Silence alias 'King Lear'

por Marlos Salustiano

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Eis aqui mais uma obra perfeita, mais uma obra capaz de atualizar minha admiração por Godard. Trata-se de uma sátira à vacuidade atópica com que uns tipinhos sub-zen-transcendentalistas se rendem reverencialmente à indiferença (ou desespero imaturo) dos autores que se notabilizaram por sua militância anti-autoral e pró-acaso. Shakespeare e seu King Lear funcionaram apenas como pretexto para que fossem reunidas as ferramentas necessárias à desconstrução desse atopismo que em seguida conceituarei com mais minúcia.

Do Atopismo

Célebres e incensados e todavia incomodados diante da inevitável autoralidade, estes criadores (Cage, Artaud, só pra citar os mais notórios) foram capazes de cometer uma dupla ingenuidade. Por um lado fetichizavam radicalmente a PRESENÇA e o PRESENTE, que para eles era a única condição de valoração do que quer que fosse (não diferenciando portanto o "natural" do cultural) e, por outro, pregavam uma retirada do eu, uma passividade diante do mundo, almejando um estar-aí que fosse um estar-ausente. Na medida em que esse estar-aí radicalmente contemplativo se contrapõe à fetichização da técnica, torna-se um instrumento poderoso de criação via não-ação. Mas quando nega radicalmente a necessidade de um envolvimento conseqüente com a linguagem, comete a ingenuidade de não perceber que é impossível não intervir, semioticamente falando, com o mundo. Em King Lear, Godard nos apresenta imagens alegóricas que desconstroem a pseudo-indiferenciação pueril desse atopismo, mostrando que ele na verdade não passa de uma foraclusão-de-linguagem.

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A "trama"

Um diretor foi convidado a reinterpretar King Lear (o "literalmente" diretor teatral Peter Sellars). Num restaurante, enquanto toma notas e tenta reunir idéias para sua montagem, observa atentamente a relação tensa entre uma bela jovem (Molly Ringwald/Cordélia) e um ancião (Burgess Meredith/Rei Lear). Este é apenas o ponto de partida da perquirição que o levará a vagar em uma floresta, acompanhado por espíritos brincalhões (representados muito apropriadamente por jovens politicamente "entusiasmados" e "criativos"), perambulação que culminará no seu encontro com o Feiticeiro (o próprio JLG, hilário, usando dreadlocks feitos de cabos e plugs rca). Emblemático e extremamente divertido é o diálogo entre os dois, sobretudo quando Peter Sellars, num desespero apalermado, sacode JLG e implora: "But what about the meaning????". Nesse desdém irônico está caracterizado com toda clareza o mais forte e o mais lúcido dos conteúdos de Godard: aquele que afirma a auto-suficiência da imagem, considerada não como tijolo de um edifício narrativo, mas radicalmente como Presença do Real em estado semiótico, clamando por um fruir despojado, primevo, uma recherche du regard perdu. Nesse modo de afirmar o estatuto da imagem, Godard ultrapassa toda contradição estéril que possa ser formulada entre o Mundo, a Cultura e seus respectivos derivados teóricos (naturalismos, culturalismos). É a partir desse encontro que Peter Sellars passará a ler o silêncio de Cordélia de outra forma, e desconstruirá via Cage (diversas citações extraídas de Silence), as ingenuidades do próprio Cage. Tudo traduzido em belíssimas imagens alegóricas. A cena em que um livro está no limite que separa areia e ondas, que se aproximam dele de forma suave e ameaçadora; a cena em que Peter Sellars toma notas em seu caderno estando sentado sobre as pedras da arrebentação, sendo atingido em cheio pelas ondas; a apropriada aglutinação de estrutura real e estrutura ficcional no simples fato de caracterizar o fracassado Rei Lear através do subaproveitado e esquecido ator Burgess Meredith; tudo isso perfaz a assinatura magistral deste diretor cuja maior obsessão é a de modificar nossa relação com as imagens e consequentemente com a vida. É nas trocas, justaposições/aglutinações de estruturas reais (efetivas) e ficcionais (virtuais) que Godard tece a sua crítica aos atopismos que acreditam estar salvando o mundo quando se furtam à produção de simulacros.

O fim depois do fim?

Para fechar todas as reflexões alegorizadas acerca dos limites que aparentemente separam natureza e cultura, Godard convoca Woody Allen à mesa de montagem. O assunto é apropriado: limites. Numa brilhante coda, Woody reflete sobre os recortes arbitrários que, definindo margens auto-impostas, tornam a linguagem da produção uma língua decupável, com construtos nítidos/legíveis. Somente dessa maneira é que se tornará possível depurar, para além da pura fantasia especulativa do fruidor e para além da autópsia crítica, o valor da fantasia narrativa.

Não há fim depois de NO THING.