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Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso

 

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A QUESTÃO DA CHECHÊNIA

 

Introdução

"Covardia e fraqueza nunca salvaram ninguém" - Iman Shamil (1797-1859)

Situada em uma região montanhosa, entre o mar Cáspio e o mar Negro, a Chechênia é habitada por diversos grupos étnicos de maioria muçulmana. Os chechenos são um povo nativo do norte do Cáucaso e eles falam uma língua que não é eslava, turca ou persa, e que se aproxima da lingua falada na vizinha Ingushetia. Aparentemente os chechenos vivem no norte do Cáucaso há milhares de anos. No decorrer do tempo, eles foram invadidos pelos iranianos, pelos mongóis e pelos russos.

Dotada de poucos recursos naturais, a região tornou-se importante para o ocidente  e para a Federação Russa, principalmente por causa das ricas reservas de petróleo existentes no mar Cáspio e na Ásia Central, estimadas em mais de 25 bilhões de barris. O controle dessas reservas de energia e das rotas de exportação tornou-se em uma das questões centrais da política do pós-guerra. O país dispõe de uma importante malha ferroviária e de inúmeros oleodutos que transportam o petróleo caucasiano. Dois oleodutos são objeto de especial atenção. O primeiro é o que permite escoar o petróleo do mar Cáspio, no Azerbaijão, para a costa do mar Negro. O segundo é o que transporta o petróleo do riquíssimo campo de Tingiz, explorado pela corporação americana Chevron, no Cazaquistão, para a Europa e Mediterrâneo.

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Refinarias em volta de Grosny

O Islam chegou à região através de missionários muçulmanos, que foram introduzindo a religião aos poucos e, por volta do século XVIII, apenas a Geórgia e a Armênia não tinham aceitado a fé islâmica. As tribos chechenas se converteram ao ramo sunita da religião muçulmana, com ênfase no misticismo sufi, que combina asceticismo, busca da união com Deus, submissão do discípulo (murid) ao líder do grupo e à glorificação do ghazavat (jihad), como defesa contra a dominação estrangeira.

Com o fim da União Soviética, em 1991, reacenderam-se as aspirações do povo checheno pela independência. Em dezembro de 1994, tanques russos entraram em Grozny, capital da Chechênia, para reprimir uma rebelião e a expectativa de uma vitória fácil rapidamente se dissipou diante da firme determinação chechena. No centro da resistência chechena, encontram-se invariavelmente as fraternidades islâmicas místicas politicamente ativas no Cáucaso. Daí que, para entender-se as raízes do conflito, é preciso conhecer os aspectos religiosos que envolvem a questão.

Antecedentes

Os primeiros contatos entre russos e chechenos datam do século XVI. Até então, eles eram esporádicos e não deixaram marcas evidentes na história da região.  A primeira grande invasão teve início com  Ivan, o Terrível, quando Kazan, a grande cidade muçulmana da parte alta do Volga, foi ocupada e destruída. Depois seguiu-se a ocupação do Daguestão pelo imperador Pedro, o Grande. Ao final do século XVIII, a imperatriz russa, Catarina, a Grande, continuou com a política imperial de implantar o sonho pan-ortodoxo, pelo qual todas as terras muçulmanas deveriam ser submetidas aos ortodoxos.

A primeira resistência organizada contra os russos foi chefiada por um checheno, de nome Ushurma, que ficou conhecido na história caucasiana como Shaykh Mansur. Ele estudou a lei islâmica no Daguestão, voltou para a Chechênia e declarou jihad contra os russos. Unificou praticamente todo o norte do Cáucaso, desde o território dos chechenos, a oeste, até às estepes de Kumik, a leste. Shaykh Mansur foi capturado pelos russos e morreu na prisão. Ele se tornou um lenda e é considerado um herói pelos chechenos.

Shaykh Mansur chefiou um ramo da seita sufi Naqshbandi, a organização islâmica mística que surgiu no século XIV, na Ásia Central. O sufismo espalhou-se rapidamente entre muçulmanos e não muçulmanos do Cáucaso e da Ásia Central, em parte por causa das atividades missionárias de estudiosos e místicos sufis itinerantes. Estes shaykhs populares ("amigos de Deus") muitas vezes alcançavam grande reputação  e quando morriam, seus túmulos quase sempre se transformavam em santuários (mazars) e locais de peregrinação. Recentemente, nos anos 70, as autoridades soviéticas atestaram a atração permanente desses santuários, listando mais de 70 mazars em funcionamento no Daguestão e mais de 30 na Chechênia. O sufismo ajudou a atrair convertidos para o Islam nas camadas populares e foi uma fonte poderosa de orientação espiritual e identidade social.

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Aldeia de Khimoi. Mesquita islâmica – séc. XVIII

Depois da morte de Shaykh Mansur,  a resistência caucasiana continuou sob a liderança de Ghazi Mullah, um sábio muçulmano do Daguestão, que tinha sido aluno de Mullah Mohammad Yaraghi, um estudioso sufi, profundo conhecedor dos textos árabes e que pregava o Caminho Naqshbandi para os montanheses. Ghazi Mullah foi o responsável pela introdução da shari'ah (lei islâmica) entre os diversos grupos étnicos. Diante do crescimento do exército russo, Ghazi Mullah, seus discípulos e simpatizantes retiraram-se para Ghimri, onde, cercado pelos russos, foram mortos.

Um dos dois discípulos que conseguiu escapar ao  massacre de Ghimri foi Imam Shamil, o líder da famosa resistência caucasiana contra os russos, que durou 30 anos. De 1829 a 1859, Imam Shamil e seus seguidores promoveram uma campanha de resistência em grande escala contra os russos no Cáucaso, e com exceção da Geórgia, de orientação ortodoxa, todos os outros grupos se uniram em torno de sua bandeira. Em 1858, os ingush, vizinhos da Chechênia, foram expulsos de suas aldeias pelos russos e pediram ajuda a Imam Shamil, que desceu das montanhas em seu socorro. Shamil foi derrotado e voltou para as montanhas onde os russos o cercaram. Mais tarde ele foi banido para uma pequena cidade perto de Moscou e, com a permissão do czar, partiu para Meca e Medina, onde morreu.

A resistência caucasiana continuou sob a liderança de Kunta Haji, que morreu na prisão, depois com o Sheikh Deni-Arsonov, um checheno, e por Imam Najmudin e Sheikh Uzun Haji, que conseguiram derrotar o exército soviético em 1919. Uzun Haji proclamou o Emirado Caucasiano do Norte, que incluía a Chechênia e o Daguestão. A resistência continuou sob orientação islâmica e com a liderança de Mohammed Balakhany, que conseguiu derrotar toda a brigada do exército vermelho. Quando Imam Najmudin foi preso, em 1925, o movimento de resistência esfriou por algum tempo.  

No início dos anos 40, ocorreram duas revoltas na Chechênia. A primeira foi liderada por Hasan Israilov, um ex-jornalista, e a segunda por Mairbek Sharipov, um antigo membro do Partido Comunista. Toda a população chechena-ingush foi deportada para a Sibéria, sob a acusação de colaboracionista com a Alemanha nazista. No entanto, registros históricos mostram que os alemães jamais alcançaram a Chechênia. A deportação em massa incluía, além dos chechenos, todos os grupos étnicos muçulmanos que tinham enfrentado os russos,  czaristas ou soviéticos. Em 1957, eles foram reabilitados pelo primeiro ministro soviético, Kruschev, mas os membros da oposição soviética foram julgados.

De um modo geral, os shaykhs dirigiam uma organização pequena e exclusiva de discípulos (murids), unidos por juramentos de obediência absoluta. Os discípulos mais velhos tinham a permissão de iniciar novos devotos na fraternidade e esses eram muitas vezes enviados para divulgar a ordem nos vilarejos das montanhas. Frequentemente, murids carismáticos  formavam suas próprias organizações dentro de uma ordem. Segundo um conhecido sociólogo soviético, V.G.Pivarov, "Mais da metade dos fiéis muçulmanos da República Autônoma Chechena/Ingush são membros da fraternidade murid, uma ordem sufi."

De se ressaltar que a resistência ao governo russo/soviético nunca parou completamente, mesmo durante a deportação de quase toda a nação chechena. Os líderes do movimento operavam desde a Sibéria e das    montanhas do Cáucaso para minar o governo soviético e a resistência deu origem a figuras como Dzohar Dadayev, Aslan Mas'adov, e Salam Bassayev, que conquistou a independência chechena em 1996. Desde o século passado, a resistência contra a presença russo/soviética no norte do Cáucaso, inclusive na Chechênia, vem sendo qualificada como "terrorismo" e seus membros são chamados de "extremistas fanáticos".

Conclusão

O conflito checheno-russo está profundamente enraizado na história do povo checheno. Durante alguns períodos, o movimento de resistência se enfraqueceu devido às derrotas militares, às deportações em massa, ao genocídio e, em alguns casos, à colaboração de uma parte da população, por causa da violenta repressão, como no caso do conflito de 1999, quando algumas aldeias e vilarejos pediram que as tropas chechenas se retirassem da região para não serem bombardeadas pelos russos. Mas, apesar de tudo, a resistência nunca deixou de existir.  O Islam permaneceu uma força entre os chechenos. Em 1991, foi fundada a Universidade Islâmica, e em 1994, 4.000 chechenos fizeram a peregrinação (hajj) a Meca.

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Universidade Federal Chechena antes e depois da guerra

O fator histórico-religioso é fundamental para se entender o conflito, do ponto de vista checheno. Na virada do século XX, havia 800 mesquitas e centenas de escolas islâmicas. Durante o período soviético, a liberdade religiosa foi suprimida mas não impediu que a religião sobrevivesse, principalmente por causa da antiga estrutura tribal. Historicamente, a vida chechena se desenvolveu em torno de estruturas tribais, uma das mais importantes instituições a persistir desde os tempos antigos. Cada clã consiste de muitas aldeias com um ancestral comum. Cada aldeia pode ter de 10 a 50 famílias. Os chechenos são ensinados desde cedo a conhecer, pelos nomes, os ascendentes de até 12 ou mais gerações anteriores. Os clãs formam unidades fortes que, até hoje, defendem o lar, a terra e a família ampliada. Atualmente, a Chechênia tem um mufti e um conselho de líderes espirituais e o sistema jurídico é baseado na shari'ah, a lei islâmica.

Um outro ponto que deve ser mencionado   é o efeito da deportação de 1944 sobre a nova geração de chechenos. Muitos dos líderes da resistência chechena  nasceram na Diáspora. O conhecido cientista político checheno, Abdurahman Avtorkhnov, disse numa entrevista que "a luta de independência chechena foi uma revolta dos filhos para vingarem a morte de seus pais e mães durante a deportação e exílio." Segundo registros, entre 35% e 50% da população chechena morreu durante o processo de deportação. Não obstante isso, em 1999, Boris Yeltsin, líder e engenheiro do novo genocídio checheno recebeu a medalha de "Cavaleiro Ortodoxo" do Papa da Igreja Ortodoxa, Diodors I.

A título de curiosidade, o lobo é o símbolo da república chechena. Para os chechenos, ele é o único animal na natureza que ousa atacar um animal mais forte do que ele. A falta de força é compensada por extrema ousadia, coragem e agilidade. Se ele perder a luta, morre silenciosamente, sem expressão de dor ou medo. Morre orgulhosamente, de frente para seu inimigo.

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FONTES

Damrel, David,da Universidade do Arizona, Departamento de Estudos Religiosos
Leitzinger, Antero, historiador e pesquisador do Finnish Bureau of Immigration
Bennigsen, Alexandre, and Enders Wimbush. Mystics and Commissars: Sufism in the Soviet Union. Londres, C. Hurst & Co., 1985.

 

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