"Não existe arte onde não houver enigma." (Salvador Dalí)

 

Você começa muito bem. Somente não me causa maior espanto a
qualidade do seu livro de estréia, porque você mesma faz referência a ter
vindo de uma formação na qual a cultura sempre foi valorizada.

 

Embora sucintos, os comentários de Astrid Cabral e Regina são muito
apropriados ao que senti e percebi em sua Obra. Aliás, você mesma se revela
boa na autocrítica, bastante consciente do que faz e dos seus objetivos, o
que novamente surpreende numa poeta estreante.

Houve muitos aspectos que me chamaram a atenção durante a leitura de seus
poemas. Em primeiro lugar, embora em um deles você, de certo modo ironize O
Belo, na verdade é nítida a sua preocupação com a estética, com a beleza do
poema. Há em seu trabalho uma certa herança da linha estética espanhola,
onde podemos citar Goya, o próprio Velásquez, determinados momentos da
pintura de Dalí, sem dúvida Picasso, Miró; os filmes de Buñuel, Carlos Saura
e Almodóvar; bem como, o tom muitas vezes dramático e sombrio de certas
passagens da poesia dos irmãos Machado e de Lorca. Tal impressão me foi
reforçada quando você se autodefiniu como uma apreciadora do estranho e do
bizarro. Apenas que o bizarro nas suas mãos, assim como nas dos artistas
citados, nunca se confunde com o meramente vulgar, com o grotesco, com o
escatológico. O que ocorre na verdade é que, tal como muitos artistas
espanhóis, você consegue ver a beleza da sombra.

E isso porque a sombra não é a completa escuridão. Sua poesia trabalha na
penumbra, sob a luz da tela de cinema, na neblina de gás néon, sob a lâmpada
de uma rua mal iluminada. Com isso você cria um cenário em parte real, em
parte virtual. Você trabalha o tempo todo com colagens extraídas da paisagem
e da intimidade urbana. Uma das apresentadoras de seu livro comentou que era
como se você andasse com uma câmera fotografando tudo. Eu acrescentaria: e
recortando, produzindo novo arranjo e remontando cada fotograma, numa
película de conteúdo cubista.

Portanto, não se trata de simples enumeração de elementos ou de uma colagem
aleatória. Sim, de novo arranjo. Ou seja, não há desprezo pelo sentido, o
que faz com que dentro da aparente obscuridade resida a clareza. É o canto
da luz por meio da exaltação da sombra.

Por fim, outro aspecto muito interessante é a inserção do "eu" poético dentro
desse conjunto aparentemente "bizarro" de elementos. Num primeiro momento, é
como se o "eu" nada mais fosse do que um elemento a mais, também inserido
dentro da composição. Ao contrário da poesia predominante nas últimas
décadas, onde o eu se destaca como centro em torno do qual o universo gira, o
"eu", em sua poesia, parece fazer parte de um plano único, girando em torno
de um centro imaginário. Contudo, antes que sejamos tomados por qualquer
vertigem, o "eu" emerge desse cenário, recita um verso sentencioso, e
novamente se recolhe. Porém, nesse brevíssimo fulgor, ele impõe a marca de
seu sentido, ainda que para expressar pura perplexidade.

Por todas essas características, aqui pinceladas um tanto rapidamente, pois
haveria mais a dizer, sua poesia me deixou a sensação de grande beleza e
singularidade.

 

Ricardo Alfaya, escritor

Rio de Janeiro, 13-08-2000