Os Idiotas (Idioterne),
de Lars Von Trier (Dinamarca, 1998)

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Jens Albinus pirando em Os Idiotas, de Lars Von Trier

No cinema de Lars Von Trier, nada é simplório. Tudo adquire múltiplos significados, alguns até inesperados. É o que igualmente ocorre com o Dogma 95, manifesto que não é nem profissão-de-fé nem publicidade descarada, mas alguma coisa que está no meio, com diversos sentidos a atribuir. O mesmo se pode dizer a respeito do gênero nos filmes de Lars Von Trier: as regras aparecem para ser quebradas — os sinos em Breaking The Waves, o burlesco em The Kingdom... Há em seu trabalho uma estudada iconoclastia, uma provocação por vezes conjugada com o humor, mas que fique bem claro: nada está nos seus filmes "de brincadeira".

Os Idiotas é a história de um grupo de conhecidos que habitam a mesma casa para praticar o que eles chamam de pirar, ou seja, se fazer de deficientes mentais diantes dos outros e de si mesmos. Qual é o sentido disso. No filme, as opiniões entre os próprios membros oscilam: "Vocês fazem isso para debochar das pessoas", "Encontrar o idiota interior", etc. Mais que as explicações exteriorizadas pelos personagens, o que deve nos mostrar a razão da idiotia deles é o filme.

Tipo de filme-terapia, Os Idiotas é uma experiência coletiva de autodescoberta no plano individual. Desse ponto de vista, ele é assemelhado a A Chinesa, de Godard: um período de sonho niilista, um período de falso "mundo perdido", de fim de achado que resulta ser apenas o primeiro passo para uma caminhada maior. Sabemos desde o início que a experiência acabou: vemos as entrevistas dos participantes depois do período. Mas o fato de ter acabado não quer dizer meramente que tenha dado errado. Muito ao contrário, é o próprio filme que vai mostrar isso em outro plano.

No plano coletivo, Os Idiotas é um manifesto. Um manifesto do homem como demasiado humano. Há um fator-Salò, um fator-Freaks no filme de Lars Von Trier: é preciso mostrar os limites da humanidade para que os seres humanos posam se reconhecer melhor. Daí em alguns momentos também ser o mais belo filme a falar da exclusão: a marca física dos idiotas é notada sempre com um misto de condolência e nojo por quem está fora do grupo e acha que eles realmente são deficientes; um dos momentos mais fortes do filme (e também o que revela tamanha fonte de ódio e niilismo do personagem Stoffer, interpretado por Jens Albinus) é quando o oficial da prefeitura tenta fazer com que eles se mudem de município. Stoffer pira no meio da discussão, tira toda a roupa e corre atrás do carro da prefeitura chamando o oficial de fascista.

Mas se a expressão mais raivosa do filme é dada por Stoffer, a expressão mais apaixonante e apaixonada é dada pela personagem de Karen (interpretada por Bodil Jørgensen), espécie de reencarnação da Bess de Breakng The Waves. Ela é o membro mais novo do grupo, e o filme começa quando num restaurante ela é como que raptada por Stoffer em uma de suas pirações. Karen conhece o grupo a partir daí. Ela de imediato se apega a eles, mas só consegue pirar pela primeira vez depois da primeira hora de filme. Ela é a figura mais enigmática, mais instigadora do filme. Tipo de freio moral e ao mesmo tempo a idiota mais veemente, é ela que nos dá a dimensão do filme: o grupo já acabado, ela retorna para sua casa com a intenção de pirar, coisa que metade dos membros não conseguiu fazer. Lá observamos as reações de sua família, primeiramente à sua presença e depois à sua idiotia: um tapa no outro, um banho de água fria em tudo que não é compreensível pelos valores instituídos.

Mas se Karen é o manifesto externo dos idiotas, aquilo que dá a eles a grandeza dos excluídos (e nisso é preciso notar que não se trata de forma alguma de um filme reacionário, e sim de obra da mais bela esquerda), o manifesto interno é a cena de amor que resulta de uma grande suruba promovida por Stoffer. Como uma metonímia do filme, partindo do feio para alcançar a beleza, os apaixonados Josefine e Jeppe saem do momento de entrega ao grupo para, num momento de candura, fazer amor pirados. A câmara de Lars Von Trier deixa de se movimentar para vê-los melhor. Eles são filmados em close, apenas do tronco para cima, o suficiente para que vejamos em seus rostos um amor de idiotia, um amor da ingenuidade. Contraponto a todo o filme, junto com a volta à casa de Karen, essa cena mostra toda a grandeza do cinema de Lars Von Trier: trazer o sublime a partir do feio, do mexido demais; a beleza do perto demais, da indiferenciação extrema (a indiferenciação de um foco errado, do grão grande demais); a crença dogmática nos sentimentos humanos.

Ruy Gardnier

Sabe-se que Dogma 95 é o nome de um manifesto (um grupo? um produto?) que determina regras para os filmes produzidos pelos criadores e signatários. Acertei? Não sei. Sem referências, procurei o nobre amigo Ruy Gardnier, que teceu poucas palavras sobre o assunto: informações referentes a movimentos de câmera, iluminação e fotografia despojadas, enredos cotidianos e outras xurumelas, prontas a simbolizar certa "simplicidade". Mal informado, levei o assunto à baila com outros amigos e, desiludido, constatei um imenso ponto de interrogação nas gentes: uns gostam do tom "informal", tipo festa no play em VHS; outros não perdoam pelos mesmos motivos.

Achei a proposta de um manifesto, com palavras de ordem e tal, um tanto anacrônica. Imaginem: a era decreta o fim dos modos e um sujeito, ou melhor, quatro, determinam um destino estético via "movimento", "manifesto", "ruptura", etc. Para lá de interessado, fui conferir Os idiotas e confesso que saí decepcionado. Ao longo da imensa projeção — quase duas horas! — aportaram nas idéias a palavra "desperdício" e "ingênuo" como a muito tempo não me ocorria sobre um filme (pensei muito em Woody Allen, por exemplo).

A história da turma que pretende chocar a burguesia fingindo-se debilóide, confesso, me pareceu, no máximo, um Forrest Gump intelectualizado e entediante. O invólucro estético determinado pelo manifesto dá o tom. Como se pudéssemos opor aos caprichos burgueses, a apologia da debilidade mental. Como se pudéssemos opor à pasmaceira tecnológica, o despojamento do VHS e o naturalismo da representação. Me engana que eu gosto. Não, não gosto e não para por aí.

Tem um personagem no filme, se não me engano, dono da casa onde os meninos maluquinhos passam as férias, que é uma graça. Vejam só: lá pelas tantas o sujeito toma ares nietzscheanos, tipo super homem que tudo pode. Não tem dó nem piedade por viva alma, nem aspira um bom convívio. Parece a Letícia Spiller na novela das oito. E na hora da transgressão, quando o filme toma ares Danny Boyle (Cova Rasa e Trainsppoting), ele clama: suruba!; e quando pira, ele pira mesmo: tira a roupa na rua! Ora, faça-me o favor!!

Não me parece suportável prosseguir nessa busca pelo "novo", a menos que se aprenda a achá-lo. As grandes novidades deste fin-de-siécle, com exceção do drum'n bass e do Nirvana, são esses filmecos que, em sua grande maioria, assinalam um niilismo de boteco, travestido de vanguarda e vazio como um cofre público. Por trás da situação armada — movimento, manifesto, ruptura,... — o sentimentalismo barato que comove como guloseima americana. E esquematizado para servir daqui a 50 anos nas enciclopédias como "movimento surgido nos meados, blábláblá..."

Falar de idiotas não me parecia tão fácil: muitas vezes temos que provar sua culpa. Se você gostou, ótimo, não perdeu dinheiro: não é sem alegria que te saúdo, ó compreensivo. Se não, por favor, ajude-me a roubar a cópia, para queimar no Largo da Carioca, às três da tarde, como idiotas que não perdem a chance de conferir (e adorar) novidades.

Bernardo Oliveira