Prólogo
Eu nunca olhei para o passado.
Ou melhor, eu nunca olhei para o meu próprio passado. É até irônico
que eu, a Guardiã do Tempo, me recuse a olhar para os meus próprios erros e
aprender com eles. Eu nunca precisei olhar para meu próprio passado, porque eu
nunca cometi erros.
Oh, as pessoas discordariam, caso eu comentasse isso com alguém. Afinal,
ninguém é perfeito.
É nesse ponto que eles estão enganados. Todas as pessoas são perfeitas.
São previsíveis, e agem perfeitamente de acordo com como deviam agir. Como a
Guardiã do Tempo, eu apenas sabia ver que meus "erros" não eram
exatamente erros. Eles simplesmente eram fatos. Eu pensava que não existia
errado. Afinal, se tudo tem um curso formado, como pode existir um erro? Como um
trem pode ir para o lugar errado, estando firmemente preso aos trilhos?
Antes, eu não conhecia essas aberrações que enfrentamos.
Surgidos de um passado negro, de uma imagem distorcida da hora mais
terrível da história selenita, esses youmas me surpreenderam pela primeira vez
em anos. Eles causaram caos onde não devia existir, causaram dor onde devia
existir alívio.
Exatamente como Ryu me falou alguns dias atrás, a grande batalha da vida
deles já devia ter passado. Era para ser um momento de paz, que levaria à
criação de Crystal Tokyo, a primeira e única utopia da história. Seria mais
pura que as cidades prateadas da Lua, seria governada com mais justiça que os
reinos terrestres de tanto tempo atrás.
Seria o prêmio que os humanos ganhariam por sobreviver por tanto tempo.
Então, essas aberrações apareceram.
E a visão de Crystal Tokyo, antes tão clara, agora é um futuro
longínquo, uma vã esperança da humanidade.
E a cada momento que passa, o sonho de uma cidade feita de cristais se
torna mais e mais desbotado.
Tudo porque Dark Angel decidiu invadir a minha... a NOSSA linha temporal.
Agora, depois de ver como as outras Senshi... minhas amigas... viam minhas
ações, eu me pergunto como pude me tornar algo como aquilo? Como pude ignorar
as emoções de todos, manipulá-los como se fossem meras peças num jogo
infinitamente complexo, cuja única jogadora era eu.
Eu senti uma mão tocar meu peito, e meu poder desaparece, como água
sendo drenada.
Um grito involuntário escapou da minha garganta, uma ação gerada por
puro reflexo. Ou talvez gerada pela agonia de não ser mais uma Senshi. Perder
uma parte de minha alma que possuí por mais de vinte mil anos.
O youma correu até o portal.
Mamoru-san tentou impedi-lo, mas era inútil.
O Ginzuishou brilhou. Tudo estava acontecendo rápido demais, e eu não
estava acostumada com acontecimentos rápidos.
Então, o portal negro se abriu. Imediatamente, um encantamento, algo mais
proibido que aquele que pararia o tempo, surgiu na minha mente. O plano seria
simples. Isolar essa área do plano de existência, tornando impossível a
entrada de seres de outras linhas temporais em qualquer outro ponto.
A dúvida dura apenas alguns instantes. Então, eu ouço Satori Ryu
xingar. A minha decisão se fortalece, pois eu sei que ele, Usagi e Mamoru não
poderiam
morrer. Eles eram a chave para a criação de Crystal Tokyo.
- Avisem os outros! - eu grito. - Saiam daqui!
Ryu, então, fez o que nenhum dos outros guerreiros, nem mesmo eu, teriam
coragem de fazer. Quando Serenity-sama começou a protestar, ele acertou seu
punho no estômago dela. Mamoru-san pegou-a em seguida, e carregou-a para longe.
Então, novamente, Ryu me surpreendeu. Ele se preparou para sair correndo
atrás de Tuxedo Kamen, mas hesitou. Ele olhou para mim, e eu pude ver a
preocupação genuína em seus olhos avermelhados. Uma leve risada escapou-me,
soando como um suspiro. Eu já estava fraca demais.
- Eu vou usar um encantamento. - informei-o, consciente que precisava
tirá-lo do alcance imediato dos youmas. - Ele vai criar uma esfera de mil e cem
quilômetros de raio... Vai impedir que qualquer coisa que não tenha vindo
dessa dimensão passe por ela... - minha voz me falhou, e eu pude sentir o
sangue que estava se acumulando nos meus pulmões subir pela minha garganta. Um
sorriso acalmou Ryu, que pareceu pronto para levar-me com ele. Eu precisava dar
uma razão para tirá-lo daqui. - Vai com Usagi-chan. Proteja ela.
A dúvida continuou nos olhos dele, e, pela primeira vez, percebi como ele
tinha uma alma essencialmente boa. Apesar de ter levado duas vidas difíceis,
ele ainda mantinha o bem dentro de si.
- Essa esfera... - ele começou, e eu já sabia o que ele pretendia dizer.
Então, decidi que não adiantaria mentir ou tentar manipulá-lo.
- Não pode ser menor. - informei-o, deixando minha tristeza evidente.
Nossos olhos mantiveram contato por alguns instantes, e eu gritei. - VAI!
Ele hesitou novamente, mas finalmente virou as costas e correu, rumando em
direção à baía de Tóquio. Eu sorri fracamente. Tudo terminaria logo.
Os youmas mantinham seus olhos fixos em mim, seus pensamentos, sem
dúvida, mais negros que a própria noite. Eu fechei os olhos por um momento, e
respirei fundo, erguendo-me completamente, e me mantendo ereta. Eu iria morrer
com orgulho, de um jeito digno a uma Senshi. Um jeito digno da mais velha das
Senshi, e digno da Guardiã do Tempo.
Então, comecei a recitar o mais velho de todos os encantamentos, criado
na mais velha de todas as línguas. Os sons eram estranhos, quase como uma
música. Era a primeira vez que eu recitava esse verso em particular, e me
deixei maravilhar pela sua beleza, mesmo que apenas por alguns instantes.
A energia chegou ao seu limite, e senti meu corpo carregando todo o poder
que poderia acumular. Então, a frase que terminaria o encantamento, a única
frase que uma pessoa poderia entender, escapou de meus lábios. Ela não era um
grito, nem um sussurro. Ela apenas era.
- Dead Zone.
E toda minha energia, toda minha vida começou a escoar de mim,
formando-se numa barreira ao redor do Japão. Minha garganta secou, e meu
estômago se contraiu. Eu não estava pronta para morrer. Eu devia ser a última
criatura do universo a morrer, mas estava morrendo naquele instante.
Estranhamente, meu medo não diminuía minha determinação de terminar minha
tarefa. Meus amigos, minha princesa, eles precisavam de mim. Precisavam que eu
ganhasse tempo para eles.
Meus joelhos cederam sob mim, e eu cai no chão, mal tendo forças nos
braços para impedir que meu rosto caísse na grama. Então, um sorriso se
formou nos meus lábios, no meu último segundo de vida. E eu falei para os
youmas:
- Vocês não vão ter esse mundo.
E o mundo apagou-se como uma vela no vácuo.
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