidade.
Passaremos por aqui, diariamente, até que a tarefa termine. Do que houver de
novo, seremos informados.
A simpática visitante de Albina agradeceu e
partimos.
Muito significativa para mim foi a ponderação ouvida, mas,
reparando que o Assistente seguia atento ao trabalho que nos cabia desenvolver,
abstive-me de qualquer interrogação.
Varávamos, em breve, larga porta de
movimentado hospital, defendido por grandes turmas de trabalhadores espirituais.
Havia aí tanta atividade por parte dos encarnados , como por parte dos
desencarnados. Seguindo, porém, as pegadas de nosso dirigente, não dispensávamos
maior atenção aos desconhecidos.
Após atravessarmos corredores e salas,
alcançamos grande enfermaria de amparo gratuito. A maioria dos leitos ocupados
mostrava o doente e as entidades espirituais que o rodeavam, umas em caráter de
assistência defensiva, outras em acirrada perseguição.
Desdobravam-se-nos as
mais diversas cenas.
Prevenindo, talvez mais a mim que aos demais
companheiros, o dirigente de nosso grupo recomendou:
- Não dispersem a
atenção.
Decorridos alguns segundos, estávamos à frente dum cavalheiro
maduro, rosto profusamente enrugado e cabelos brancos, a cuja cabeceira vigiava
excelente companheiro espiritual.
Apresentou-nos Jerônimo a este último.
Tratava-se do irmão Bonifácio, que ajudava o doente.
Em seguida, indicou-nos
o doente mergulhado em lençóis alvos e esclareceu:
- Aqui temos o nosso velho
Cavalcante. É virtuoso católico-romano, espírito abnegado e valoroso nos serviços
do bem ao próximo. Veio de nossa colônia a mais de sessenta anos, e possui
grande círculo de amigos pelos seus dotes morais. Sua existência, cheia de belos
sacrifícios, fala ao coração. Aqui se encontra, junto dos filhos da indigência,
abandonado da parentela, em virtude das idéias de renúncia às riquezas
materiais. Mas não se acha desamparado pela Divina Misericórdia.
Findo
ligeiro intervalo, adiantou-se Bonifácio, informando:
- A intervenção no
duodeno foi marcada para amanhã.
Nosso dirigente, deixando perceber que já
conhecia o caso, comunicou:
- Assisti-lo-emos no instante
oportuno.
Obedecendo-lhe as recomendações, fiz aplicações magnéticas,
detendo-me em particular sobre o aparelho digestivo, da glândula parótida ao
reto, observando, além da ulceração duodenal, a inflamação adiantada do
apêndice, quase a romper-se.
Notei, todavia, que Cavalcante era absolutamente
alheio à nossa influenciação. Nada percebia de nossa presença ali, verificando
que ele, apesar das elevadas qualidades morais que lhe exornavam o caráter, não
possuía bastante educação religiosa para o intercâmbio desejável.
Dos quadros
que havíamos observado naquele dia, esse era, sem dúvida, o mais triste. Além
das vibrações do ambiente perturbado, o operando não oferecia fácil ensejo à
nossa atuação.
- Tenho tido dificuldade para mantê-lo tranqüilo - dizia
Bonifácio, inclinando-se para o Assistente - em vista dos parentes desencarnados
que o assediam de modo incessante. Não obstante os trabalhos de vigilância que
garantem o estabelecimento, muitos deles conseguem acesso e incomodam-no. O
pobrezinho não se preparou, convenientemente, para libertar-se do jugo da carne
e sofre muito pelos exageros da sensibilidade. E muito embora o abandono a que
foi votado, tem o pensamento afetuoso em excessiva ligação com aqueles que ama.
Semelhante situação dificulta-nos sobremaneira os esforços.
- Sim - concordou
Jerônimo -, entendemos a luta. A deficiência de educação da fé, ainda mesmo nos
caracteres mais admiráveis, origina deploráveis desequilíbrios da alma, em
circunstâncias como esta. Conservar-nos-emos, porém, a postos, como retribuição
ao devotado amigo pelos obséquios inúmeros que dele recebemos.
Quando nos
despedimos, Bonifácio mostrou-se comovido e grato.
Transcorridos escassos
minutos, ganhávamos o pórtico de notável, simples e confortável edifício, em que
se asilavam numerosas criancinhas, em nome de Jesus. Tratava-se de louvável
instituição espiritista-cristã, onde se sediava compacta legião de trabalhadores
de nosso plano.
Bondoso ancião recebeu-nos afavelmente. Reconheci-o,
jubiloso. Achava-se, ali, Bezerra de Menezes, o dedicado irmão dos que
sofrem.
Abraçou-nos, um a um, com espontânea jovialidade.
Ouviu as
explicações de Jerônimo, com interesse, e falou, sorridente:
- Já esperávamos
a comissão. Felizmente, porém, nossa querida Adelaide não dará trabalho. O
ministério mediúnico, o serviço incessante em benefício dos enfermos, o amparo
materno aos órfãos nesta casa de paz, aliados aos profundos desgostos e duras
pedradas que constituem abençoado ônus das missões do bem, prepararam-lhe a alma
para esta hora...
Ele mesmo tomou-nos a dianteira, conduzindo-nos a
compartimento modesto, onde a médium repousava.
Na câmara solitária, não se
via nenhum irmão encarnado; contudo, duas jovens cercadas de prateada luz
permaneciam ali, acariciando-a.
Acercamo-nos da enferma, respeitosamente.
Seus cabelos grisalhos semelhavam-se a formosos fios de neve. Indicando-a, falou
Bezerra, contente:
- Adelaide sempre foi leal discípula do Mestre dos
Mestres. Apesar das dificuldades, dos espinhos e aflições, perseverou até o
fim.
A digna senhora, após olhar demoradamente delicados ramos de rosa que
lhe ornavam o quarto, entrou em oração. De sua mente equilibrada, emanavam raios
brilhantes. Não nos enxergou ao seu lado, exceção do devotado Bezerra de
Menezes, a quem se unia por sublimes cadeias do coração. Ele saudou-a, afável e
bondoso, endereçando-lhe palavras reconfortantes e carinhosas.
- Sei que é o
termo da jornada, meu venerável amigo - disse a médium, em tom comovedor -, e
estou pronta. - Desde muitos anos rogo ao Divino Senhor me revele o caminho. Não
desejo adotar outros desígnios que não pertençam a Ele, nosso Salvador.
Todavia...
Não pode continuar. Emoção profunda estrangulara-lhe a voz e, logo
após a retic6encia dolorida, copioso pranto começou a brotar-lhe dos olhos
encovados.
Bezerra acomodou-se junto dela, com intimidade paternal,
afagou-lhe com a luminosa destra a fronte abatida e falou otimista:
Já sei.
Você pensa nos parentes, nos amigos, nos orfãozinhos e nos trabalhos que
ficarão. Ó Adelaide! compreendo seu devotamento materno à obra de amor que lhe
consumiu a vida. Entretanto, você está cansada, muito cansada e Jesus, Médico
Divino de nossa alma, autorizou o seu repouso. Confie a Ele a penas que lhe
oprimem o espírito afetuoso. Deponha o precioso fardo de suas responsabilidades
em outras mãos, esvazie o cálice de sua alma, alijando amarguras e preocupações.
Converta saudades em esperanças e desate os elos mais fortes, atendendo a ordem
divina.
Adelaide pousou no Benfeitor os olhos muito lúcidos, revelando-se
confortada e, após breve pausa, Bezerra prosseguiu:
- Sua grande batalha está
terminando. Você é feliz, minha amiga, muito feliz, porque seu Espírito virá
condecorado de cicatrizes, depois de resistir ao mal durante muitos anos, como
sentinela fiel, na fortaleza da fé viva... Ensinou aos que lhe cercaram o
caminho todas as lições do bem e da verdade possíveis ao seu esforço... Entregue
parentes e afeições a Jesus e medite, agora, na Humanidade, nossa abençoada e
grande família. Quanto aos serviços confiados por algum tempo à sua guarda,
estão fundamentalmente afetos ao Cristo, que providenciará as modificações que
julgue oportunas e necessárias. Baste a voc6e o júbilo do dever bem cumprido.
Arregimente, pois, as suas forças e não se entristeça, porque é chegado para seu
coração o prélio final... Coragem, muita coragem e fé!
A respeitável irmã
sorriu, quase feliz.
Logo em seguida, pequena auxiliar do instituto quebrou o
colóquio espiritual, abrindo a porta inesperadamente e anunciando
visitas.
Dona Adelaide, em face das circunstâncias, centralizou a mente no
círculo dos encarnados e perdeu o Benfeitor de vista.
O venerando médico dos
infortunados passou a entender-se com Jerônimo, acerca de vários problemas que
diziam respeito à nossa missão, enquanto nos retirávamos, discretamente,
proporcionando-lhes maior liberdade à permuta de idéias.
EPÍLOGO - Após o desencarne
dos obreiros, e findo o espetacular embate entre as trevas e a Casa Transitória,
prepara-se a expedição, da qual faz parte André Luiz, para retornar a "Nosso
Lar".
Adelaide é convidada por Zenóbia, para proferir a prece final, de
agradecimento. Após, ela e demais trabalhadores da Casa de Fabiano entoam
misterioso e belo hino, saudando os novos amigos através de agradecimento à
maternal generosidade da Terra.
Então a equipe socorrista, dando as mãos aos
recém-libertos, para imprimir-lhes maior energia para a subida prodigiosa,
retornam, felizes e jubilosos, às zonas mais elevadas da
espiritualidade.