O Tempo Redescoberto
(Le Temps Retrouvé),
de Raoul Ruiz (França, 1999)

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Notas sobre O tempo redescoberto

1. A maior virtude de O Tempo Redescoberto, último filme do chileno Raoul Ruiz, reside na proposta de exclusão do próprio Proust de todo o contexto, na seguinte medida: Proust, sua vida e obra, são peças de um xadrez cujas jogadas não são arbitrárias, não obstante, recriadoras. Isto é, manipulando os fluxos e signos da Recherche, Ruiz utiliza Proust para recriar o universo em película. O contrário, presumo, seria, senão impossível, improvável: adaptar o livro para a tela. Vale a ressalva: não carecemos de uma leitura prévia para penetrar no filme.

2. Portanto, Proust nas mãos de Ruiz: neste tabuleiro-universo, o tempo perdido, a vaidade, o tédio e a redenção pela literatura, são signos proferidos por Proust-Ruiz (ou melhor, Proust-objeto), uma entidade à parte. Há um jantar com os Verdurin, onde Proust-objeto exprime o tédio sob uma sobreposição desordenada (ou por demais ordenada?) de sons e imagens.

3. No entanto, Proust-objeto espia. Ruiz movimenta a peça chave através dos monólogos bestiais de Charlus e Robert de Saint-Loup ("A carne está ótima!"); das aventuras masoquistas de Charlus; revelando as conexões totais com o "mundo": Odette, Barão de Guermantes, Morel. Ruiz expõe a articulada movimentação de Proust pela requintada burguesia francesa, diga-se de passagem, matéria prima da Recherche. Proust espia e seu desespero chic é fecundado pela literatura. O melhor é que Ruiz nos mostra isso. Ele passa acima de Proust para mostrá-lo no tempo, como obsérvateur. Ruiz, pois, desloca Em busca do tempo perdido e a biografia de Marcel Proust no tempo, misturando-os. É um tempo fora da literatura, um tempo cinematográfico concebido por Raoul Ruiz.

4. Mas a literatura aparece como eixo deste Proust, perdido entre a futilidade e a eternidade. Ruiz faz passar por nossos olhos a redenção pela palavra, ou pelo menos, uma representação imagética do valor da palavra em toda a estória.

Albertine
Gilberte
Libertinage

No início do filme, um estranho escrito: FIM, que transforma nossa percepção do tempo e, a reboque, os objetos e o espaço. Um fim à Recherche... como um basta à vida (Proust moribundo).

5. Quem acompanha de perto a obra de Ruiz sabe que seus filmes valorizam os objetos, não como recurso estético ou simples detalhe, mas como dado semântico. Um tabuleiro em Genealogias de um crime, um maço de cigarro em Três vidas e uma só morte, quadros em A hipótese do quadro roubado e, em termos menos estreitos, fotos em Colóquio dos cães. Neste tempo redescoberto, os móveis se movimentam num delírio que não é um delírio de Marcel Proust, mas um movimento da percepção de Ruiz. Os objetos no tempo são coadjuvantes: um abajur empresta um colorido à relação conflituosa de Morel e Saint-Loup; uma estátua posterior a uma pedra é a metáfora das reflexões profundas de Marcel, frente às banalidades de uma amiga e, sobretudo, as cartas que povoam as relações ambíguas deste tempo.

6. As determinações dos objetos também promovem uma distinção/junção temporal ao nível da arte. Sobrepondo o barroco e o surrealismo, sugere uma relação de troca onde não identificamos um surrealismo bem determinado, na medida em que este toma emprestado do outro a eloqüência: os delírios, os seres mentais (homens de mármore) e a repetição da descida de Gilberte. Para não citar a permuta dos três Marcel: o enfant gaté, o balzaquiano atormentado e reflexivo e o velho entranhado nas profundezas da memória e do vácuo.

7. As metamorfoses dos personagens que interagem e reagem à vida de Proust constituem exemplo de como compor tipos partindo de adaptações literárias. Ruiz não decalca os Verdurin: recria-os, ainda mais fúteis. São vivos testemunhos de uma época, mas isso não importa. Levemos em conta Gilberte (Emmanuelle Béart, superestimada) ou melhor, John Malkovich na pele do genial Charlus. Quem tiver oportunidade de visitar Charlus brevemente no Um amor de Swann poderá constatar a precisão de Ruiz e Malkovich em sua composição, ressaltando a inteligência e o charme decadente do personagem. Sobretudo quando desbanca o ridículo maiô do jovem Marcel.

8. Impecável, O Tempo Redescoberto porta mistérios ainda não decifrados, cujas resoluções serão alcançadas mediante incansáveis visitas às salas que o exibirem. Mais notas relativas ao tempo/objeto/espaço, à mise-en-scéne e à genialidade de Ruiz na medida em que forem suscitadas. Por ora, os louros de melhor filme do ano, quiçá da década, bastam para exprimir a gratidão que o cinéfilo que vos fala devota ao autor. Salve Ruiz!

Bernardo Oliveira